terça-feira, 26 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Governo federal tem dever de enfrentar o crime

O Globo

Ministério da Segurança é necessário para o Brasil poder desbaratar facções criminosas de alcance transnacional

Se algo une hoje o Brasil, é a sensação de insegurança. Cotidianamente o país é sacudido por assassinatos, latrocínios, estupros, feminicídios, sequestros, roubos, furtos e uma profusão de golpes que deixam marcas profundas. Sai governo, entra governo, a situação pouco muda. Avanços e retrocessos costumam acontecer menos como resultado de políticas públicas e mais em razão dos armistícios entre as quadrilhas do crime organizado que amedrontam a população indefesa. A violência se mantém em patamares vergonhosos.

De acordo com a última comparação internacional disponível, o Estudo Global sobre Homicídios 2023, divulgado neste mês pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), o Brasil registrou 22,4 homicídios intencionais por 100 mil habitantes em 2021, quase quatro vezes a média mundial (5,8 por 100 mil). A taxa supera a média das Américas (15 por 100 mil) e da África (12,7 por 100 mil), as regiões mais violentas. De 458 mil homicídios computados no mundo em 2021, 10,4% aconteceram no Brasil, país que reúne 2,5% da população global. No ano passado, foram 47.400 assassinatos, segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A cada hora, pelo menos cinco brasileiros foram mortos. Os estupros chegaram perto de 75 mil, mais de 200 por dia. Mais de 22 mil crianças sofreram maus-tratos. Mesmo os crimes de menor gravidade expuseram números exorbitantes: houve quase 1 milhão de furtos ou roubos de celulares e 1,8 milhão de estelionatos. Não se pode achar normal essa calamidade.

A população percebe que as coisas não vão bem. Oito em cada dez brasileiros veem agravamento da violência nos últimos 12 meses, segundo pesquisa Quaest feita em novembro. Entre os entrevistados, 51% disseram já ter sido roubados ou furtados. Diversos estudos comprovam a associação entre a piora nos indicadores e a ação de organizações criminosas como Comando Vermelho ou Primeiro Comando da Capital (PCC). Lamentavelmente, o Planalto se conforma com medidas apenas paliativas. A violência explode na Bahia, no Rio de Janeiro, na Amazônia, mas o governo federal não sai da esfera dos discursos e promessas.

Em novembro, depois que milicianos queimaram 35 ônibus no Rio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para que as Forças Armadas reforçassem a segurança em portos, aeroportos e fronteiras. A iniciativa ajuda, claro, mas está longe de resolver o problema. Até porque tem data para acabar: 3 de maio de 2024. Como noutras ocasiões em que o governo lançou mão do expediente, passada a calmaria, o crime organizado volta a tocar o terror.

O governo federal costuma se esquivar amparado na interpretação constitucional segundo a qual a segurança pública é tarefa dos estados. Ora, está mais que provado que, sozinhos, eles são incapazes de combater organizações criminosas que atuam por todo o país e no exterior. Facções transnacionais controlam rotas do tráfico, enviam droga para Europa e Estados Unidos, mantendo o Brasil refém da violência. Enfrentá-las demanda recursos de que os estados não dispõem.

Nos governos do PT, sempre houve relutância em dar à segurança a atenção que ela exige. Próceres petistas temiam levar para o Planalto um problema que atribuíam aos governadores. Mas o desgaste está feito, e o presidente não sai ileso. A gestão de Lula na segurança é considerada ruim ou péssima por 50% e regular por 29% dos ouvidos pelo Datafolha em dezembro.

O problema é complexo, mas experiências internacionais mostram que tem solução. Medellín, na Colômbia, era considerada capital mundial do narcotráfico, depois se transformou e hoje inspira outras cidades. Os investimentos e intervenções não se limitaram a combater os grupos criminosos. Foram acompanhados de projetos ousados nas áreas de infraestrutura urbana, educação e cultura. Nova York deixou para trás a pecha de cidade violenta graças a iniciativas como aumento na força policial, investimentos maciços em tecnologia, programas como Tolerância Zero (que combatia todo tipo de crime, mesmo os de menor monta), repressão à venda de drogas e acompanhamento de adolescentes nas escolas. Miami reforçou a estrutura policial, passou a priorizar o encarceramento por crimes mais graves e a investir em reabilitação para os demais (programa Smart Justice).

