Governo federal tem dever de enfrentar o
crime
O Globo
Ministério da Segurança é necessário para o
Brasil poder desbaratar facções criminosas de alcance transnacional
Se algo une hoje o Brasil, é a sensação de
insegurança. Cotidianamente o país é sacudido por assassinatos, latrocínios,
estupros, feminicídios, sequestros, roubos, furtos e uma profusão de golpes que
deixam marcas profundas. Sai governo, entra governo, a situação pouco muda.
Avanços e retrocessos costumam acontecer menos como resultado de políticas
públicas e mais em razão dos armistícios entre as quadrilhas do crime
organizado que amedrontam a população indefesa. A violência se
mantém em patamares vergonhosos.
De acordo com a última comparação internacional disponível, o Estudo Global sobre Homicídios 2023, divulgado neste mês pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), o Brasil registrou 22,4 homicídios intencionais por 100 mil habitantes em 2021, quase quatro vezes a média mundial (5,8 por 100 mil). A taxa supera a média das Américas (15 por 100 mil) e da África (12,7 por 100 mil), as regiões mais violentas. De 458 mil homicídios computados no mundo em 2021, 10,4% aconteceram no Brasil, país que reúne 2,5% da população global. No ano passado, foram 47.400 assassinatos, segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A cada hora, pelo menos cinco brasileiros foram mortos. Os estupros chegaram perto de 75 mil, mais de 200 por dia. Mais de 22 mil crianças sofreram maus-tratos. Mesmo os crimes de menor gravidade expuseram números exorbitantes: houve quase 1 milhão de furtos ou roubos de celulares e 1,8 milhão de estelionatos. Não se pode achar normal essa calamidade.
A população percebe que as coisas não vão
bem. Oito em cada dez brasileiros veem agravamento da violência nos últimos 12
meses, segundo pesquisa Quaest feita em novembro. Entre os entrevistados, 51%
disseram já ter sido roubados ou furtados. Diversos estudos comprovam a
associação entre a piora nos indicadores e a ação de organizações criminosas
como Comando Vermelho ou Primeiro Comando da Capital (PCC). Lamentavelmente, o
Planalto se conforma com medidas apenas paliativas. A violência explode na
Bahia, no Rio de Janeiro, na Amazônia, mas o governo federal não sai da esfera
dos discursos e promessas.
Em novembro, depois que milicianos queimaram
35 ônibus no Rio, o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva assinou um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para que as Forças
Armadas reforçassem a segurança em portos, aeroportos e fronteiras. A
iniciativa ajuda, claro, mas está longe de resolver o problema. Até porque tem
data para acabar: 3 de maio de 2024. Como noutras ocasiões em que o governo
lançou mão do expediente, passada a calmaria, o crime organizado volta a tocar
o terror.
O governo federal costuma se esquivar
amparado na interpretação constitucional segundo a qual a segurança pública é
tarefa dos estados. Ora, está mais que provado que, sozinhos, eles são
incapazes de combater organizações criminosas que atuam por todo o país e no
exterior. Facções transnacionais controlam rotas do tráfico, enviam droga para
Europa e Estados Unidos, mantendo o Brasil refém da violência. Enfrentá-las
demanda recursos de que os estados não dispõem.
Nos governos do PT, sempre houve relutância
em dar à segurança a atenção que ela exige. Próceres petistas temiam levar para
o Planalto um problema que atribuíam aos governadores. Mas o desgaste está
feito, e o presidente não sai ileso. A gestão de Lula na segurança é
considerada ruim ou péssima por 50% e regular por 29% dos ouvidos pelo
Datafolha em dezembro.
O problema é complexo, mas experiências
internacionais mostram que tem solução. Medellín, na Colômbia, era considerada
capital mundial do narcotráfico, depois se transformou e hoje inspira outras
cidades. Os investimentos e intervenções não se limitaram a combater os grupos
criminosos. Foram acompanhados de projetos ousados nas áreas de infraestrutura
urbana, educação e cultura. Nova York deixou para trás a pecha de cidade
violenta graças a iniciativas como aumento na força policial, investimentos
maciços em tecnologia, programas como Tolerância Zero (que combatia todo tipo
de crime, mesmo os de menor monta), repressão à venda de drogas e
acompanhamento de adolescentes nas escolas. Miami reforçou a estrutura
policial, passou a priorizar o encarceramento por crimes mais graves e a
investir em reabilitação para os demais (programa Smart Justice).
