sexta-feira, 29 de março de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Mesmo tímida, crítica do governo à Venezuela é avanço

O Globo

Demorou para Lula esboçar reparo a Maduro. Brasil precisa reforçar a defesa da democracia no continente

Nicolás Maduro fala, pensa e governa como um ditador. Não aceita nenhum risco de perder eleições, promovidas com o único objetivo de dar a seu regime uma fachada de legitimidade. Todos sabem ser remota a chance de candidatos populares da oposição disputarem eleições livres e justas. Para vencer o pleito marcado para 28 de julho, ele não confia apenas no controle dos organismos encarregados de organizá-lo e fiscalizá-lo. Persegue e barra adversários competitivos. Primeiro, impediu a candidatura da ex-deputada María Corina Machado, principal nome da oposição ao chavismo. Nesta semana, sua substituta Corina Yoris foi impedida de registrar a candidatura on-line e até em pessoa no Conselho Nacional Eleitoral.

Precisou o cerceamento da liberdade política chegar a tal ponto para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfim criticar o regime chavista. Em nota divulgada na última terça-feira, o Ministério das Relações Exteriores afirmou “acompanhar com expectativa e preocupação” o processo eleitoral. Ressaltou a inexistência de decisões judiciais para justificar o bloqueio de Yoris, descrito como incompatível com os acordos de Barbados (negociação multilateral em que a Venezuela se comprometeu a organizar eleições livres). “É grave que ela não possa ter sido registrada”, afirmou Lula nesta quinta-feira, em crítica inédita ao regime venezuelano.

Por mais que o Brasil tenha interesses comuns com a Venezuela e deva manter relação produtiva com o país, persistia um silêncio injustificável do governo diante das repetidas investidas de Maduro contra a democracia — atitude não apenas ofensiva aos venezuelanos, mas ultrajante para todos os brasileiros de alma genuinamente democrática. Por isso a nota do Itamaraty e a declaração de Lula representam avanços inegáveis. Mas ainda tímidos. Deveria haver uma longamente esperada mudança de atitude em relação ao regime chavista. É necessário ir além.

Até ontem, Lula preferia o silêncio, quando não fazia acenos explícitos à ditadura venezuelana. Maduro foi recebido com honras de chefe de Estado em Brasília no ano passado. Lula já chegou a dizer, sobre o regime chavista, que “o conceito de democracia é relativo”. A postura obsequiosa tinha como objetivo manter influência e incentivar a moderação. Essa estratégia claramente não tem dado o resultado esperado. As eleições na Venezuela são uma sucessão de farsas. O regime persegue os adversários mais populares, deixando apenas quem tem menos apelo no páreo, na tentativa de conferir um verniz de legitimidade à disputa.

No front externo, Maduro é fator de instabilidade. Há anos promove o maior êxodo deste século em ambiente de paz. Sete milhões de venezuelanos vivem fora do país, ou 23,5% da população. A título de comparação, se o mesmo acontecesse no Brasil, seriam 47 milhões de pessoas. A migração não provoca apenas crise humanitária. Máfias venezuelanas geram transtorno em países como o Chile. Belicoso, Maduro reivindica território da Guiana, trazendo o risco de conflito armado para perto da fronteira com o Brasil.

Afagos não farão do ditador venezuelano um defensor dos direitos políticos ou humanos, nem da manutenção da paz. Na relação com a Venezuela, Lula deve lembrar que a democracia é um dos pilares da política externa brasileira. Precisa ser defendida dentro e fora do país. O autoritarismo tem de ser denunciado, jamais elogiado.

Maiores aeroportos do país exigem mais atenção das concessionárias

O Globo

Guarulhos e Congonhas, ambos em São Paulo, apresentam nítidos sinais de que estão sobrecarregados

Com a retomada das viagens aéreas depois da pandemia, os dois maiores aeroportos do país, Guarulhos e Congonhas, em São Paulo, já se mostram sobrecarregados. Em 2023, passaram por Guarulhos 40,4 milhões de passageiros, perto dos 42,2 milhões de 2019. Houve 260 mil decolagens, pouco abaixo das 274 mil daquele ano. Em Congonhas, foram 21,8 milhões de passageiros (ante 22,2 milhões em 2019) e 184 mil decolagens, mais que as 172 mil de antes da pandemia.