O governo federal tem o dever de assumir seu papel na segurança para o Brasil derrotar o crime organizado. Nas áreas de saúde e educação, a responsabilidade também é compartilhada com estados e municípios, nem por isso a União abre mão de coordenar as políticas por meio de dois dos ministérios mais poderosos na Esplanada. A criação do Susp, espécie de SUS da segurança para integrar as diferentes esferas de poder, continua no plano das boas intenções.

Nem a promessa de recriar o Ministério da Segurança Pública, desmembrando-o da pasta da Justiça, Lula cumpriu. Tem mais uma oportunidade agora, com a saída do ministro Flávio Dino para ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal. O certo seria haver uma pasta cujo titular pudesse se dedicar integralmente à segurança, com poderes nacionais. É preciso também valorizar o trabalho e a estrutura da Polícia Federal, força de excelência cuja vantagem é não estar tão contaminada pela promiscuidade com o crime quanto as polícias estaduais. Por fim, é preciso ampliar a rede de presídios federais de segurança máxima, os únicos que têm conseguido resistir à infiltração de facções como o PCC. Trabalho, como se vê, não falta.

Atuando de forma integrada com os estados, priorizando a inteligência em detrimento do bangue-bangue, os resultados certamente aparecerão. Atuar na base do improviso, lançando mão de GLOs efêmeras e despachando a Força Nacional para os estados apenas quando a crise aperta, só demonstra o óbvio: o governo não tem plano para enfrentar a violência que assusta os brasileiros.

Centrão ganha orçamento paralelo de investimentos

Valor Econômico

Total recorde de emendas chega a R$ 53 bilhões, apenas R$ 1 bilhão inferior a todos os investimentos previstos do PAC

O orçamento da União de 2024 será lembrado não só como o que marcou a estreia de um novo regime fiscal, mas também como aquele em que o Congresso fez os maiores progressos em se apropriar de uma fatia recorde dele. Os recursos dirigidos a emendas parlamentares aumentaram para R$ 53 bilhões, praticamente se equiparando ao total de investimentos do governo federal com o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC). Haverá o que nunca antes houve: um calendário para que a União libere as verbas das emendas, cujo limite é o primeiro semestre do ano. O objetivo é liberar o dinheiro a tempo para que os deputados e senadores beneficiem seus candidatos a prefeito e vereador nas eleições de 2024.

Dependente do Centrão, o governo Lula cedeu aos desejos do Congresso, mas diminuiu o prejuízo político, ao evitar a redução de R$ 17 bilhões que os parlamentares queriam fazer nas dotações do PAC. Foram feitos cortes de R$ 6,5 bilhões no PAC para manter o total de emendas de R$ 53 bilhões, mas o governo teve de fazer cortes nas verbas de ministérios sob comando do PT para chegar à conta exigida pelo Congresso. Nela também entrou a redução no valor do salário mínimo - de R$ 1.421 para R$ 1.412- decorrente de inflação pelo INPC menor do que a prevista, o que gerou uma folga de R$ 6,5 bilhões. Os investimentos do PAC serão de R$ 54 bilhões.

Assim criou-se quase que um orçamento paralelo de investimentos - o planejado pela União, um pouco mais de R$ 1 bilhão acima daquele que será destinado a obras indicadas por deputados e senadores, que não guardam sintonia com as prioridades nacionais estabelecidas pelo governo federal. O governo tentou ainda convencer os parlamentares a, em troca do aumento dos recursos para emendas, que pelo menos elas fossem destinadas aos projetos do PAC. A oferta foi explicitamente rejeitada e o jeito foi cortar o PAC e outras rubricas, como o Minha Casa Minha Vida, que perdeu R$ 4,1 bilhões, com dotação de R$ 8,9 bilhões.