O governo federal tem o dever de assumir seu
papel na segurança para o Brasil derrotar o crime organizado. Nas áreas de
saúde e educação, a responsabilidade também é compartilhada com estados e
municípios, nem por isso a União abre mão de coordenar as políticas por meio de
dois dos ministérios mais poderosos na Esplanada. A criação do Susp, espécie de
SUS da segurança para integrar as diferentes esferas de poder, continua no
plano das boas intenções.
Nem a promessa de recriar o Ministério da
Segurança Pública, desmembrando-o da pasta da Justiça, Lula cumpriu. Tem mais
uma oportunidade agora, com a saída do ministro Flávio Dino para ocupar uma
cadeira no Supremo Tribunal Federal. O certo seria haver uma pasta cujo titular
pudesse se dedicar integralmente à segurança, com poderes nacionais. É preciso
também valorizar o trabalho e a estrutura da Polícia Federal, força de
excelência cuja vantagem é não estar tão contaminada pela promiscuidade com o
crime quanto as polícias estaduais. Por fim, é preciso ampliar a rede de
presídios federais de segurança máxima, os únicos que têm conseguido resistir à
infiltração de facções como o PCC. Trabalho, como se vê, não falta.
Atuando de forma integrada com os estados,
priorizando a inteligência em detrimento do bangue-bangue, os resultados
certamente aparecerão. Atuar na base do improviso, lançando mão de GLOs
efêmeras e despachando a Força Nacional para os estados apenas quando a crise
aperta, só demonstra o óbvio: o governo não tem plano para enfrentar a
violência que assusta os brasileiros.
Centrão ganha orçamento paralelo de
investimentos
Valor Econômico
Total recorde de emendas chega a R$ 53
bilhões, apenas R$ 1 bilhão inferior a todos os investimentos previstos do PAC
O orçamento da União de 2024 será lembrado
não só como o que marcou a estreia de um novo regime fiscal, mas também como
aquele em que o Congresso fez os maiores progressos em se apropriar de uma
fatia recorde dele. Os recursos dirigidos a emendas parlamentares aumentaram
para R$ 53 bilhões, praticamente se equiparando ao total de investimentos do
governo federal com o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC). Haverá o que
nunca antes houve: um calendário para que a União libere as verbas das emendas,
cujo limite é o primeiro semestre do ano. O objetivo é liberar o dinheiro a
tempo para que os deputados e senadores beneficiem seus candidatos a prefeito e
vereador nas eleições de 2024.
Dependente do Centrão, o governo Lula cedeu
aos desejos do Congresso, mas diminuiu o prejuízo político, ao evitar a redução
de R$ 17 bilhões que os parlamentares queriam fazer nas dotações do PAC. Foram
feitos cortes de R$ 6,5 bilhões no PAC para manter o total de emendas de R$ 53
bilhões, mas o governo teve de fazer cortes nas verbas de ministérios sob
comando do PT para chegar à conta exigida pelo Congresso. Nela também entrou a
redução no valor do salário mínimo - de R$ 1.421 para R$ 1.412- decorrente de
inflação pelo INPC menor do que a prevista, o que gerou uma folga de R$ 6,5
bilhões. Os investimentos do PAC serão de R$ 54 bilhões.
Assim criou-se quase que um orçamento
paralelo de investimentos - o planejado pela União, um pouco mais de R$ 1
bilhão acima daquele que será destinado a obras indicadas por deputados e
senadores, que não guardam sintonia com as prioridades nacionais estabelecidas
pelo governo federal. O governo tentou ainda convencer os parlamentares a, em
troca do aumento dos recursos para emendas, que pelo menos elas fossem
destinadas aos projetos do PAC. A oferta foi explicitamente rejeitada e o jeito
foi cortar o PAC e outras rubricas, como o Minha Casa Minha Vida, que perdeu R$
4,1 bilhões, com dotação de R$ 8,9 bilhões.