Usuários dos dois aeroportos padecem com saguões lotados, filas por todos os lados, embarques e desembarques na pista que exigem traslado em ônibus repletos, falta de escadas rolantes, banheiros sujos ou parcialmente interditados.

Numa avaliação feita no ano passado pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) entre 12 aeroportos concedidos à iniciativa privada, Guarulhos — há 12 anos sob concessão da GRU Airport, que conta com participações minoritárias do grupo sul-africano Airports Company e da Infraero — apareceu como terminal com o pior serviço prestado. Congonhas, transferido à gestão privada em outubro, não entrou na avaliação. Desde a recente concessão ao grupo espanhol Aena, porém, o terminal já recebeu 38 queixas formais da Anac. Para os dois aeroportos há 155 processos abertos. Como as reclamações continuam, a tendência é esse número aumentar.

O terminal 2 de Guarulhos chama a atenção pela deterioração. Parte do telhado — como também no terminal 1 — data da inauguração do aeroporto, segundo Rodrigo Maciel, presidente do Sindicato dos Aeroviários de Guarulhos (SindiGru). Há ferrugem na estrutura do teto da área do desembarque doméstico, com risco de desabamento. Não é boa a impressão de quem fica algum tempo no terminal.

Também é uma dor de cabeça para os viajantes o acesso aos aeroportos. Em vários países, trem ou metrô chegam e partem de dentro dos terminais. Em Guarulhos, a estação de trem fica distante e ainda exige uma viagem de ônibus. Em Congonhas, a estação de metrô servindo o aeroporto deveria ter sido inaugurada há mais de dez anos.

Outra queixa dos passageiros refere-se a limpeza e conservação de banheiros, tanto em Guarulhos como em Congonhas. O GLOBO encontrou várias cabines interditadas nos dois aeroportos.

Deve-se reconhecer que, no caso de Congonhas, a concessão ainda está no início e há dificuldades físicas para ampliar a capacidade operacional. A concessionária Aena se comprometeu a construir um novo terminal, aumentando a quantidade de acessos para embarque e desembarque.

Antes disso, porém, tanto ela quanto a concessionária de Guarulhos deveriam tratar de cuidar das deficiências mais urgentes que atormentam a vida dos passageiros.

BC indica mais incerteza com queda da inflação

Folha de S. Paulo

Embora incipiente, preocupação pode tornar lento o corte de juros; caminho seguro seria o controle dos gastos do governo

A onda inflacionária que se seguiu à pandemia tem sido contida, no Brasil e no mundo, a um custo surpreendentemente baixo para a atividade econômica e o mercado de trabalho. O outro lado da moeda é que o fenômeno, ainda a ser compreendido por inteiro, pode tornar mais lento o controle definitivo da escalada dos preços.

Não por acaso, a palavra "incerteza" e suas variações aparecem nada menos que 17 vezes na ata, divulgada nesta semana, da mais recente reunião do Banco Central destinada a definir a taxa básica de juros. Trata-se de uma elevação de mais de 100% ante as 8 menções encontradas na ata de janeiro.

Aqui e lá fora, as dúvidas principais dizem respeito ao cumprimento das metas de inflação num cenário de desemprego relativamente baixo e renda em alta —que favorece o consumo e pressiona preços, em particular nos serviços.

O BC relata que não mudou suas projeções para o IPCA, de 3,5% neste ano e 3,2% em 2025, compatíveis com a meta de 3% e a margem de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Indicou, entretanto, que está menos convicto.

Ao reduzir seus juros de 11,25% para 10,75% ao ano, previu nova queda de 0,5 ponto "na próxima reunião", abandonando o plural que vinha empregando até então.

Em português claro, a instituição deixou aberta a possibilidade de adotar um ritmo mais lento no corte dos juros, de modo a esfriar mais a atividade econômica e a geração de empregos.

Pode parecer cruel —e é material farto para demagogia política. No entanto a tolerância com a inflação não raro resulta em danos sociais mais graves e duradouros que os gerados por uma política circunstancial de aperto monetário.

Como divulgou o IBGE nesta quinta (28), o desemprego foi de 7,8% no trimestre encerrado em fevereiro, a menor taxa para o período desde os 7,5% de 2015. A renda média do trabalho subiu 4,29% acima da inflação em um ano.