Além da data para a liberação do dinheiro das emendas, que nunca havia sido estabelecida, os parlamentares colocaram mais limites para restringir a ação do Executivo. Passaram por cima da necessidade de enviar ao ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, a lista de obras com as respectivas verbas a serem encaminhadas aos ministérios responsáveis. As demandas agora irão diretamente aos ministérios, sem intermediários. Além disso, o governo não poderá contingenciar o dinheiro das emendas. Caso haja necessidade de fazê-lo, terá de solicitar a concordância do autor da emenda e compensá-lo em outras obras por ele indicadas, reduzindo recursos de outros itens do orçamento.

A ação do Centrão mira antes de tudo resultados eleitorais. Partidos como PL, PP, PSD e Republicanos estão entre os que mais cresceram na representação no Congresso e querem maiores bancadas nas eleições de 2026. Um dos caminhos para isso é fortalecer suas bases municipais no pleito de 2024, para o qual pretendem despejar uma quantia desmesurada de recursos. O fundo eleitoral foi ampliado para R$ 4,9 bilhões, valor igual ao utilizado em 2022 nas eleições para governadores, deputados, senadores e presidente, e mais do que o dobro do R$ 1,9 bilhão destinado nas eleições municipais de 2020.

A ampliação é um despropósito. Os colégios eleitorais de disputa para prefeitos e vereador são muito menores, apesar do número superior de candidatos. Os gastos são maiores nas grandes cidades e capitais, mas no Brasil 91,9% dos 5.570 municípios têm menos de 50 mil eleitores. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, foi contra o aumento dos recursos, defendendo que o valor autorizado nas últimas eleições municipais fosse corrigido pela inflação, resultando em algo em torno de R$ 2,7 bilhões. Foi derrotado pela aliança entre o PT e o PL bolsonarista, que serão os principais beneficiados pelo aumento das verbas eleitorais, das quais R$ 4 bilhões serão provenientes das emendas de bancadas estaduais. O PL terá a maior quantia, e o PT, a segunda maior.

As cúpulas partidárias sairão ainda mais fortalecidas depois dessa injeção de dinheiro da qual terão papel decisivo na distribuição. As emendas PIX, que irão direto para prefeitos sem que haja destinação específica para o recurso, de baixa transparência, subirão em 2024 a R$ 8 bilhões. Os partidos do Centrão tiveram também aumento da dotação dos ministérios que comandam. O dos Esportes, dirigido por André Fufuca (PP-MA), entrou no Projeto de LDO com R$ 607,7 milhões e sai da Comissão Mista de Orçamento do Congresso com o quádruplo, R$ 2,55 bilhões. O do Turismo, com Celso Sabino (União-PA) pulou de R$ 270 milhões para R$ 2,3 bilhões.

A disputa por uma fatia menor do que 10% do orçamento, a dos gastos discricionários, resultou em perda para o Executivo, que deixa progressivamente de contar com instrumentos políticos para obter consensos e uma base parlamentar estável. Mesmo assim, é possível e desejável que o governo se esforce para chegar o mais perto possível da meta de déficit fiscal zero, o que permitirá que os juros caem mais e mais rápido e os investimentos avancem.

Política perdulária

Folha de S. Paulo

União entre Congresso e governo para alta do gasto é risco de inflação à frente

Ao aprovar o Orçamento federal de 2024, o Congresso prosseguiu na tendência de avançar em proveito próprio sobre parcelas crescentes da despesa pública, com escassa atenção à qualidade das ações e ao equilíbrio fiscal.

Se a palavra final dos legisladores sobre os gastos do Estado é atributo da democracia, é preciso também que eles respondam sobre a aplicação dos recursos. Não se encontrará justificativa para a enormidade de R$ 53 bilhões em emendas parlamentares, quase metade disso pulverizado em obras e eventos paroquiais definidos individualmente por deputados e senadores.

