quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Ao aceitar corte de gastos, Haddad revela sensatez

O Globo

Para cumprir meta fiscal e aumentar credibilidade, ministro deveria adotar plano de contenção de despesas

É conhecida a resistência do PT a cortar gastos para equilibrar as contas públicas. A ideia de que “gasto é vida” e a dívida pública apenas uma distração infelizmente continua a ter adeptos com gabinetes na Esplanada dos Ministérios ou acesso ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Felizmente, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem demonstrado bom senso em relação à questão. Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, Haddad afirmou haver espaço para corte de gastos na máquina pública — necessidade há muito evidente para cumprir a meta de déficit fiscal zero.

Ao explicar não haver incongruência entre ser de esquerda e a favor do equilíbrio das contas públicas, Haddad diz uma obviedade, é certo, mas trata-se de mensagem necessária em Brasília — e mais importante neste ano de teste do novo arcabouço fiscal. Ainda que de forma oblíqua e cautelosa, Haddad demonstrou ter noção de que, com toda a cooperação do Congresso no ano passado aprovando diversas medidas para aumentar a arrecadação, não haverá como equilibrar as contas apenas pela via das receitas. Será preciso cortar.

Ele disse acreditar ser possível haver consenso no tema, tendo como ponto de partida a redução ou a extinção de despesas que não despertam controvérsia. “Tem de começar pelo que ninguém vai discutir se é justo”, disse. “Um pacto a começar de cima para baixo, e aí cortando com racionalidade, levando em consideração justiça social, desigualdade, princípios com os quais todo mundo é capaz de concordar.”

Como exemplo do que pode avançar, citou o Projeto de Lei (PL) dos supersalários dos servidores, apresentado em 2016, aprovado pela Câmara em 2021 e, de lá para cá, parado no Senado. O teto do funcionalismo é o salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), atualmente R$ 41.650,92 e, a partir de fevereiro, R$ 44.008,52. Estudo do Centro de Liderança Pública (CLP) estimou haver 25.300 servidores dos três níveis de governo que encontraram brechas para ganhar acima do limite. Embora sejam só 0,23% dos estatutários, são responsáveis por gastos anuais que somaram quase R$ 4 bilhões em 2023. Não é preciso fazer um plebiscito para descobrir que a maioria da população é contra tal distorção.

A preocupação de Haddad de começar “de cima para baixo” tem razão de ser. Pelos últimos dados do IBGE, 67,8 milhões de brasileiros vivem na pobreza e 12,7 milhões na pobreza extrema. A desigualdade continua alta, e a concentração de renda voltou a crescer. Por isso mesmo, é necessário avaliar a eficácia dos programas sociais. O próprio governo percebeu o inchaço do Bolsa Família, resultado do aumento nas famílias de um só integrante no governo Bolsonaro. Estabelecer critérios mais justos na distribuição de recursos, como já vem sendo feito, é outro ponto capaz de facilmente atingir consenso.

Haddad clama por um pacto entre os três Poderes pelo ajuste fiscal. Mas a responsabilidade primordial é do Executivo. Em 2023, o trabalho em parceria com o Congresso resultou em aumento da arrecadação. Chegou a hora de o governo mostrar a mesma habilidade nos cortes de despesas, num ano de desaceleração do crescimento econômico, eleições municipais e metas fiscais em risco. Um programa sensato de cortes, com o apoio indispensável de Lula, contribuiria para manter, ou mesmo elevar, a credibilidade que Haddad conquistou junto ao mercado financeiro e aos setores produtivos.

Incertezas sobre economia chinesa devem ser acompanhadas de perto

O Globo

Crescimento desacelera, crise imobiliária persiste, população envelhece, e risco de deflação é real

O governo chinês enviou ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, o primeiro-ministro Li Qiang, segundo na hierarquia do Partido Comunista Chinês. Desde 2017, quando Xi Jinping participou do encontro, nenhuma autoridade tão graduada tinha ido a Davos. Li anunciou que a economia chinesa cresceu 5,2% no ano passado, acima da meta de 5% definida pelo partido. Poucos na plateia celebraram. No início de 2023, a expectativa era um crescimento bem mais robusto, com o fim da quarentena radical imposta pelo governo para combater o coronavírus. Com exceção de dois anos na pandemia, foi o pior resultado desde 1990.