Além da data para a liberação do dinheiro das
emendas, que nunca havia sido estabelecida, os parlamentares colocaram mais
limites para restringir a ação do Executivo. Passaram por cima da necessidade
de enviar ao ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, a lista
de obras com as respectivas verbas a serem encaminhadas aos ministérios
responsáveis. As demandas agora irão diretamente aos ministérios, sem
intermediários. Além disso, o governo não poderá contingenciar o dinheiro das
emendas. Caso haja necessidade de fazê-lo, terá de solicitar a concordância do
autor da emenda e compensá-lo em outras obras por ele indicadas, reduzindo
recursos de outros itens do orçamento.
A ação do Centrão mira antes de tudo
resultados eleitorais. Partidos como PL, PP, PSD e Republicanos estão entre os
que mais cresceram na representação no Congresso e querem maiores bancadas nas
eleições de 2026. Um dos caminhos para isso é fortalecer suas bases municipais
no pleito de 2024, para o qual pretendem despejar uma quantia desmesurada de
recursos. O fundo eleitoral foi ampliado para R$ 4,9 bilhões, valor igual ao
utilizado em 2022 nas eleições para governadores, deputados, senadores e
presidente, e mais do que o dobro do R$ 1,9 bilhão destinado nas eleições
municipais de 2020.
A ampliação é um despropósito. Os colégios
eleitorais de disputa para prefeitos e vereador são muito menores, apesar do
número superior de candidatos. Os gastos são maiores nas grandes cidades e
capitais, mas no Brasil 91,9% dos 5.570 municípios têm menos de 50 mil
eleitores. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, foi contra o aumento dos
recursos, defendendo que o valor autorizado nas últimas eleições municipais
fosse corrigido pela inflação, resultando em algo em torno de R$ 2,7 bilhões.
Foi derrotado pela aliança entre o PT e o PL bolsonarista, que serão os
principais beneficiados pelo aumento das verbas eleitorais, das quais R$ 4
bilhões serão provenientes das emendas de bancadas estaduais. O PL terá a maior
quantia, e o PT, a segunda maior.
As cúpulas partidárias sairão ainda mais
fortalecidas depois dessa injeção de dinheiro da qual terão papel decisivo na
distribuição. As emendas PIX, que irão direto para prefeitos sem que haja
destinação específica para o recurso, de baixa transparência, subirão em 2024 a
R$ 8 bilhões. Os partidos do Centrão tiveram também aumento da dotação dos
ministérios que comandam. O dos Esportes, dirigido por André Fufuca (PP-MA),
entrou no Projeto de LDO com R$ 607,7 milhões e sai da Comissão Mista de
Orçamento do Congresso com o quádruplo, R$ 2,55 bilhões. O do Turismo, com
Celso Sabino (União-PA) pulou de R$ 270 milhões para R$ 2,3 bilhões.
A disputa por uma fatia menor do que 10% do orçamento, a dos gastos discricionários, resultou em perda para o Executivo, que deixa progressivamente de contar com instrumentos políticos para obter consensos e uma base parlamentar estável. Mesmo assim, é possível e desejável que o governo se esforce para chegar o mais perto possível da meta de déficit fiscal zero, o que permitirá que os juros caem mais e mais rápido e os investimentos avancem.
Política perdulária
Folha de S. Paulo
União entre Congresso e governo para alta do
gasto é risco de inflação à frente
Ao aprovar o Orçamento federal de 2024, o
Congresso prosseguiu na tendência de avançar em
proveito próprio sobre parcelas crescentes da despesa pública, com
escassa atenção à qualidade das ações e ao equilíbrio fiscal.
Se a palavra final dos legisladores sobre os
gastos do Estado é atributo da democracia, é preciso também que eles respondam
sobre a aplicação dos recursos. Não se encontrará justificativa para a
enormidade de R$ 53 bilhões em emendas parlamentares, quase metade disso
pulverizado em obras e eventos paroquiais definidos individualmente por
deputados e senadores.