Tampouco se vê benefício para a sociedade com a ampliação para quase R$ 5 bilhões do fundo destinado a financiar campanhas de candidatos a vereador e prefeito —mais que o dobro do montante disponível para os partidos nas eleições municipais anteriores.

Numa inovação, foram incluídos dispositivos que obrigam o governo a empenhar os recursos das emendas ainda no primeiro semestre, convenientemente a tempo de impactar os pleitos.

Como o dinheiro é finito e há limites para o déficit do Tesouro, as despesas criadas pelos congressistas em proveito próprio terão de ser compensadas por cortes em outras áreas. Já se tiraram R$ 6,3 bilhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), fixado afinal em R$ 55 bilhões.

Também se reduziram dotações orçamentárias para ministérios importantes, como Transportes, Saúde e Educação. Mais bloqueios deverão ocorrer em 2024.

Foi mantida, por ora, a desacreditada meta de déficit zero —o que, de todo modo, representa uma vitória do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que ainda luta para elevar a arrecadação.

A aprovação de projetos com essa finalidade no final do ano dá algum alento à política fiscal, mas a recusa do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em conter a expansão de gastos não autoriza otimismo.

O Tesouro Nacional acumula um rombo de R$ 108 bilhões nos 12 meses encerrados em outubro, sem contar o pagamento de juros, e a cifra ameaça se aproximar dos R$ 200 bilhões no ano. A pressão por revisar a meta de equilíbrio orçamentário será permanente daqui em diante, assim como a necessidade de contingenciamentos.

O Planalto teve neste ano mais facilidade que o usual em elevar a já excessiva carga tributária com o beneplácito do Congresso —ao qual se associou na elevação generalizada de despesas.

O alinhamento de interesses é risco para o contribuinte. A aparente generosidade de Brasília é financiada com impostos, endividamento, a ser pago por todos com juros, e pressão inflacionária à frente.

Metrópole vertical

Folha de S. Paulo

Caberá ao prefeito de SP avaliar o novo zoneamento, que permite edifícios maiores

À luz de mudanças substanciais no que havia sido acordado em votação no primeiro turno, inclusive com um controverso substitutivo apresentado horas antes da votação, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou em definitivo, na quinta-feira (21), a revisão da Lei de Zoneamento da cidade.

Vinculado ao Plano Diretor, que traça as diretrizes gerais do desenvolvimento urbano, o regramento objetiva, em tese, esmiuçar controle e uso do solo, garantir o equilíbrio de suas finalidades (comercial, residencial, industrial) e promover o ordenamento territorial sob lógicas funcionais e sustentáveis.

Em uma metrópole com 12 milhões de habitantes, grave déficit de moradia, histórico de alagamentos, transporte público insuficiente e tráfego saturado, é legítima a apreensão de urbanistas com o que foi deliberado de afogadilho, sem maior escrutínio público, diante das possíveis transformações no cotidiano dos paulistanos.

O impacto maior está nos miolos dos bairros, regiões que conciliam uso residencial e empresarial, maioria na capital, e nas zonas de centralidade, onde a prioridade é a iniciativa privada, com construções maiores.

Em ambas ficou acertado que o limite de altura dos edifícios poderá aumentar consideravelmente.
Com prédios maiores, mais garagens e menos drenagem na superfície, teme-se, no atual contexto de mudanças climáticas, piora no trânsito e nos alagamentos.

Preocupa, também, o fato de que o incentivo à verticalização nessas áreas vai de encontro às premissas do Plano Diretor, que projetou uma concentração maior nos eixos onde há rede de transporte —justamente para facilitar a mobilidade.

No rol das novidades de última hora entraram a liberação de habitações de interesse social em zonas de proteção ambiental, o que hoje é proibido, e um arranjo que dá ao Legislativo a palavra final sobre qualquer proposta de tombamento que altere parâmetros urbanísticos, pondo em xeque a atuação do Conpresp, um órgão técnico.

É bem-vindo um adensamento mais uniforme, com a inclusão de estratos diversos da sociedade no centro expandido, o que pode frear o avanço da periferização.