Mais preocupantes são os prognósticos para 2024. O Banco Mundial prevê desaceleração, com crescimento de 4,5% neste ano e 4,3% em 2025. O Fundo Monetário Internacional (FMI) previa em outubro 4,2% para 2024. O mundo tenta entender as dificuldades, já que a China é um dos motores da economia global. No Brasil, a atenção é redobrada. Os chineses estão entre os maiores investidores e compraram 31% das nossas exportações em 2023 (US$ 104,3 bilhões).

O problema mais evidente na China é a crise imobiliária. O setor encolhe desde 2021. O ano passado registrou a menor quantidade de construções desde 2006. Os preços de imóveis também estão em queda. Depois do pico em 2021, caíram 6%. Antes visto como investimento seguro, o setor imobiliário deixou de ser atraente. A confiança do consumidor também está em baixa. O risco de deflação é real. Em dezembro, pelo terceiro mês consecutivo, o índice de preços ao consumidor foi negativo.

O governo chinês é conhecido por estudar profundamente as crises dentro e fora do país para tentar evitá-las. O desafio de ajudar o setor imobiliário é enorme. Uma ação muito lenta pode levar à queda rápida e acentuada nos preços, com consequências devastadoras para o balanço de bancos e a poupança das famílias. A manutenção ou o aumento artificial dos preços por algum tempo não necessariamente convencerão o mercado de que o pior passou e salvarão do contágio as empresas saudáveis. A saída de um modelo de crescimento impulsionado, em grande parte, pelo mercado imobiliário não costuma ser suave nem simples.

A China enfrenta esses desafios ao mesmo tempo que a população envelhece e a força de trabalho encolhe. No front externo, a rivalidade com os Estados Unidos fica a cada dia mais saliente, situação agravada pela eleição recente de um nacionalista para presidente em Taiwan. Analistas experientes no Brasil afirmam que nada é tão alarmante. Apontam para o histórico positivo das ações da Vale, fornecedora de minério de ferro aos chineses, e para diversos outros negócios em efervescência na relação bilateral. Em qualquer situação, o desempenho da economia chinesa precisa ser acompanhado de perto. O país é importante demais, e os riscos não são desprezíveis.

Falta identificar recursos para subsídios à política industrial

Valor Econômico

Crédito indexado à TR mais 2% terá juro negativo

A Nova Indústria Brasil (NIB), como foi batizada a política industrial do terceiro governo Lula, tem méritos e muitos defeitos. Acerta a grosso modo os alvos que devem ser atingidos para modernizar o país - melhorar a produtividade, deslanchar a inovação, garantir a sustentabilidade ambiental de todo o processo e ampliar as exportações -, mas aumenta tanto o raio das ações que o foco parece perdido, e os meios para se chegar aos objetivos, difíceis de discernir. Sua filosofia, ainda que busque a modernidade, tem a cara do retrocesso. Por último, e não menos importante, não há recursos para executar o programa. Ele não para em pé sem subsídios, em um orçamento que tem o objetivo de zerar o déficit. Essa meta torna-se ainda mais incongruente depois do anúncio da NIB.

O estabelecimento de missões é um avanço, ao romper a divisão burocrática de ministérios, secretarias, autarquias etc., e ao encarregá-los da execução dos desdobramentos necessários de políticas prioritárias, antes confinadas a uma pasta ou algumas comissões. Isso, porém, exige um esforço de coordenação enorme e uma eficiência da burocracia estatal brasileira que ela não tem. Lotada de cargos de confiança indicados politicamente e mutável a cada governo, a gestão estatal é, em geral, péssima.