Tampouco se vê benefício para a sociedade com
a ampliação para quase R$ 5 bilhões do fundo destinado a financiar campanhas de
candidatos a vereador e prefeito —mais que o dobro do montante disponível para
os partidos nas eleições municipais anteriores.
Numa inovação, foram incluídos dispositivos
que obrigam o governo a empenhar os recursos das emendas ainda no primeiro
semestre, convenientemente a tempo de impactar os pleitos.
Como o dinheiro é finito e há limites para o
déficit do Tesouro, as despesas criadas pelos congressistas em proveito próprio
terão de ser compensadas por cortes em outras áreas. Já se tiraram R$ 6,3
bilhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), fixado afinal em R$ 55
bilhões.
Também se reduziram dotações orçamentárias
para ministérios importantes, como Transportes, Saúde e Educação. Mais
bloqueios deverão ocorrer em 2024.
Foi mantida,
por ora, a desacreditada meta de déficit zero —o que, de todo
modo, representa uma vitória do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que ainda
luta para elevar a arrecadação.
A aprovação de projetos com essa finalidade
no final do ano dá algum alento à política fiscal, mas a recusa do governo Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) em conter a expansão de gastos não autoriza otimismo.
O Tesouro Nacional acumula um rombo de R$ 108
bilhões nos 12 meses encerrados em outubro, sem contar o pagamento de juros, e
a cifra ameaça se aproximar dos R$ 200 bilhões no ano. A pressão por revisar a
meta de equilíbrio orçamentário será permanente daqui em diante, assim como a
necessidade de contingenciamentos.
O Planalto teve neste ano mais facilidade que
o usual em elevar a já excessiva carga tributária com o beneplácito do
Congresso —ao qual se associou na elevação generalizada de despesas.
O alinhamento de interesses é risco para o
contribuinte. A aparente generosidade de Brasília é financiada com impostos,
endividamento, a ser pago por todos com juros, e pressão inflacionária à
frente.
Metrópole vertical
Folha de S. Paulo
Caberá ao prefeito de SP avaliar o novo
zoneamento, que permite edifícios maiores
À luz de mudanças
substanciais no que havia sido acordado em votação no primeiro
turno, inclusive com um controverso substitutivo apresentado horas antes da
votação, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou em definitivo,
na quinta-feira (21), a revisão da Lei de
Zoneamento da cidade.
Vinculado ao Plano Diretor,
que traça as diretrizes gerais do desenvolvimento urbano, o regramento
objetiva, em tese, esmiuçar controle e uso do solo, garantir o equilíbrio de
suas finalidades (comercial, residencial, industrial) e promover o ordenamento
territorial sob lógicas funcionais e sustentáveis.
Em uma metrópole com 12 milhões de
habitantes, grave déficit de moradia, histórico de alagamentos, transporte
público insuficiente e tráfego saturado, é legítima a apreensão de urbanistas
com o que foi deliberado de afogadilho, sem maior escrutínio público, diante
das possíveis transformações no cotidiano dos paulistanos.
O impacto maior está nos miolos dos
bairros, regiões que conciliam uso residencial e empresarial,
maioria na capital, e nas zonas de centralidade, onde a prioridade é a
iniciativa privada, com construções maiores.
Em ambas ficou acertado que o limite de
altura dos edifícios poderá aumentar consideravelmente.
Com prédios maiores, mais garagens e menos drenagem na superfície, teme-se, no
atual contexto de mudanças climáticas, piora no trânsito e nos alagamentos.
Preocupa, também, o fato de que o incentivo à
verticalização nessas áreas vai de encontro às premissas do Plano Diretor, que
projetou uma concentração maior nos eixos onde há rede de transporte
—justamente para facilitar a mobilidade.
No rol das novidades de última hora entraram
a liberação de habitações de interesse social em zonas de proteção ambiental, o
que hoje é proibido, e um arranjo que dá ao Legislativo a palavra final sobre
qualquer proposta de tombamento que altere parâmetros urbanísticos, pondo em
xeque a atuação do Conpresp, um órgão técnico.
É bem-vindo um adensamento
mais uniforme, com a inclusão de estratos diversos da sociedade no
centro expandido, o que pode frear o avanço da periferização.