Estabelecer alcance e efeitos desse processo é tarefa do prefeito Ricardo Nunes (MDB), que dará seu parecer, inclusive com vetos ou não, ao que foi aprovado —muito diferente, registre-se, do que sua gestão havia concebido inicialmente.

Haddad e a quadratura do círculo

O Estado de S. Paulo

Ministro conseguiu façanha de articular uma agenda responsável mesmo sendo desautorizado por Lula e boicotado pelo PT; resta saber se terá a mesma força ante os imperativos eleitorais

O  ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem boas razões para comemorar o ano que passou. Em um governo de esquerda liderado por um presidente abertamente avesso à responsabilidade fiscal, o ministro conseguiu avanços importantes em sua agenda econômica, que não teriam sido possíveis sem muita negociação com o Congresso.

O Orçamento impôs, antes mesmo da posse, um enorme desafio ao ministro. A emenda constitucional da transição impulsionou gastos em um nível muito acima do necessário para recompor a verba das políticas públicas devastadas por anos de bolsonarismo. Dar fim ao desmoralizado teto de gastos e propor um novo arcabouço fiscal em seu lugar foi a primeira de suas tarefas, e, para isso, precisou vencer a resistência de seu próprio partido e do presidente Lula da Silva para impor uma nova âncora, ainda que frouxa.

Aos trancos e barrancos e sob muito ceticismo, o ministro conseguiu apoio para as medidas que podem ampliar a arrecadação no ano que vem por meio da taxação dos fundos exclusivos e offshore, apostas esportivas e a regulamentação das subvenções de ICMS. E, depois de décadas de debates e uma enorme dificuldade para formar um consenso mínimo, a reforma tributária sobre o consumo foi finalmente aprovada pelo Congresso.

Pode-se argumentar que a nova âncora não é firme o suficiente para reequilibrar as contas públicas e conter a trajetória de crescimento da dívida pública. Enfraquecidas ao longo da tramitação legislativa, as medidas de reforço de arrecadação definitivamente não alcançarão as ambiciosas metas calculadas pela equipe econômica. Os tratamentos privilegiados que a reforma manteve ou criou trouxeram dúvidas sobre a alíquota final do novo imposto. Muita gente não está convencida do potencial que a reforma tributária pode gerar em termos de eficiência e produtividade da economia.

Porém, com exceção da desoneração da folha de pagamento, apoiada por boa parte do PIB nacional e do Congresso, o ministro soube escolher bem as batalhas em que entrou. É fato que cada uma delas saiu cara em termos de emendas e cargos, mas foi um custo que o ministro – e, por óbvio, o próprio presidente Lula da Silva – aceitou pagar para construir a credibilidade da política econômica do governo.

Felizmente, a economia também conseguiu andar com as próprias pernas. O desempenho do agronegócio deve garantir um crescimento de 3% ao Produto Interno Bruto (PIB) neste ano, o Banco Central (BC) tem vencido a resistência da inflação pós-pandemia e o desemprego segue em patamares historicamente baixos.

No exterior, os conflitos entre Rússia e Ucrânia e Israel e Hamas continuarão a dominar o cenário internacional, bem como as incertezas sobre a economia nos Estados Unidos, Europa e China. O Brasil, no entanto, tornou a ser visto como um porto seguro para investidores, sobretudo depois que voltou a se comprometer com o avanço da agenda ambiental e o combate ao desmatamento.

Há riscos a serem enfrentados no ano que vem. Os sinais de desaceleração da economia têm encorajado os defensores do gasto público a retomar a carga por medidas do passado, a reeditar tentativas de driblar a regra fiscal e a apostar em estatais como motor de desenvolvimento. As eleições municipais são sempre um estímulo adicional para a aprovação de gastos sem qualidade.

Caberá ao ministro usufruir da legitimidade que o Congresso lhe deu para seguir em frente, ajudar a regulamentar a reforma tributária e suas leis complementares e enviar a segunda etapa da proposta, sobre a renda. Seu maior teste será em março, quando o governo terá de tomar uma decisão sobre a meta de déficit zero em 2024.