Os governos petistas gostam de amplificar suas ações, que se tornam grandiosas e inexequíveis. A primeira fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 1) concluiu 9,3% das 16.500 ações propostas entre 2007 e 2010. O PAC 2 herdou 60% dessas ações, inconcluídas. Sem obras de saneamento, pelo levantamento da consultoria Inter.b, o PAC 1 cumpriu 25,4% do que prometeu, e o PAC 2, 36%. Estamos no PAC 3, com promessa de R$ 1,7 trilhão de investimentos.

A nova política industrial muda a chave do Estado “indutor” para o Estado “condutor” das mudanças econômicas modernizantes. O DNA desenvolvimentista do governo é inadequado para isso. Ainda que não seja de fato uma repetição da desastrosa política de campeões nacionais das gestões Lula-Dilma, os instrumentos mais importantes do programa o são. As margens de preferência nas compras governamentais são maiores quando envolvem conteúdo tecnológico - 20% de vantagem a favor de empresas nacionais, ante 10% nas demais. Sem qualificações maiores, é a defesa de tecnologia empregada por uma empresa nacional sobre outra de uma empresa estrangeira, sem juízo de valor ou adequação, apenas de preço, típico de reservas de mercado.

Uma das palavras que melhor resumem a nova política é conteúdo local, condição essencial para o usufruto dos financiamentos e licitações de compras do governo disponíveis. Como se trata de aproximar o país da fronteira tecnológica industrial global, a exigência é um enigma. Uma suposição, com base em experiências passadas, é de que se vai subsidiar a invenção da roda, como a ditadura fez com a indústria de informática, condenando o Brasil a um atraso de décadas. Ou mais recentemente, as exigências para a indústria petrolífera, que empilharam custos mais altos e corrupção em uma experiência fracassada.

A nova política industrial combina com o perfil de um dos países mais fechados do mundo e pretende-se autóctone. Há a consciência de que é necessário ampliar as exportações, mas a palavra importação inexiste no programa. Importações mais baratas, especialmente em máquinas e equipamentos, são insumos vitais para manufaturas de exportação competitivas e para a irradiação do aprimoramento tecnológico por todo o parque industrial. A proteção tarifária da indústria automobilística local, agora estendida aos carros elétricos, parece ilustrar bem o conteúdo que se quer privilegiar, uma ação que só conduz ao atraso, como a experiência brasileira demonstra.

O governo aplicará R$ 300 bilhões até 2026 na nova política industrial, R$ 194 bilhões a mais que o previsto em meados de 2023. “O problema era dinheiro”, disse no lançamento do programa o presidente Lula, sugerindo que de repente não é mais. Aloízio Mercadante, presidente do BNDES, foi além e disse que R$ 300 bilhões eram apenas o “piso” do que se almeja financiar. Mas há falta de recursos, tanto que o governo tem se virado para arrumar formas de aumentar a arrecadação. As fontes de financiamento não estão explicitadas.

O vice-presidente Geraldo Alckmin disse que R$ 66 bilhões serão financiados pela TR mais 2% (TR de 12 meses é de 1,64% em janeiro). Em um jabuti de MP prorrogando o Pronampe, em maio, o uso de recursos do Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia (FNDCT) foi vinculado à TR. No orçamento de 2024, a dotação do fundo é de apenas R$ 12 bilhões. Em dezembro, o Executivo enviou ao Congresso o PL 6235, ampliando o funding do BNDES. Além da TLP, formada pela NTN-B de cinco anos mais IPCA (hoje de 5,6% mais inflação), haverá taxas prefixadas de 3 anos e de 5 anos. Mas a lei muda a TLP, e a média de juros para todas as taxas passa de trimestral a anual. A TR hoje é inferior à inflação e o crédito a ela indexado terá juro negativo.

O governo busca criar recursos que não possui para financiar programas equivocados. Dessa forma, tem tudo para dar errado de novo. A aguardar maior detalhamento.