Estabelecer alcance e efeitos desse processo é tarefa do prefeito Ricardo Nunes (MDB), que dará seu parecer, inclusive com vetos ou não, ao que foi aprovado —muito diferente, registre-se, do que sua gestão havia concebido inicialmente.
Haddad e a quadratura do círculo
O Estado de S. Paulo
Ministro conseguiu façanha de articular uma agenda responsável mesmo sendo desautorizado por Lula e boicotado pelo PT; resta saber se terá a mesma força ante os imperativos eleitorais
O ministro
da Fazenda, Fernando Haddad, tem boas razões para comemorar o ano que passou.
Em um governo de esquerda liderado por um presidente abertamente avesso à
responsabilidade fiscal, o ministro conseguiu avanços importantes em sua agenda
econômica, que não teriam sido possíveis sem muita negociação com o Congresso.
O Orçamento impôs, antes mesmo da posse, um
enorme desafio ao ministro. A emenda constitucional da transição impulsionou
gastos em um nível muito acima do necessário para recompor a verba das
políticas públicas devastadas por anos de bolsonarismo. Dar fim ao
desmoralizado teto de gastos e propor um novo arcabouço fiscal em seu lugar foi
a primeira de suas tarefas, e, para isso, precisou vencer a resistência de seu
próprio partido e do presidente Lula da Silva para impor uma nova âncora, ainda
que frouxa.
Aos trancos e barrancos e sob muito
ceticismo, o ministro conseguiu apoio para as medidas que podem ampliar a
arrecadação no ano que vem por meio da taxação dos fundos exclusivos e
offshore, apostas esportivas e a regulamentação das subvenções de ICMS. E,
depois de décadas de debates e uma enorme dificuldade para formar um consenso
mínimo, a reforma tributária sobre o consumo foi finalmente aprovada pelo
Congresso.
Pode-se argumentar que a nova âncora não é
firme o suficiente para reequilibrar as contas públicas e conter a trajetória
de crescimento da dívida pública. Enfraquecidas ao longo da tramitação
legislativa, as medidas de reforço de arrecadação definitivamente não
alcançarão as ambiciosas metas calculadas pela equipe econômica. Os tratamentos
privilegiados que a reforma manteve ou criou trouxeram dúvidas sobre a alíquota
final do novo imposto. Muita gente não está convencida do potencial que a
reforma tributária pode gerar em termos de eficiência e produtividade da
economia.
Porém, com exceção da desoneração da folha de
pagamento, apoiada por boa parte do PIB nacional e do Congresso, o ministro
soube escolher bem as batalhas em que entrou. É fato que cada uma delas saiu
cara em termos de emendas e cargos, mas foi um custo que o ministro – e, por
óbvio, o próprio presidente Lula da Silva – aceitou pagar para construir a
credibilidade da política econômica do governo.
Felizmente, a economia também conseguiu andar
com as próprias pernas. O desempenho do agronegócio deve garantir um
crescimento de 3% ao Produto Interno Bruto (PIB) neste ano, o Banco Central
(BC) tem vencido a resistência da inflação pós-pandemia e o desemprego segue em
patamares historicamente baixos.
No exterior, os conflitos entre Rússia e
Ucrânia e Israel e Hamas continuarão a dominar o cenário internacional, bem
como as incertezas sobre a economia nos Estados Unidos, Europa e China. O
Brasil, no entanto, tornou a ser visto como um porto seguro para investidores,
sobretudo depois que voltou a se comprometer com o avanço da agenda ambiental e
o combate ao desmatamento.
Há riscos a serem enfrentados no ano que vem.
Os sinais de desaceleração da economia têm encorajado os defensores do gasto
público a retomar a carga por medidas do passado, a reeditar tentativas de
driblar a regra fiscal e a apostar em estatais como motor de desenvolvimento.
As eleições municipais são sempre um estímulo adicional para a aprovação de
gastos sem qualidade.
Caberá ao ministro usufruir da legitimidade
que o Congresso lhe deu para seguir em frente, ajudar a regulamentar a reforma
tributária e suas leis complementares e enviar a segunda etapa da proposta,
sobre a renda. Seu maior teste será em março, quando o governo terá de tomar
uma decisão sobre a meta de déficit zero em 2024.