Não são números espetaculares, mas bastante benignos para um período de juros ainda elevadíssimos, que muito dificilmente cairão abaixo de 9% anuais neste 2024. As estimativas centrais de mercado, aliás, são de uma Selic não inferior a 8,5% até o final de 2026.

Mesmo que não chegue a provocar estagnação ou recessão econômica, uma taxa dessa magnitude é constrangimento óbvio à expansão da atividade. O caminho virtuoso para reduzi-la não é leniência com a inflação, que prejudicaria sobretudo a população pobre, mas o controle de gastos orçamentários.

Ao rechaçar esse rumo, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) leva o país a um desempenho provavelmente medíocre, além de mais sujeito a riscos e incertezas.

O palavrório de Gilmar

Folha de S. Paulo

Ministros devem exercitar a autocontenção para zelar pela credibilidade do STF

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, voltou a vestir, recentemente, o que parece ser seu figurino favorito fora da corte: o de comentarista político. Em mais de uma ocasião, desfiou opiniões sobre investigações conduzidas pela Polícia Federal que têm como alvo Jair Bolsonaro (PL).

Exercendo a função de ministro do Supremo, contudo, Gilmar precisa observar certas restrições atinentes ao cargo. Uma delas o impede de expressar, nos meios de comunicação, o que pensa sobre processos pendentes de julgamento.

Não se trata de norma fútil. Ela existe para proteger os magistrados de qualquer nesga de parcialidade capaz de pôr em dúvida o mérito de uma decisão.

Ao comentar a situação do ex-presidente, Gilmar dá de ombros a esse imperativo de um Estado de Direito. E não o faz pela primeira ou segunda vez; o ministro tem longo histórico de atitudes que levam ao descrédito do STF, incluindo múltiplas viagens internacionais ao lado de figurões da política e da economia.

Gilmar não está só. A subversão do bom comportamento forense é comum entre os ministros —como se viu na participação de Luís Roberto Barroso em evento da União Nacional dos Estudantes em 2023.

Quando se registram condutas como essas em instâncias inferiores, há maneiras de corrigir o problema por meio de recursos aos tribunais ou pela ação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Essas soluções, entretanto, mostram-se inviáveis quando se trata do STF, última instância da Justiça e fora da alçada do CNJ. Daí que, desde 1988, nenhum pedido de suspeição ou impedimento de ministros desse tribunal tenha prosperado.

Nem seria o caso de lançar mão desses remédios contra o palavrório de Gilmar. O próprio ministro deveria saber que seu comportamento insufla o ânimo daqueles que, por apreço autoritário, pretendem cercear os poderes do STF.

Com decisões delicadas pela frente, urge que a corte —cuja atuação é reprovada por 28% dos brasileiros, após pico de 38% em dezembro, segundo o Datafolha— aprenda a habilidade da autocontenção, a fim de zelar por sua credibilidade.

Supremo ‘à la carte’

O Estado de S. Paulo

Revisão sobre o foro especial em intervalo tão curto só reforça a percepção de que a Corte não apenas é suscetível às mudanças de vento na política, como é casuística, o que é ainda pior

O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a se debruçar sobre o foro especial por prerrogativa de função, o chamado “foro privilegiado”, apenas seis anos depois de ter fixado uma tese sobre o tema. Longe de ser um ponto fora da curva, a questão do foro é apenas a mais recente de uma série de revisões de jurisprudência em curtíssimo prazo que reforçam a percepção, amplamente difundida na sociedade, de que a mais alta instância do Poder Judiciário seria não só suscetível às mudanças de vento na política, como também casuística. Nessa toada, não há confiança na Justiça que resista.

No caso concreto, como mostrou o Estadão, os ministros julgarão um habeas corpus impetrado pelo senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), que contesta a competência da Justiça de primeiro grau do Distrito Federal para julgá-lo pela suposta prática de “rachadinha”, entre 2007 e 2015. Marinho argumenta que, por ter exercido cargos com foro por prerrogativa de função durante todo esse tempo, os crimes dos quais é acusado devem ser julgados pelo STF, não pela primeira instância. Foi a senha para que a Corte, com quatro novos membros – Nunes Marques, André Mendonça, Cristiano Zanin e Flávio Dino –, volte a tratar do assunto.