Política da indústria

Folha de S. Paulo

Riscos como crédito ineficiente e favorecimento não serão sanados com patriotada

Para fazer jus ao nome, o plano Nova Indústria Brasil (NIB), lançado pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), deveria ser precedido por uma avaliação transparente e fundamentada dos custos e resultados de iniciativas anteriores do tipo —em especial na gestão da correligionária Dilma Rousseff, que terminou em colapso econômico.

Sem isso, não há como saber a que a administração petista atribui o fracasso da década passada nem como pretende evitar os erros desta vez. Se tanto, Brasília indicou ambições mais modestas.

Como de hábito nessas ocasiões, providenciou-se um número sonoro para embalar um conjunto intrincado de ações e metas. Prometem-se R$ 300 bilhões em crédito favorecido até 2026, a maior parte a cargo do BNDES.

Os alvos misturam pautas do momento, como transformação digital e transição energética, a velhas obsessões dos assim chamados desenvolvimentistas, como a ampliação da produção nacional em saúde e defesa. A isso se somam infraestrutura urbana e agroindústria.

É cedo para saber se o NIB ficará mais restrito ao terreno da propaganda, contido pelas restrições orçamentárias atuais, ou se o governo repetirá a tentativa de estimular a indústria e o PIB com recursos do Estado. Textos e discursos, até aqui, não são promissores.

O material de divulgação repetiu a cantilena da soberania e da preferência para o conteúdo local, enquanto Lula tratou o protecionismo comercial como uma espécie de inevitabilidade. Já o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, ex-chefe da Casa Civil de Dilma, cuidou de atacar inimigos imaginários como o Estado mínimo.

Políticas de incentivo à indústria nacional ganharam impulso no país a partir dos anos 1930, ampliando-se até a derrocada dos 1980. Em seu auge, geraram crescimento e diversificação da economia, mas também inflação elevada, concentração de renda, privilégios tributários intermináveis e empresas dependentes da proteção oficial.

No contexto de hoje, o crédito subsidiado não só implica custos para o Tesouro como tende a elevar os juros para os setores não favorecidos, ao reduzir a eficácia da taxa do Banco Central. O desejado impacto sobre investimentos, ademais, mostra-se incerto.

Acrescente-se aí o incentivo à multiplicação de lobbies privados sobre legisladores e gestores públicos —quando a política industrial se torna a política da indústria.

Tais vícios, dúvidas e riscos não serão sanados com patriotadas retóricas. A necessidade e a conveniência do novo plano estão por ser demonstradas, ainda mais no curso de uma reforma tributária que, se bem conduzida, pode dar alento duradouro ao setor produtivo.

Avanço civilizatório

Folha de S. Paulo

Presente em ao menos 25 países, uso da câmera policial deve se ampliar no Brasil

Políticas públicas devem ser baseadas em evidências, sejam domésticas ou de experiências de terceiros. Nesse sentido, o Brasil pode aprender com ao menos 25 países, conforme reportagem da Folha, a respeito do uso de câmeras corporais nas polícias.

Não que o dispositivo seja panaceia para o problemático setor da segurança pública. Contudo a prática internacional evidencia que se trata de avanço civilizatório ao qual têm recorrido as nações desenvolvidas, como EUA, Alemanha, Reino Unido, França, Austrália e outras.

E não por acaso. Especialistas afirmam que a transparência oferecida pelas câmeras acarreta benefícios sob diversos enfoques.

Do lado policial, as imagens ajudam aqueles que, embora tenham agido corretamente, veem-se alvo de acusações injustas; do lado dos cidadãos, elas os protegem de ações autoritárias e truculentas.

Verdade que estudos internacionais têm mostrado resultados ambíguos desse tipo de iniciativa. Isso se deve, porém, menos a deméritos do equipamento do que a falhas na sua regulamentação.

De resto, o nível de violência com o qual convivem os países mais desenvolvidos é, quando muito, um sonho distante para os brasileiros. Basta dizer que, aqui, a polícia mata cerca de 6.000 pessoas ao ano, enquanto muitas nações europeias contabilizam menos de 20 mortes.

Diferenças dessa natureza talvez expliquem por que as câmeras tiveram sucesso no Brasil, como mostram os primeiros dados.

Entre 2021 e 2022, as mortes relacionadas às forças de segurança caíram 26% em São Paulo e 37% em Santa Catarina, estados que implantaram a tecnologia. Nos batalhões paulistas que passaram a usá-la, houve queda de 85% na letalidade policial em 2021.

Tais números deveriam ser suficientes para que os gestores públicos no mínimo buscassem conhecer a ferramenta. Infelizmente, políticos ligados ao campo conservador —entre os quais, com idas e vindas, Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador de São Paulo— mostram resistência à ideia.

Sustentando, sem maior evidência, que os aparelhos prejudicam o trabalho em campo, preferem dar as costas a uma iniciativa que beneficia tanto a população civil quanto agentes de segurança.

Espera-se que o conhecimento e o interesse público prevaleçam sobre o corporativismo das polícias, com ou sem o estímulo de uma lei a ser proposta pelo governo federal.

A nova velha política industrial

O Estado de S. Paulo

Plano anunciado pelo governo Lula reedita medidas fracassadas do passado recente e ignora o fato de que o declínio da indústria brasileira antecede em décadas a pandemia de covid-19

O governo finalmente lançou seu plano para reindustrializar o País. De novo mesmo, apenas o nome. A Nova Indústria Brasil (NIB), elaborada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), reedita várias das medidas testadas e reprovadas num passado recente, e o esforço do governo para negar as semelhanças não convenceu quase ninguém.

O plano pretende resgatar o papel do Estado como indutor do desenvolvimento. Desde a pandemia de covid-19 e a consequente desestruturação das cadeias produtivas, vários países desenvolvidos têm apostado suas fichas em políticas industriais que promovam um crescimento mais inclusivo e sustentável e que diminuam a dependência dos produtos chineses, entre os quais Estados Unidos e Europa.

O Brasil parecia estar disposto a seguir esse caminho. Foi o que Lula da Silva e Geraldo Alckmin deram a entender no artigo Neoindustrialização para o Brasil que queremos, publicado por este jornal em 25 de maio do ano passado. No texto, destacaram a importância de investimentos em tecnologia e sofisticação produtiva, a necessidade de reduzir o custo Brasil, as oportunidades geradas pela transição energética e a urgência de formação de capital humano.

Não há motivos para se opor a essas ideias. Houve, de fato, pouquíssimo investimento em inovação e maquinário, os juros continuam muito elevados para financiar a produção, algumas empresas usam a agenda verde apenas para alavancar sua imagem (o chamado greenwashing) e falta mão de obra qualificada. Muitos segmentos da indústria sobrevivem à base de benefícios fiscais e nem assim conseguem exportar seus produtos a preços competitivos.

Propor soluções para enfrentar problemas é tarefa de qualquer governo responsável e cioso de suas obrigações. Mas, como Lula e Alckmin mencionaram no artigo, “fazer política industrial não é questão de ‘sim ou não’, mas de ‘como’”. E há razões de sobra para demonstrar muito ceticismo com a forma como o plano de reindustrialização do governo será posto em prática.

A principal ideia do programa reside no resgate do papel do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como protagonista da NIB no apoio às empresas. Serão R$ 300 bilhões até 2026, dos quais R$ 271 bilhões em empréstimos, R$ 21 bilhões não reembolsáveis e R$ 8 bilhões na aquisição de ações das empresas. Parte dos recursos será captada por Letras de Crédito de Desenvolvimento (LCD) a serem lançadas pela própria instituição.