Há, no entanto, uma lição a ser tirada deste
ano. Quanto maior o alinhamento com o Congresso, maior a chance de a agenda
econômica do ministro avançar. Se Haddad não levou tudo o que queria, o saldo
final dessas negociações foi positivo para a sociedade. Espera-se, portanto,
que o ministro tenha sabedoria para fazer boas escolhas, dividir o mérito delas
com o Legislativo e, apesar do boicote petista e da ambiguidade de Lula,
resistir no caminho da responsabilidade fiscal.
O Brasil de volta ao futuro
O Estado de S. Paulo
Como sugere o Banco Mundial, só um contrato
social que combine a demanda típica da esquerda por inclusão com a da direita
por produtividade conduzirá a um crescimento sustentável
Ao completar 200 anos, o Brasil independente
teve o que celebrar e o que lamentar. Após restaurar sua democracia, em 1988,
os mercados se tornaram mais abertos e inclusivos, e o Plano Real estabilizou a
macroeconomia. Com o superciclo das commodities, o País se consolidou como uma
economia de renda média alta entre as 10 maiores do mundo, e a igualdade e a
proteção social se ampliaram. Ainda assim, o Brasil é só 11% tão rico quanto,
por exemplo, os EUA, e passado o superciclo enfrentou uma recessão que enfraqueceu
o mercado de trabalho e aumentou a pobreza, a desigualdade e a dívida pública.
O que o Brasil independente celebrará ou
lamentará em seu 220.º aniversário, em 2042? A questão foi levantada pelo Banco
Mundial no estudo O Brasil do Futuro. Segundo ele, para ativar um círculo
virtuoso de produtividade, inclusão e sustentabilidade, o País precisa corrigir
distorções históricas – refletidas nos “muitos Brasis” – que determinaram a
distribuição desigual de ativos e a disfuncionalidade das instituições que
governam seu uso. Ao mesmo tempo, precisará transformar megatendências – como
as transições energéticas, demográficas e tecnológicas – em oportunidades.
O princípio e o fim deste círculo é a
construção de um novo contrato social com três focos: ampliar a confiança na
capacidade do Estado de entregar suas promessas (através de mecanismos de
governança que melhorem a responsabilização e transparência); ampliar a
confiança das pessoas na capacidade do Estado de mantê-las seguras (reduzindo
fatores de risco sociais e individuais da violência e implementando
intervenções que viabilizem a resolução pacífica de conflitos); e reduzir a
fragmentação social (diminuindo a disseminação de desinformação e promovendo
reformas que construam confiança, cidadania e inclusão).
A dinâmica desse círculo depende de medidas
que promovam a produtividade e a inclusão, de modo que se reforcem mutuamente.
O Banco Mundial identifica seis áreas críticas de reforma: (i) ampliar a
produtividade no setor privado para promover o crescimento sustentável; (ii)
preparar a educação para fechar lacunas entre habilidades e empregos; (iii)
fortalecer a relevância e sustentabilidade dos sistemas de proteção social;
(iv) remodelar uma política fiscal limitada; (v) melhorar o acesso à
infraestrutura; e (vi) construir um sistema tributário mais equitativo e
eficaz.
A depender do sucesso ou fracasso dessas
medidas, o Banco projeta quatro cenários. O pior (a “Distopia Brasileira”)
perpetuaria o círculo vicioso de baixa produtividade, baixa inclusão e
degradação ambiental. Por falta de reformas, os serviços desiguais e o
desemprego alto estimulariam convulsões sociais, incentivando políticas
populistas e clientelistas.
Outra possibilidade (a “Estagnação Unida”) seria o progresso somente na inclusão. Mas o foco na redistribuição seria insuficiente para o crescimento do País em um mundo altamente tecnológico e produtivo. Uma possibilidade inversa (a “Grande Divisão”) seria o progresso só na produtividade. As elites enriqueceriam, mas os pobres seguiriam na vala comum do desespero, onde cairiam porções crescentes das classes médias. As tensões sociais e tentações autoritárias cresceriam, prejudicando o potencial para o comércio global e investimentos.