Há, no entanto, uma lição a ser tirada deste ano. Quanto maior o alinhamento com o Congresso, maior a chance de a agenda econômica do ministro avançar. Se Haddad não levou tudo o que queria, o saldo final dessas negociações foi positivo para a sociedade. Espera-se, portanto, que o ministro tenha sabedoria para fazer boas escolhas, dividir o mérito delas com o Legislativo e, apesar do boicote petista e da ambiguidade de Lula, resistir no caminho da responsabilidade fiscal.

O Brasil de volta ao futuro

O Estado de S. Paulo

Como sugere o Banco Mundial, só um contrato social que combine a demanda típica da esquerda por inclusão com a da direita por produtividade conduzirá a um crescimento sustentável

Ao completar 200 anos, o Brasil independente teve o que celebrar e o que lamentar. Após restaurar sua democracia, em 1988, os mercados se tornaram mais abertos e inclusivos, e o Plano Real estabilizou a macroeconomia. Com o superciclo das commodities, o País se consolidou como uma economia de renda média alta entre as 10 maiores do mundo, e a igualdade e a proteção social se ampliaram. Ainda assim, o Brasil é só 11% tão rico quanto, por exemplo, os EUA, e passado o superciclo enfrentou uma recessão que enfraqueceu o mercado de trabalho e aumentou a pobreza, a desigualdade e a dívida pública.

O que o Brasil independente celebrará ou lamentará em seu 220.º aniversário, em 2042? A questão foi levantada pelo Banco Mundial no estudo O Brasil do Futuro. Segundo ele, para ativar um círculo virtuoso de produtividade, inclusão e sustentabilidade, o País precisa corrigir distorções históricas – refletidas nos “muitos Brasis” – que determinaram a distribuição desigual de ativos e a disfuncionalidade das instituições que governam seu uso. Ao mesmo tempo, precisará transformar megatendências – como as transições energéticas, demográficas e tecnológicas – em oportunidades.

O princípio e o fim deste círculo é a construção de um novo contrato social com três focos: ampliar a confiança na capacidade do Estado de entregar suas promessas (através de mecanismos de governança que melhorem a responsabilização e transparência); ampliar a confiança das pessoas na capacidade do Estado de mantê-las seguras (reduzindo fatores de risco sociais e individuais da violência e implementando intervenções que viabilizem a resolução pacífica de conflitos); e reduzir a fragmentação social (diminuindo a disseminação de desinformação e promovendo reformas que construam confiança, cidadania e inclusão).

A dinâmica desse círculo depende de medidas que promovam a produtividade e a inclusão, de modo que se reforcem mutuamente. O Banco Mundial identifica seis áreas críticas de reforma: (i) ampliar a produtividade no setor privado para promover o crescimento sustentável; (ii) preparar a educação para fechar lacunas entre habilidades e empregos; (iii) fortalecer a relevância e sustentabilidade dos sistemas de proteção social; (iv) remodelar uma política fiscal limitada; (v) melhorar o acesso à infraestrutura; e (vi) construir um sistema tributário mais equitativo e eficaz.

A depender do sucesso ou fracasso dessas medidas, o Banco projeta quatro cenários. O pior (a “Distopia Brasileira”) perpetuaria o círculo vicioso de baixa produtividade, baixa inclusão e degradação ambiental. Por falta de reformas, os serviços desiguais e o desemprego alto estimulariam convulsões sociais, incentivando políticas populistas e clientelistas.

Outra possibilidade (a “Estagnação Unida”) seria o progresso somente na inclusão. Mas o foco na redistribuição seria insuficiente para o crescimento do País em um mundo altamente tecnológico e produtivo. Uma possibilidade inversa (a “Grande Divisão”) seria o progresso só na produtividade. As elites enriqueceriam, mas os pobres seguiriam na vala comum do desespero, onde cairiam porções crescentes das classes médias. As tensões sociais e tentações autoritárias cresceriam, prejudicando o potencial para o comércio global e investimentos.

