quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Martin Wolf* - Os perigos de um mundo imprevisível

Valor Econômico

Fragilidades do sistema econômico global são reais e devem ser enfrentadas

Na semana passada, discuti cinco motores de longo prazo da economia mundial - demografia, mudanças climáticas, avanço tecnológico, difusão mundial do conhecimentos e o próprio crescimento econômico. Esta semana analisarei choques, riscos e fragilidades. Eu sugiro que, juntos, todos eles moldam a economia em que vivemos.

Um “choque” é um risco que se concretiza. Riscos, por sua vez, são quase todos imagináveis. Na fraseologia útil de Donald Rumsfeld, eles são “desconhecidos conhecidos”. Mas a probabilidade de que aconteçam e sua gravidade são desconhecidas. Estamos rodeados por tais riscos - novas pandemias, instabilidade social, revoluções, guerras (inclusive guerras civis), megaterrorismo, crises financeiras, colapsos do crescimento econômico, reversões na integração econômica mundial, transtornos cibernéticos, fenômenos climáticos extremos, colapsos ecológicos, terremotos muito fortes ou erupções de supervulcões. Todos são imagináveis. Que um deles se concretize aumenta a probabilidade de que pelo menos alguns dos outros também aconteçam. Além disso, as fragilidades conhecidas tornam maiores as chances desses choques, ou no mínimo sua provável gravidade.

Como demonstra o Relatório de Riscos Globais de 2024, do Fórum Econômico Mundial, vivemos em um mundo de alto risco. Não é tanto que qualquer coisa pode acontecer. Mas sim que um número considerável de coisas bastante imagináveis pode acontecer, e possivelmente ao mesmo tempo. O passado recente mostrou isso de forma clara: sofremos uma pandemia, ainda que relativamente moderada em termos dos padrões históricos, duas guerras dispendiosas (na Ucrânia e no Oriente Médio), uma disparada da inflação inesperada e uma “crise do custo de vida” associada a ela. Além do mais, essas turbulências ocorreram não muito tempo depois das múltiplas crises financeiras de 2007 a 2015.

Não é surpreendente que esses choques se tenham revelado prejudiciais e desestabilizadores. É provável que eles imponham custos de longo prazo, em especial para os países e as pessoas mais vulneráveis. Mas podemos ter um golpe de sorte: parece provável que o choque inflacionário se dissipe relativamente logo. As previsões de consenso para a inflação em 2024 mudaram muito pouco desde janeiro de 2023. Em janeiro de 2024, eram de 2,2% para a zona do euro, 2,6% para os Estados Unidos e 2,7% para o Reino Unido. Os dirigentes dos bancos centrais estão, na sua maioria, desesperados para evitar o erro de começar um relaxamento cedo demais e, por isso, é muito mais provável que o façam tarde demais. Como consequência, as previsões de consenso para o crescimento em 2024 são baixas, mas não negativas, até o momento.

O futuro das guerras em curso é muito mais incerto. Elas podem ser resolvidas, desaparecer aos poucos ou explodir para algo maior e mais prejudicial. Esse tipo de incerteza, como nos ensina a história, faz parte da própria natureza da guerra. Além disso, a forma como elas terminam pode criar riscos adicionais - na verdade, é provável que o façam. Em uma ponta, pode haver resoluções pacíficas para os dois conflitos. Na outra, podemos ter uma mera pausa antes do início de hostilidades ainda piores.

A resposta crucial deve ser reduzir fragilidades, gerir os choques, planejar-se para os riscos e compreender os motores fundamentais. A miopia e o tribalismo habituais da humanidade não funcionarão. É difícil imaginar que vamos superá-los em um futuro próximo

O que acontecerá no futuro não depende apenas da forma como as forças motrizes continuem a operar, de quando (e como) os choques recentes se resolvam e de quais riscos se concretizem. Depende também das fragilidades do sistema. E quatro conjuntos se destacam.

O primeiro conjunto é ambiental. Estamos engajados em um experimento irreversível com a biosfera, em grande parte, mas não exclusivamente, com relação ao clima. À medida que a economia humana cresce, também seu impacto na biosfera deve se expandir. Será necessário um grande esforço para evitar que o meio ambiente se torne ainda mais frágil no futuro. Até o momento, não conseguimos reverter as tendências e, portanto, a fragilidade do meio ambiente aumentará.

O segundo conjunto é financeiro. Ao longo do tempo, a quantidade de dívida, tanto pública como privada, tendeu a aumentar. Frequentemente esse movimento é apropriado, e mesmo essencial. A dificuldade é que as pessoas passam a confiar tanto na solidez de seus direitos como na sua capacidade de financiar e, quando necessário, refinanciar suas dívidas. As economias dependem da confiança dos credores nos seus devedores. Se qualquer coisa provocar um grande choque para essas expectativas, a falência em massa pode desencadear depressões profundas, com consequências econômicas e políticas horrorosas. Com o alto nível de endividamento dos dias de hoje, um período prolongado de taxas de juro elevadas pode provocar esses choques.

O terceiro conjunto se refere à política interna. Vivemos no que Larry Diamond, de Stanford, chama de “recessão democrática”. Há uma hostilidade cada vez maior às normas fundamentais da democracia liberal, mesmo nos países ocidentais. Tal como argumentei em outra ocasião, isso está enraizado no desapontamento econômico, nos fracassos políticos e em mudanças sociais desestabilizadoras. O que diminuiu a legitimidade dos políticos convencionais e aumentou a dos demagogos populistas. Então, isso torna nossa política frágil.

O último conjunto é o da geopolítica. A combinação de mudanças no poder econômico relativo, com o surgimento de um bloco de poderes autoritários centrado na China, consolidou divisões no mundo. Elas podem ser observadas nos conflitos de hoje. A desconfiança resultante ameaça nossa capacidade de reunir a cooperação necessária para garantir “a prosperidade, a paz e o planeta”. Em um mundo em que os perigos do conflito e o custo do fracasso em cooperar são tão grandes, esta última fragilidade pode ser a mais importante. Se não encontrarmos uma forma de cooperar, é provável que não consigamos manejar muitos dos riscos. Isso, por sua vez, tornará novos grandes choques mais prováveis e mais difíceis de lidar.

Nosso mundo é de fato confuso e imprevisível. E não porque não sabemos de nada. Pelo contrário, sabemos muito. O problema é que também sabemos que o mundo é imprevisível e complexo. A resposta crucial deve ser reduzir as fragilidades, gerir os choques, planejar-se para os riscos e compreender os motores fundamentais. Além do mais, já que muitos deles são mundiais, também precisamos pensar globalmente. A miopia e o tribalismo habituais da humanidade não funcionarão. Infelizmente, é difícil imaginar que vamos superá-los em um futuro próximo. (Tradução de Lilian Carmona)

*Martin Wolf é editor e principal analista econômico do Financial Times

Nenhum comentário: