quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Vera Magalhães – Acabou a lua de mel?

O Globo

Atritos e falta de interlocução ameaçam tanto investimentos do PAC quanto pauta arrecadatória

O casamento entre o governo Lula e o Congresso nunca foi convencional. Interesses mútuos ditaram uma lua de mel pragmática, sem amor, que durou da PEC da Transição à reforma tributária. Agora, a relação entrará numa nova fase na volta do recesso, e, por ora, os sinais são de crise.

Arthur Lira precisava do governo para se reeleger sem sustos. O governo precisava de Lira para colocar as promessas de campanha de Lula no Orçamento de Bolsonaro. Esses foram os termos que ditaram a união nada estável. O 8 de Janeiro acabou reforçando os laços que ainda eram bem tênues. A governabilidade trôpega foi construída a partir desse pacto fundador, e graças a ela foram aprovadas medidas como o marco fiscal e a reforma tributária.

Mas para que os votos sejam renovados há algumas dificuldades adicionais. A começar pelo fato de a agenda do governo não ser única. Há o projeto de Fernando Haddad de colocar as contas públicas nos eixos aumentando a arrecadação, para o qual ele depende do Congresso. E existe a outra plataforma, de Lula e Rui Costa, que é fazer deslanchar o canteiro de obras, para a qual o governo e o Congresso competem por recursos na inflada coluna do gasto. Haja DR para compatibilizar tantos interesses dispersos.

O esperado veto a cerca de R$ 5 bilhões em emendas ao Orçamento gestado na Casa Civil só ajuda a agravar a tensão que antecede a volta dos trabalhos legislativos. E, diferentemente da relação que existe com Haddad, a boa vontade com o time palaciano, Alexandre Padilha à frente, é zero. Lula precisará reconstruir pessoalmente essa interlocução se não quiser começar o ano com Câmara e Senado sentando em cima dos projetos do Executivo para tocar uma agenda própria.

Um cacique do Parlamento recomendou a um ministro que os integrantes dos governos sejam “comedidos com as palavras”, porque o clima “não está legal”. Recado mais claro não poderia haver.

A obstrução, se vier, não deverá atingir a regulamentação da reforma tributária, uma vez que é voz corrente no Legislativo que esse nunca foi um projeto do governo Lula, visto como mero auxiliar na aprovação da emenda. Portanto as leis complementares que detalham as mudanças deverão ter prioridade. Mas a pauta arrecadatória de Haddad, ainda mais contaminada pela forma considerada truculenta no envio da MP “4 em 1” na virada do ano, corre mais riscos.

O ministro está decidido a defender, mesmo diante da probabilidade grande de derrota, a tese segundo a qual alguns benefícios tributários a grupos específicos não geram ganhos para toda a sociedade. Para ter alguma chance de êxito, ainda que parcial, terá de voltar à mesa de negociação disposto a ceder não só na forma, mas também no conteúdo, algo de que ainda não está convencido.

O prazo para o governo desarmar as minas terrestres nessa relação com o Congresso é mais curto: se concentra no primeiro semestre, uma vez que o segundo será tomado pela campanha municipal e, já na sequência, pela disputa pelas presidências da Câmara e do Senado.

Lira e Rodrigo Pacheco farão de tudo para exercer plenamente o poder nas Casas que comandam até as disputas ganharem tração. Se isso depender de fincar posição e confrontar o governo para manter coesos seus próprios grupos, não hesitarão.

É a essas nuances que o governo tem de estar atento se não quiser abdicar cedo demais da definição de prioridades para o país. Isso vale para a maratona arrecadatória de Haddad e para a sanha gastadeira de Lula e Costa. Mesmo com sentidos contrários, os dois vetores do governo não caminharão tentando impor na marra ao Congresso suas crenças e necessidades. Isso já deveria ter ficado claro com a dinâmica de casamento arranjado que vigorou em 2023.

 

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