Não é nada improvável que, no julgamento desse habeas corpus, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, a nova composição da Corte fixe novo entendimento sobre o alcance do “foro privilegiado”. Em 2018, vale lembrar, o STF decidiu que apenas os crimes cometidos por certas autoridades durante o mandato e relacionados ao exercício do cargo poderiam ser julgados pela Corte. Ao fim do mandato, os processos deveriam ser remetidos à instância competente. Mas, como ficou notório nesses últimos seis anos, os próprios ministros deram de ombros para essa orientação, o que, na prática, revela que a questão não está pacificada como deveria.

Para citar apenas casos recentíssimos, o STF já expediu mandados de busca e apreensão contra um cidadão que se envolveu numa altercação em Roma com o ministro Alexandre de Moraes. Já julgou um sem-teto, ao final absolvido, que fora acusado de crimes relacionados ao 8 de Janeiro. Sob o manto opaco dos inquéritos intermináveis das fake news e das “milícias digitais”, o STF tem se arvorado em juízo universal da defesa da democracia, lidando com réus ou investigados que jamais deveriam estar submetidos à Corte Constitucional. O caso Marielle Franco é outro que suscita a competência do STF como foro criminal.

Procedendo dessa maneira, a Corte a um só tempo maltrata a Constituição e desprestigia todo o Poder Judiciário, como se não houvesse juízas e juízes anônimos Brasil afora com capacidade para julgar esses crimes, em especial os cometidos contra o Estado Democrático de Direito.

Outros temas de grande relevância para o País têm sido tratados com pouco cuidado – é forçoso dizer – pelo Supremo. Tome-se, por exemplo, a questão da execução da pena após condenação em segunda instância. Ao fim e ao cabo, trata-se de discussão sobre um princípio fundamental consagrado pela Constituição – a presunção de inocência. Não haveria de ser tão controvertido. No entanto, num curto intervalo de tempo, o STF já manifestou posições diametralmente opostas sobre essa questão. Neste momento, e sabe-se lá até quando, prevalece o entendimento, totalmente equivocado, de que um condenado só pode ser preso após o trânsito em julgado da sentença penal, ou seja, esgotadas todas as suas possibilidades recursais.

A volatilidade da jurisprudência, quase um oximoro, é péssima não só para o próprio Supremo, mas para a credibilidade do Poder Judiciário como um todo. Nunca será demais lembrar que cada cidadão tem de respeitar a Justiça. Mas esta, por sua vez, também tem de respeitar cada um dos jurisdicionados. E um cenário de incerteza jurídica é, fundamentalmente, um quadro de desrespeito à sociedade.

Nesse sentido, não surpreende por que tantos cidadãos concordem com a ideia segundo a qual não haveria um único STF, vale dizer, uma única instituição colegiada e previsível, mas sim “onze ilhas” que mudam seus entendimentos de acordo com conveniências do momento.

De novo o populismo penal

O Estado de S. Paulo

Ao propor endurecimento da lei, governadores do Sul e Sudeste aderem à mentalidade de que basta severidade para que haja mais segurança. Pode até ter apelo eleitoral, mas não funciona

Atribui-se a Capistrano de Abreu um projeto de Constituição com apenas um artigo: “Artigo 1.º: Todo brasileiro deve ter vergonha na cara. Parágrafo único: revogam-se as disposições em contrário”. A boutade era uma crítica, sobretudo, à presunção de que bastava enunciar leis para resolver os problemas do País – no caso, a falta de vergonha na cara. Foi esse pensamento mágico, aliás, que gerou a quilométrica Constituição de 1988, verdadeira obra aberta que pretende regular toda a vida nacional. Como parece óbvio, nada disso foi capaz, por si só, de melhorar o País, mas não desistimos: agora, governadores do Sul e do Sudeste acham que a criminalidade será combatida com o endurecimento da legislação.

Liderado pelos governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas, Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e Minas Gerais, Romeu Zema, o grupo acredita que, para o “enfrentamento mais qualificado do crime”, ajustes precisam ser feitos no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal – leiam-se penas mais duras, novas tipificações penais, maior estímulo ao encarceramento e regras que, na prática, dão maior protagonismo à polícia. É a safra nova de lideranças com um enredo antigo: contra o crime, novas leis; por mais segurança, respostas de fácil apelo junto a uma população que se sente assustada e insegura; para uma maior eficiência das polícias e do Poder Judiciário, leis mais duras e mais prisões.