Não há como não lembrar do Programa de Sustentação do Investimento (PSI), lançado em resposta à crise financeira global de 2008. À época, coube ao Tesouro emitir dívida para aportar mais de R$ 400 bilhões ao BNDES, recursos que foram emprestados em operações a taxas inferiores às de mercado a empresas escolhidas para serem “campeãs nacionais”. O BNDES, inclusive, tornou-se sócio de muitas delas. Em termos de crescimento econômico, os resultados do PSI foram pífios – quando não trágicos, como no caso dos setores de petróleo e da indústria naval, aos quais se impôs a exigência de conteúdo local.

O presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, garante que dessa vez tudo será diferente. Em nenhum momento, no entanto, ele explicou como os custos e benefícios da nova política industrial serão acompanhados, avaliados e, sobretudo, revistos caso seus objetivos não venham a ser alcançados. De forma simplista, ele citou as políticas industriais adotadas por China, Estados Unidos e Europa no pós-pandemia, sem ponderar que o declínio da indústria brasileira antecede em décadas a chegada do novo coronavírus.

Uma política industrial séria deveria começar por um diagnóstico sobre as razões pelas quais isso ocorreu. Se a resposta são os juros altos, como parece ser o caso, não é por meio de medidas parafiscais que o problema será resolvido – pelo contrário. O desequilíbrio fiscal é a causa, não a consequência dos juros elevados, e a recusa do governo em compreender essa diferença não permite qualquer otimismo sobre os resultados dessa política.

Operação desforra

O Estado de S. Paulo

O espírito da Operação Escudo, deflagrada pelo governo paulista em reação a ataques contra policiais, parece ser apenas o de vingança, que em nada contribui para a segurança pública

A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo retomou nesta semana a Operação Escudo – nome genérico para operações da Polícia Militar (PM) que são deflagradas sempre que policiais são alvo de ataques de criminosos. Esse protocolo, criado no governo de Tarcísio de Freitas, tornou-se célebre em razão da violenta atuação da polícia em resposta ao assassinato de um policial no Guarujá, entre julho e agosto do ano passado – em 40 dias, 28 pessoas foram mortas pela PM, configurando a ação policial mais letal no Estado desde o massacre do Carandiru, em 1992. A respeito daquele caso, há diversas denúncias de violações de direitos humanos, incluindo tortura e execução sumária, mas o governador Tarcísio classificou as mortes como “efeitos colaterais”.

A recente retomada da Operação Escudo se dá em resposta a cinco ataques contra policiais em diversos pontos do Estado no fim de semana passado. “Nenhum ataque a policial ficará impune”, justificou o secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite. “A Escudo sempre é deflagrada quando há agressão a policiais”, reforçou Tarcísio.

A reação em si e as palavras que a adornam escancaram a natureza da resposta estatal. O objetivo primário desse tipo de operação não é tornar a sociedade mais segura. Trata-se apenas de vingança, de preferência transformando a ação em espetáculo para deleite dos que acreditam que criminosos (ou apenas suspeitos de crimes) não são titulares de direitos básicos. Tal espírito desabona o que deveriam ser os princípios da ação estatal diante do crime: retomar e preservar a autoridade do Estado, conter a violência (contra agentes públicos e contra quem quer que seja) e frear a sensação de insegurança na população.

Mas nada disso parece importar nestes tempos estranhos. Derivando perigosamente para o terreno do populismo, o governador Tarcísio declarou ao Estadão que “a população quer uma política mais dura”, pois “não aguenta mais bandidagem”. Na avaliação do governador paulista, é esse tipo de política de segurança pública que justifica a alta popularidade do governador de Goiás, Ronaldo Caiado. “A política de tolerância zero de lá fez dele o governador mais bem avaliado do Brasil”, disse Tarcísio.