No melhor cenário, o País proveria acesso igual à infraestrutura e mercados de crédito. As divisões sociais diminuiriam, fundando os alicerces para reformas ambiciosas. Com um contrato social forte e o crescimento inclusivo da produtividade, os benefícios das mudanças tecnológicas e de uma melhor educação seriam sentidos por todos. O Brasil manteria sua diversidade – social, econômica e política –, mas os muitos Brasis se aproximariam e progrediriam juntos, transformando-se na “Usina de Energia Latino-Americana”.

Em resumo, na perspectiva do Banco Mundial o futuro do Brasil é incerto, mas as megatendências globais podem ser transformadas em oportunidades e está nas mãos dos brasileiros aproveitá-las para construir uma Nação mais produtiva, inclusiva e sustentável.

O mandachuva de São Paulo

O Estado de S. Paulo

Nova recondução de Milton Leite à presidência da Câmara Municipal desserve a cidade e a democracia

Contam-se nos dedos da mão os vereadores que acumularam tanto poder em São Paulo como Milton Leite (União), que acaba de ser reconduzido ao cargo de presidente da Câmara Municipal para um inédito quarto mandato. É lamentável constatar que 49 dos 55 vereadores paulistanos tenham se prestado à ignomínia de fazer pouco-caso de um dos atributos mais elementares do regime democrático, a alternância no poder. Só a bancada do PSOL votou contra.

Leite jura que seu novo período à frente da Mesa Diretora não só será o último, como, na eleição do ano que vem, os eleitores nem sequer encontrarão seu nome nas urnas. “Não volto para esta Casa em 2025”, disse o vereador durante a votação que o reconduziu ao cargo, no dia 15 passado. Acredite quem quiser.

Nos últimos tempos, as promessas do presidente da Câmara Municipal atingiram o mesmo grau de confiabilidade dos semáforos da capital paulista em dias de chuva. Há bem pouco, convém lembrar, o mesmíssimo Leite havia assumido um compromisso público de não se candidatar a mais uma reeleição para o comando do Legislativo municipal. Sob seu patrocínio, grande parte da Casa que ele dirige com mão de ferro há três anos ininterruptos tem alterado a Lei Orgânica do Município para permitir sua permanência no poder. Na última alteração, foi aprovada a possibilidade de reeleições ilimitadas da Mesa Diretora, numa incomum união entre adversários políticos, à esquerda e à direita, para abastardar a democracia representativa.

Não se sabe o que, afinal, galvaniza bancadas tão distintas ideologicamente, como as do PT e do PL, em torno de Milton Leite, mas uma coisa é certa: não é o bem-estar dos paulistanos. A demasiada concentração de poder nas mãos do presidente da Câmara Municipal em nada atende ao melhor interesse público.

Hoje, é possível afirmar que quase nada acontece em São Paulo sem a anuência de Milton Leite, alguém que é visto pelo establishment político como tão ou mais poderoso do que o próprio prefeito Ricardo Nunes (MDB). Na metrópole que deveria servir de exemplo para o País, tanto poder nas mãos de um mandatário jamais pode ser encarado como algo normal.

Decerto os apoiadores de Milton Leite dirão que o vereador tem sido reconduzido ao cargo por livre escolha de seus pares. No entanto, isso em nada releva o fato de que a vereança paulistana, com todos os desafios que tem de enfrentar, abre mão, sabe-se lá por quais razões, de um necessário arejamento de ideias, de novos olhares para as questões da urbe e seus habitantes. Ao menos por ora, tudo isso é ofuscado pelo projeto de poder de Milton Leite e seu grupo político.

A mais recente recondução do poderoso vereador à presidência da Casa já seria um problema grave se São Paulo estivesse um primor. E não está. A sensível queda da qualidade de vida na cidade, claro, deve-se em grande medida à incapacidade administrativa do atual prefeito. Mas o quadro não seria tão ruim se a Câmara Municipal fiscalizasse o governo como deveria. Ao que parece, contudo, o sr. Leite tem outras prioridades.

