Mesmo tímida, crítica do governo à Venezuela é avanço
O Globo
Demorou para Lula esboçar reparo a Maduro.
Brasil precisa reforçar a defesa da democracia no continente
Nicolás
Maduro fala, pensa e governa como um ditador. Não aceita nenhum risco
de perder eleições, promovidas com o único objetivo de dar a seu regime uma
fachada de legitimidade. Todos sabem ser remota a chance de candidatos
populares da oposição disputarem eleições livres e justas. Para vencer o pleito
marcado para 28 de julho, ele não confia apenas no controle dos organismos
encarregados de organizá-lo e fiscalizá-lo. Persegue e barra adversários
competitivos. Primeiro, impediu a candidatura da ex-deputada María Corina Machado,
principal nome da oposição ao chavismo. Nesta semana, sua substituta Corina
Yoris foi impedida de registrar a candidatura on-line e até em pessoa no
Conselho Nacional Eleitoral.
Precisou o cerceamento da liberdade política chegar a tal ponto para o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfim criticar o regime chavista. Em nota divulgada na última terça-feira, o Ministério das Relações Exteriores afirmou “acompanhar com expectativa e preocupação” o processo eleitoral. Ressaltou a inexistência de decisões judiciais para justificar o bloqueio de Yoris, descrito como incompatível com os acordos de Barbados (negociação multilateral em que a Venezuela se comprometeu a organizar eleições livres). “É grave que ela não possa ter sido registrada”, afirmou Lula nesta quinta-feira, em crítica inédita ao regime venezuelano.
Por mais que o Brasil tenha interesses comuns
com a Venezuela e deva manter relação produtiva com o país, persistia um
silêncio injustificável do governo diante das repetidas investidas de Maduro
contra a democracia — atitude não apenas ofensiva aos venezuelanos, mas
ultrajante para todos os brasileiros de alma genuinamente democrática. Por isso
a nota do Itamaraty e a declaração de Lula representam avanços inegáveis. Mas
ainda tímidos. Deveria haver uma longamente esperada mudança de atitude em
relação ao regime chavista. É necessário ir além.
Até ontem, Lula preferia o silêncio, quando
não fazia acenos explícitos à ditadura venezuelana. Maduro foi recebido com
honras de chefe de Estado em Brasília no ano passado. Lula já chegou a dizer,
sobre o regime chavista, que “o conceito de democracia é relativo”. A postura
obsequiosa tinha como objetivo manter influência e incentivar a moderação. Essa
estratégia claramente não tem dado o resultado esperado. As eleições na
Venezuela são uma sucessão de farsas. O regime persegue os adversários mais
populares, deixando apenas quem tem menos apelo no páreo, na tentativa de
conferir um verniz de legitimidade à disputa.
No front externo, Maduro é fator de
instabilidade. Há anos promove o maior êxodo deste século em ambiente de paz.
Sete milhões de venezuelanos vivem fora do país, ou 23,5% da população. A
título de comparação, se o mesmo acontecesse no Brasil, seriam 47 milhões de
pessoas. A migração não provoca apenas crise humanitária. Máfias venezuelanas
geram transtorno em países como o Chile. Belicoso, Maduro reivindica território
da Guiana, trazendo o risco de conflito armado para perto da fronteira com o
Brasil.
Afagos não farão do ditador venezuelano um
defensor dos direitos políticos ou humanos, nem da manutenção da paz. Na
relação com a Venezuela, Lula deve lembrar que a democracia é um dos pilares
da política
externa brasileira. Precisa ser defendida dentro e fora do país. O
autoritarismo tem de ser denunciado, jamais elogiado.
Maiores aeroportos do país exigem mais
atenção das concessionárias
O Globo
Guarulhos e Congonhas, ambos em São Paulo,
apresentam nítidos sinais de que estão sobrecarregados
Com a retomada das viagens aéreas depois da
pandemia, os dois maiores aeroportos do país, Guarulhos e Congonhas, em São
Paulo, já se mostram sobrecarregados. Em 2023, passaram por Guarulhos 40,4
milhões de passageiros, perto dos 42,2 milhões de 2019. Houve 260 mil
decolagens, pouco abaixo das 274 mil daquele ano. Em Congonhas, foram 21,8
milhões de passageiros (ante 22,2 milhões em 2019) e 184 mil decolagens, mais
que as 172 mil de antes da pandemia.
Usuários dos dois aeroportos padecem com
saguões lotados, filas por todos os lados, embarques e desembarques na pista
que exigem traslado em ônibus repletos, falta de escadas rolantes, banheiros
sujos ou parcialmente interditados.