Os governadores propuseram, por exemplo, a possibilidade de prisão preventiva mesmo sem condenação com trânsito em julgado de pessoas que reiteradamente praticam atos ilícitos – ou seja, na prática, querem que o passado do criminoso o condene antecipadamente. O pacote inclui a definição como homicídio qualificado aquele que é feito a mando de uma facção criminosa (hoje, como homicídio simples, a pessoa pode ser solta ou ter liberdade provisória ao cumprir 1/6 da pena). Outra medida propõe alteração na lei para que se permita a prisão em casos de abordagens policiais que não tenham sido feitas com base em elementos objetivos. Isto é, se acolhida, a abordagem policial poderá ser conduzida ancorada em mero comportamento suspeito, definido a critério “subjetivo” do policial.

Ainda que parte das ideias dos governadores possa inspirar uma necessária revisão no tratamento de crimes cometidos por grandes facções criminosas, as propostas não escondem o DNA de quem enxerga a criminalidade no País como consequência de uma suposta legislação branda, que precisaria ser urgentemente enrijecida. Basta lembrar que a Lei de Crimes Hediondos, de 1990, foi alterada inúmeras vezes para abrigar mais e mais tipos penais, sem que isso resultasse na redução da criminalidade. A Câmara dos Deputados já chegou a ter inacreditáveis 1.550 projetos protocolados para alteração do Código Penal. O número beira o absurdo, mas é resultado da convicção entre muitos de que essa é uma perfumaria que dá voto. O medo, como se sabe, é arma poderosa e sedutora, sobretudo perante uma população que se sente desprotegida.

Uma política criminal séria não pode ser pautada por bravatas de apelo eleitoral. Se ouvida a voz das ruas para tal fim, seria provável a introdução de penas extremas. Enquanto isso, com o tamanho da população carcerária que tem e o estado de calamidade de seu sistema penitenciário – que o Supremo Tribunal Federal reconheceu como um “estado de coisas inconstitucional” –, fica óbvio dizer que o Brasil prende muito e mal, sem produzir efeitos significativos na proteção da sociedade. Não se resolverá esse duplo e complexo problema, contudo, com populismo penal. Em vez disso, é necessário arregaçar as mangas, reformar as polícias, aperfeiçoar a capacidade de solucionar crimes, desbaratar o poder do crime organizado nas penitenciárias e colocar na cadeia só quem deveria estar lá. Não é fácil, mas, para começar, basta seguir a Constituição de Capistrano.

O jogo do superávit

O Estado de S. Paulo

É hora de o governo começar a olhar para as despesas, antes que o Congresso o faça por conta própria

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, jogou a responsabilidade pelo cumprimento da meta fiscal nas mãos do Congresso Nacional. Em entrevista à CNN, ele disse que as decisões que o

Legislativo tomará nas próximas semanas vão definir se será possível alcançar um superávit primário de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2025. “As pessoas imaginam que o resultado primário depende só do Executivo. Isso é um erro, e é um erro maior hoje do que já foi no passado”, disse o ministro, usando como exemplo a facilidade com que o Congresso tem derrubado vetos presidenciais.

Haddad até tem alguma razão. De fato, quem dá a última palavra sobre o Orçamento é o Congresso, e a aprovação de qualquer proposta de interesse do governo, sobretudo quando ela altera a tributação de algum setor, requer muita negociação política. É algo que o ministro demonstrou ter ao longo do ano passado, quando conquistou o apoio do Legislativo para sua agenda econômica.

Neste ano, no entanto, o Congresso tem dado mostras de que chegou ao seu limite no que diz respeito ao pacote de recuperação de receitas. Depois da aprovação da taxação das apostas esportivas online, dos fundos exclusivos e offshore, do retorno do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e da histórica reforma tributária, o ministro pode ter achado que a batalha estava ganha no Legislativo.

Dentro desse espírito, Haddad propôs a reoneração da folha de pagamento e o fim do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) por meio de uma medida provisória (MP). Para o ministro, a MP era uma maneira de “enfrentar” o debate fiscal, embora o próprio Haddad tenha admitido que a iniciativa era “pouco ortodoxa” sob o ponto de vista formal. Para o Congresso, no entanto, a edição de uma MP em pleno recesso de fim de ano foi vista como uma afronta à vontade dos parlamentares.