Um país com novo retrato e velhas demandas

Correio Braziliense

O país que se enxerga de um novo jeito tem, agora, informações oficiais para embasar mudanças, incluindo um fazer político que considere a força do atual movimento de pertencimento etnico-racial

O número de pessoas que se declaram pardas no Brasil é, pela primeira vez, maior que o de brancas: 45,3% e 43,5% da população, respectivamente, segundo novos dados do Censo 2022. Desde 1991, a mudança se sinalizava. À época, as taxas eram de 42,5% e 51,6%, respectivamente; 20 anos depois, 43,1% e 47,7%. Com a virada no recorte cor ou raça, o país que se enxerga de um novo jeito tem, agora, informações oficiais para embasar mudanças cotidianas, incluindo um fazer político que considere a força do atual movimento de pertencimento étnico-racial e todas as suas facetas.

Somos mais pardos e também mais indígenas e pretos, por exemplo. E esse processo de reconhecimento foi, estatisticamente, ainda maior na última fase do recenseamento, de 2010 a 2022. Enquanto a população parda teve um aumento percentual de 11,9%, a evolução da indígena foi de 89%, e a da preta, 42,3%. No mesmo período, a população brasileira como um todo cresceu 6,5% — o que indica que apenas as taxas de natalidade não explicariam o atual retrato étnico-racial brasileiro.

Segundo a coordenadora do Censo de Povos e Comunidades Tradicionais, Marta Antunes, fatores como migração, fecundidade e mortalidade serão considerados em futuras análises sobre esse novo recorte. A especialista explica que os critérios de pertencimento variam de acordo com o contexto social, as relações interraciais e a forma como cada indivíduo se percebe — ou seja, aspectos pessoais e coletivos. Não há dúvidas de que há um movimento em curso no país de valorização da negritude e de resgate das origens entre pessoas de diferentes faixas etárias.

Quanto aos aspectos mais coletivos, entre os fatores que podem favorecer a sensação de pertencimento, está a maior representatividade em cargos estratégicos públicos e privados. As contratações estão longe de reproduzir o Brasil das ruas, mas há sinais de mudança, como a nomeação de Sônia Guajajara, primeira ministra indígena do país, e, mais recentemente, a de Vera Lúcia Araújo, nova ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Em entrevistas ao Correio ao longo deste ano, a advogada, que não "tem tradição jurídica na família", ressaltou que o Brasil tem "uma elite negra cultural e acadêmica" preparada para dialogar com os governos e pensar junto. "O fazer jurídico pelo Estado somente pode ser qualificado se você insere na cúpula um pensamento mais diverso, mais oxigenado, que carrega os saberes das nossas maiorias" , indicou, em março.

Verinha é a segunda negra a ocupar uma vaga na instância máxima da Justiça Eleitoral — em agosto, o presidente Lula indicou Edilene Lôbo. Era também um dos nomes estampados em campanhas do movimento negro para a vaga do Supremo Tribunal Federal (STF) aberta com a aposentadoria de Rosa Weber. Esse tipo de pressão, segundo especialistas, ganha embasamento com dados científicos, como os do IBGE, que evidenciam as discrepâncias entre a forma como a população brasileira se percebe e como é representada.

Nesse sentido, os dados inéditos sobre a população quilombola brasileira, trazidos também pelo Censo 2022, são importante ferramenta estatística para jogar os holofotes sobre uma população ainda mais invisível no mapa oficial do país. Pela primeira vez, retratou-se um grupo composto por 1,32 milhões de pessoas, quase a população de Recife, distribuídas em 1.696 municípios. Presente na divulgação dos dados, a secretária-executiva do Ministério da Igualdade Racial, Roberta Eugênio, afirmou que, "para fazer política para o povo, é preciso fazer com o povo". O povo respondeu ao chamado, disse aos recenseadores quem é e precisa ser legitimado.

 

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