Trata-se de uma simplificação grosseira. “Tolerância zero” é o nome fantasia para a generalização da violência policial contra os suspeitos de sempre. É evidente que esse tipo de ação, amplamente divulgada para criar impacto, tende a atrair a simpatia de quem, como disse Tarcísio, “não aguenta mais bandidagem”, o que obviamente gera muitos pontos de popularidade. É a escola do presidente de El Salvador, Nayib Bukele, que se tornou o líder mais popular da América Latina ao reduzir os índices de criminalidade no país por meio de uma política de detenções generalizadas, sem ordem judicial e sem qualquer respeito pelos direitos dos suspeitos.

Nesses termos, “tolerância zero” significa que, no limite, alegados imperativos de segurança pública, atendendo a um clamor popular, justificam a suspensão de garantias constitucionais. O nome disso é regime de exceção, não é democracia. Um Estado sem freios ou constrangimentos é precisamente o sonho de líderes com vocação autoritária. Este jornal, fundado nos princípios da liberdade, não pode deixar de observar os graves riscos embutidos nesse tipo de concepção de Estado. A “segurança” derivada da truculência policial é apenas aparente. É a paz dos cemitérios.

O Estado não é nem pode ser vingador. O que distingue policiais de bandidos é o compromisso com as leis. Além do aprimoramento técnico contínuo das polícias, o uso racional da força e o respeito às mais estritas balizas legais deveriam fazer parte do dia a dia das instituições de segurança. As melhores evidências também mostram maior eficácia de operações discretas, planejadas, com articulação entre as polícias e os demais órgãos de segurança pública. Desforra é coisa de bárbaros.l

Inquérito infinito

O Estado de S. Paulo

Só incompetência ou caprichos justificam a nona prorrogação do inquérito das ‘milícias digitais’

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), acolheu pedido da Polícia Federal (PF) e prorrogou por mais 90 dias o Inquérito 4874, que investiga a ação das chamadas “milícias digitais antidemocráticas”. É a nona vez que o inquérito, instaurado em julho de 2021, é prorrogado pelo ministro relator. E nada indica que terá sido a última.

Não é possível dizer se, de fato, havia razões para mais essa concessão de prazo para a investigação. O inquérito é sigiloso e a PF apenas indicou a necessidade de mais tempo para cumprir “diligências ainda pendentes”, sem apontar quais caminhos o inquérito ainda teria de percorrer até a conclusão, passados dois anos e meio desde a abertura.

A essa altura, porém, é perfeitamente possível afirmar que, das duas, uma: ou o STF e a PF estão lidando com uma das mais engenhosas e tentaculares organizações criminosas de que já se teve notícia no País, ou os incumbidos da investigação têm de ser um tanto mais competentes para colher provas contra os suspeitos e desbaratar as “milícias digitais”. Seja como for, o inquérito há de ter um fim. Inquéritos infindáveis não se coadunam com um Estado Democrático de Direito.

Não é por outra razão que o princípio da razoável duração do processo se insere no rol dos direitos e garantias fundamentais. Lá ele está – no art. 5.º, LXXVIII, da Constituição – para assegurar que nenhum cidadão brasileiro tem de conviver com a espada do Estado pairando sobre sua cabeça por prazo indeterminado. Figurar como mero investigado em um inquérito criminal, por si só, já produz sérias consequências na vida de qualquer indivíduo, a começar pela estigmatização.

Os inquéritos que tramitam no STF desde quando Jair Bolsonaro lançou suas garras contra a democracia brasileira – não só o referido inquérito sobre as “milícias digitais”, mas também o inquérito que investiga a disseminação de fake news e ameaças contra membros da Corte na internet – foram determinantes para resguardar as liberdades democráticas. As ameaças, no entanto, foram dissipadas – e graças, inclusive, à firme disposição do STF para fazer valer a Constituição sobre os ataques dos que se revelaram seus piores inimigos desde a redemocratização do País.

Os tempos são outros. Respira-se um ar mais leve no País. Não há no horizonte, próximo ou longínquo, nada que remotamente represente uma ameaça à democracia que justifique esse sobrestamento de normas básicas do ordenamento jurídico brasileiro. Esses inquéritos precisam ser concluídos, em primeiro lugar, por imperativos constitucionais e democráticos. Mas também para que o próprio STF retome o curso normal de sua atuação no regime republicano e, assim procedendo, resgate a confiança da parcela da população que enxerga a Corte como um tribunal político.

Se a PF já tem indícios de autoria e materialidade para encaminhar o caso das “milícias digitais” ao Ministério Público, que o faça já. Se não, que o STF arquive o tal inquérito.

Brasil tem política industrial efetiva

Correio Braziliense

O programa, anunciado durante a reunião do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial conta com a participação de 21 instituições do setor. A Nova Indústria Brasil foi formulada após um ano de discussões entre representantes do governo com os do setor privado

O programa Nova Indústria Brasil, anunciado segunda-feira pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é um marco para a indústria brasileira, que nos últimos anos viu sua participação na geração de riqueza do país decrescer de um percentual próximo a 40% na década de 1980 para pouco mais de 20% agora. Ao longo dessas pouco mais de quatro décadas, o setor industrial brasileiro foi deixado em segundo plano, com o país optando por exportar commodities agrícolas e minerais diante da necessidade de fazer superavits a partir dos anos 1990.

O programa, anunciado durante a reunião do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI), órgão do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços que conta com a participação de 21 instituições do setor privado, mostra a forma como o governo do presidente Lula pretende conduzir a política industrial brasileira. Enganam-se os que veem uma repetição do passado na forma. A Nova Indústria Brasil foi formulada após um ano de discussões entre representantes do governo com os do setor privado.

Se antes o foco era na inserção de empresas brasileiros no mercado internacional, no passado recente, com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) sendo o acionista e financiador da iniciativa, agora o banco também atuará, mas não mais com foco nos grandes conglomerados e, sim, nas oportunidades oferecidas pela transição energética e a descarbonização da economia. O plano deixa claro o papel do Estado no fomento industrial em busca de tornar as empresas mais competitivas e atualizadas tecnologicamente e inseridas nas cadeias globais de valor.

Há uma janela de oportunidades para a indústria brasileira em um mundo que corre contra o tempo para desenvolver tecnologias que permitam reduzir drasticamente a emissão de gases do efeito estufa até 2050. Da depreciação acelerada, que oferece condições tributárias favoráveis para aquisição de novos equipamentos, ao financiamento de setores estratégicos, o programa foi pensado de forma integral, excluindo da sua esfera empresas que exploram trabalho análogo à escravidão, as acusadas de assédio ou homofobia ou as que foram flagradas desmatando.

Os críticos podem até dizer que o governo, por um lado, quer acabar com a desoneração da folha e, por outro, promete dinheiro para a indústria. Ocorre que são situações distintas. Enquanto a desoneração é uma vantagem fiscal que não abrange todos os setores da economia, tendo um efeito artificial sobre a competitividade das indústrias atendidas por eles, o dinheiro da Nova Indústria Brasil se propõe a financiar as fábricas para que elas se desenvolvam tecnologicamente e agreguem produtividade e valor a suas operações. O benefício fiscal que existe tem a finalidade de facilitar a modernização dos parques fabris do país. São situações e objetivos distintos.

É preciso lembrar ainda que todos os países industrializados dispõe de políticas industriais formuladas e sustentadas pelo Estado. Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden lançou um programa de US$ 400 bilhões em energias verdes, energias limpas e veículos elétricos, além de US$ 50 bilhões para atrair fabricantes de semicondutores para os EUA. Mais ainda, historicamente o desenvolvimento industrial no Brasil no século passado ocorreu com o apoio do Estado, com o governo Getúlio Vargas incentivando a produção de minério de ferro, a siderúrgica e a produção de petróleo, a gestão Juscelino Kubitschek, com a indústria automotiva e o avanço do setor elétrico e o regime militar com a política de substituição das importações. É preciso agora que a sociedade cobre a execução da nova política industrial para que o país, efetivamente, se posicione no grupo dos países desenvolvidos.

 

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