No melhor cenário, o País proveria acesso
igual à infraestrutura e mercados de crédito. As divisões sociais diminuiriam,
fundando os alicerces para reformas ambiciosas. Com um contrato social forte e
o crescimento inclusivo da produtividade, os benefícios das mudanças
tecnológicas e de uma melhor educação seriam sentidos por todos. O Brasil
manteria sua diversidade – social, econômica e política –, mas os muitos Brasis
se aproximariam e progrediriam juntos, transformando-se na “Usina de Energia
Latino-Americana”.
Em resumo, na perspectiva do Banco Mundial o
futuro do Brasil é incerto, mas as megatendências globais podem ser
transformadas em oportunidades e está nas mãos dos brasileiros aproveitá-las
para construir uma Nação mais produtiva, inclusiva e sustentável.
O mandachuva de São Paulo
O Estado de S. Paulo
Nova recondução de Milton Leite à presidência da Câmara Municipal desserve a cidade e a democracia
Contam-se nos dedos da mão os vereadores que
acumularam tanto poder em São Paulo como Milton Leite (União), que acaba de ser
reconduzido ao cargo de presidente da Câmara Municipal para um inédito quarto
mandato. É lamentável constatar que 49 dos 55 vereadores paulistanos tenham se
prestado à ignomínia de fazer pouco-caso de um dos atributos mais elementares
do regime democrático, a alternância no poder. Só a bancada do PSOL votou
contra.
Leite jura que seu novo período à frente da
Mesa Diretora não só será o último, como, na eleição do ano que vem, os
eleitores nem sequer encontrarão seu nome nas urnas. “Não volto para esta Casa
em 2025”, disse o vereador durante a votação que o reconduziu ao cargo, no dia
15 passado. Acredite quem quiser.
Nos últimos tempos, as promessas do
presidente da Câmara Municipal atingiram o mesmo grau de confiabilidade dos
semáforos da capital paulista em dias de chuva. Há bem pouco, convém lembrar, o
mesmíssimo Leite havia assumido um compromisso público de não se candidatar a
mais uma reeleição para o comando do Legislativo municipal. Sob seu patrocínio,
grande parte da Casa que ele dirige com mão de ferro há três anos ininterruptos
tem alterado a Lei Orgânica do Município para permitir sua permanência no poder.
Na última alteração, foi aprovada a possibilidade de reeleições ilimitadas da
Mesa Diretora, numa incomum união entre adversários políticos, à esquerda e à
direita, para abastardar a democracia representativa.
Não se sabe o que, afinal, galvaniza bancadas
tão distintas ideologicamente, como as do PT e do PL, em torno de Milton Leite,
mas uma coisa é certa: não é o bem-estar dos paulistanos. A demasiada
concentração de poder nas mãos do presidente da Câmara Municipal em nada atende
ao melhor interesse público.
Hoje, é possível afirmar que quase nada
acontece em São Paulo sem a anuência de Milton Leite, alguém que é visto pelo
establishment político como tão ou mais poderoso do que o próprio prefeito
Ricardo Nunes (MDB). Na metrópole que deveria servir de exemplo para o País,
tanto poder nas mãos de um mandatário jamais pode ser encarado como algo
normal.
Decerto os apoiadores de Milton Leite dirão
que o vereador tem sido reconduzido ao cargo por livre escolha de seus pares.
No entanto, isso em nada releva o fato de que a vereança paulistana, com todos
os desafios que tem de enfrentar, abre mão, sabe-se lá por quais razões, de um
necessário arejamento de ideias, de novos olhares para as questões da urbe e
seus habitantes. Ao menos por ora, tudo isso é ofuscado pelo projeto de poder
de Milton Leite e seu grupo político.
A mais recente recondução do poderoso vereador à presidência da Casa já seria um problema grave se São Paulo estivesse um primor. E não está. A sensível queda da qualidade de vida na cidade, claro, deve-se em grande medida à incapacidade administrativa do atual prefeito. Mas o quadro não seria tão ruim se a Câmara Municipal fiscalizasse o governo como deveria. Ao que parece, contudo, o sr. Leite tem outras prioridades.