O desfecho não poderia ser mais previsível. Para evitar que a proposta fosse devolvida ao Executivo, Haddad teve de voltar atrás e optar por projetos de lei para tratar de cada um dos assuntos. Deles, segundo Haddad, depende a manutenção da meta de superávit primário de 2025, parte essencial da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) a ser enviada pelo governo ao Congresso até o dia 15 de abril.

Cobrar o Congresso é uma estratégia perigosa e que não costuma funcionar. Primeiro, porque é o governo quem tem de construir maioria suficiente para aprovar suas propostas. Segundo, porque a responsabilidade por violar o objetivo fiscal recai unicamente sobre o Executivo. E terceiro, porque, no limite, essa provocação pode levar o Legislativo a reagir e pautar projetos como a péssima reforma administrativa que tramita na Câmara.

Ainda que Haddad seja habilidoso o suficiente para vencer a resistência dos parlamentares a esses projetos, não será possível atingir as ambiciosas metas fiscais que o ministro traçou apenas com novas receitas. É hora, portanto, de o governo começar a olhar para o lado das despesas, antes que o Congresso o faça por conta própria e da pior maneira possível.

Os desafios do autismo

Correio Braziliense

Levantamento da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) mostra que os custos com tratamentos para transtorno do espectro autista (TEA) superaram os gastos com tratamentos oncológicos

A onda de diagnósticos — precoces ou tardios — de pessoas com autismo, inclusive de celebridades, no Brasil, tem chamado a atenção de especialistas e profissionais de saúde em geral. A prova é que um levantamento da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) mostra que os custos com tratamentos para transtorno do espectro autista (TEA) superaram os gastos com tratamentos oncológicos. Somente no ano passado, as despesas com TEA atingiram 9% do custo médico total, ultrapassando os 8,7% destinados à oncologia.

Isso se intensificou com as mudanças implementadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) desde 2021, que incluem cobertura ilimitada de sessões com psicólogos, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos, além de outros métodos indicados para tratamento desse transtorno.

Se por um lado os pacientes diagnosticados têm recebido um melhor tratamento — multidisciplinar, na maioria dos casos —, por outro muitos não têm como arcar com esses gastos. Um outro estudo, Retratos do autismo no Brasil, realizado pela healthtech Genial Care, em parceria com a Tismoo.me, revela que 73% dos entrevistados mencionam dificuldades financeiras para arcar com os custos do tratamento.

O relatório revela, ainda, que a grande maioria dos cuidadores está profundamente preocupada com o futuro a longo prazo da criança com autismo (79%). E vale destacar que essa preocupação integra também os estudos anteriores. Esses profissionais apontam a incerteza de um futuro a longo prazo para essas crianças em termos de desenvolvimento, inclusão e apoio emocional. Por isso, intervenções multidisciplinares e orientação parental são fundamentais nesse aspecto. Além disso, o setor de saúde deve ser ativo, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida de crianças autistas e suas famílias.

Atualmente, em todo o planeta, os autistas representam 2% da população, e, nos últimos 20 anos, houve uma grande evolução no diagnóstico devido aos avanços das técnicas de sequenciamento. Mas no Brasil ainda há precariedade na adoção de políticas públicas que permitam o acompanhamento e o tratamento de todos os brasileiros com essa condição. Entre 2017 e 2021, o Censo Escolar registrou um aumento de 280% no número de estudantes com TEA matriculados em escolas públicas e particulares do país, e a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que o Brasil tenha entre 2 milhões e 4 milhões de pessoas com o transtorno.

Fato é que há falhas na condução das práticas que envolvem o tema autismo. Os sistemas de saúde e educação — tanto a rede pública quanto a privada — precisam se realinhar, visando a capacitação de pessoas com autismo. Focar o tratamento na doença ou na "cura" não é o caminho ideal, bem como práticas como terapias intensivas e salas de aula separadas. Cabe também à sociedade enxergar a pessoa com autismo e suas famílias como parte integrante da comunidade, e ser capaz de garantir um suporte inclusivo que reforce as diferenças de forma positiva. Há muito o que fazer, mas é preciso começar.

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