Um país com novo retrato e velhas demandas
Correio Braziliense
O país que se enxerga de um novo jeito tem,
agora, informações oficiais para embasar mudanças, incluindo um fazer político
que considere a força do atual movimento de pertencimento etnico-racial
O número de pessoas que se declaram pardas no
Brasil é, pela primeira vez, maior que o de brancas: 45,3% e 43,5% da
população, respectivamente, segundo novos dados do Censo 2022. Desde 1991, a
mudança se sinalizava. À época, as taxas eram de 42,5% e 51,6%,
respectivamente; 20 anos depois, 43,1% e 47,7%. Com a virada no recorte cor ou
raça, o país que se enxerga de um novo jeito tem, agora, informações oficiais
para embasar mudanças cotidianas, incluindo um fazer político que considere a
força do atual movimento de pertencimento étnico-racial e todas as suas
facetas.
Somos mais pardos e também mais indígenas e
pretos, por exemplo. E esse processo de reconhecimento foi, estatisticamente,
ainda maior na última fase do recenseamento, de 2010 a 2022. Enquanto a
população parda teve um aumento percentual de 11,9%, a evolução da indígena foi
de 89%, e a da preta, 42,3%. No mesmo período, a população brasileira como um
todo cresceu 6,5% — o que indica que apenas as taxas de natalidade não
explicariam o atual retrato étnico-racial brasileiro.
Segundo a coordenadora do Censo de Povos e
Comunidades Tradicionais, Marta Antunes, fatores como migração, fecundidade e
mortalidade serão considerados em futuras análises sobre esse novo recorte. A
especialista explica que os critérios de pertencimento variam de acordo com o
contexto social, as relações interraciais e a forma como cada indivíduo se
percebe — ou seja, aspectos pessoais e coletivos. Não há dúvidas de que há um
movimento em curso no país de valorização da negritude e de resgate das origens
entre pessoas de diferentes faixas etárias.
Quanto aos aspectos mais coletivos, entre os
fatores que podem favorecer a sensação de pertencimento, está a maior
representatividade em cargos estratégicos públicos e privados. As contratações
estão longe de reproduzir o Brasil das ruas, mas há sinais de mudança, como a
nomeação de Sônia Guajajara, primeira ministra indígena do país, e, mais
recentemente, a de Vera Lúcia Araújo, nova ministra substituta do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE).
Em entrevistas ao Correio ao longo deste ano,
a advogada, que não "tem tradição jurídica na família", ressaltou que
o Brasil tem "uma elite negra cultural e acadêmica" preparada para
dialogar com os governos e pensar junto. "O fazer jurídico pelo Estado
somente pode ser qualificado se você insere na cúpula um pensamento mais
diverso, mais oxigenado, que carrega os saberes das nossas maiorias" ,
indicou, em março.
Verinha é a segunda negra a ocupar uma vaga
na instância máxima da Justiça Eleitoral — em agosto, o presidente Lula indicou
Edilene Lôbo. Era também um dos nomes estampados em campanhas do movimento
negro para a vaga do Supremo Tribunal Federal (STF) aberta com a aposentadoria
de Rosa Weber. Esse tipo de pressão, segundo especialistas, ganha embasamento
com dados científicos, como os do IBGE, que evidenciam as discrepâncias entre a
forma como a população brasileira se percebe e como é representada.
Nesse sentido, os dados inéditos sobre a
população quilombola brasileira, trazidos também pelo Censo 2022, são
importante ferramenta estatística para jogar os holofotes sobre uma população
ainda mais invisível no mapa oficial do país. Pela primeira vez, retratou-se um
grupo composto por 1,32 milhões de pessoas, quase a população de Recife,
distribuídas em 1.696 municípios. Presente na divulgação dos dados, a
secretária-executiva do Ministério da Igualdade Racial, Roberta Eugênio,
afirmou que, "para fazer política para o povo, é preciso fazer com o
povo". O povo respondeu ao chamado, disse aos recenseadores quem é e
precisa ser legitimado.
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