Numa avaliação feita no ano passado pela
Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) entre 12 aeroportos concedidos à
iniciativa privada, Guarulhos — há 12 anos sob concessão da GRU Airport, que
conta com participações minoritárias do grupo sul-africano Airports Company e
da Infraero — apareceu como terminal com o pior serviço prestado. Congonhas,
transferido à gestão privada em outubro, não entrou na avaliação. Desde a
recente concessão ao grupo espanhol Aena, porém, o terminal já recebeu 38
queixas formais da Anac. Para os dois aeroportos há 155 processos abertos. Como
as reclamações continuam, a tendência é esse número aumentar.
O terminal 2 de Guarulhos chama a atenção
pela deterioração. Parte do telhado — como também no terminal 1 — data da
inauguração do aeroporto, segundo Rodrigo Maciel, presidente do Sindicato dos
Aeroviários de Guarulhos (SindiGru). Há ferrugem na estrutura do teto da área
do desembarque doméstico, com risco de desabamento. Não é boa a impressão de
quem fica algum tempo no terminal.
Também é uma dor de cabeça para os viajantes
o acesso aos aeroportos. Em vários países, trem ou metrô chegam e partem de
dentro dos terminais. Em Guarulhos, a estação de trem fica distante e ainda
exige uma viagem de ônibus. Em Congonhas, a estação de metrô servindo o
aeroporto deveria ter sido inaugurada há mais de dez anos.
Outra queixa dos passageiros refere-se a
limpeza e conservação de banheiros, tanto em Guarulhos como em Congonhas. O
GLOBO encontrou várias cabines interditadas nos dois aeroportos.
Deve-se reconhecer que, no caso de Congonhas,
a concessão ainda está no início e há dificuldades físicas para ampliar a
capacidade operacional. A concessionária Aena se comprometeu a construir um
novo terminal, aumentando a quantidade de acessos para embarque e desembarque.
Antes disso, porém, tanto ela quanto a
concessionária de Guarulhos deveriam tratar de cuidar das deficiências mais
urgentes que atormentam a vida dos passageiros.
BC indica mais incerteza com queda da
inflação
Folha de S. Paulo
Embora incipiente, preocupação pode tornar
lento o corte de juros; caminho seguro seria o controle dos gastos do governo
A onda inflacionária que se seguiu à pandemia
tem sido contida, no Brasil e no mundo, a um custo surpreendentemente baixo
para a atividade econômica e o mercado de trabalho. O outro lado da moeda é que
o fenômeno, ainda a ser compreendido por inteiro, pode tornar mais lento o
controle definitivo da escalada dos preços.
Não por acaso, a
palavra "incerteza" e suas variações aparecem nada menos que 17 vezes
na ata, divulgada nesta semana, da mais recente reunião do Banco Central destinada
a definir a taxa básica de juros. Trata-se
de uma elevação de mais de 100% ante as 8 menções encontradas na ata de
janeiro.
Aqui e lá fora, as dúvidas principais dizem
respeito ao cumprimento das metas de inflação num
cenário de desemprego relativamente
baixo e renda em
alta —que favorece o consumo e pressiona preços, em particular nos serviços.
O BC relata que não mudou suas projeções para
o IPCA, de 3,5% neste ano e 3,2% em 2025, compatíveis com a meta de 3% e a
margem de 1,5 ponto percentual para cima ou para baixo. Indicou, entretanto,
que está menos convicto.
Ao reduzir seus juros de 11,25% para 10,75%
ao ano, previu nova queda de 0,5 ponto "na próxima reunião",
abandonando o plural que vinha empregando até então.
Em português claro, a instituição deixou
aberta a possibilidade de adotar um ritmo mais lento no corte dos juros, de
modo a esfriar mais a atividade econômica e a geração de empregos.
Pode parecer cruel —e é material farto para
demagogia política. No entanto a tolerância com a inflação não raro resulta em
danos sociais mais graves e duradouros que os gerados por uma política
circunstancial de aperto monetário.
Como divulgou o IBGE nesta
quinta (28), o
desemprego foi de 7,8% no trimestre encerrado em fevereiro, a menor taxa
para o período desde os 7,5% de 2015. A renda média do trabalho subiu 4,29%
acima da inflação em um ano.
Não são números espetaculares, mas bastante
benignos para um período de juros ainda elevadíssimos, que muito dificilmente
cairão abaixo de 9% anuais neste 2024. As estimativas centrais de mercado,
aliás, são de uma Selic não
inferior a 8,5% até o final de 2026.
Mesmo que não chegue a provocar estagnação ou
recessão econômica, uma taxa dessa magnitude é constrangimento óbvio à expansão
da atividade. O caminho virtuoso para reduzi-la não é leniência com a inflação,
que prejudicaria sobretudo a população pobre, mas o
controle de gastos orçamentários.
Ao rechaçar esse rumo, o governo Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT) leva o país a um desempenho provavelmente medíocre, além de mais
sujeito a riscos e incertezas.
O palavrório de Gilmar
Folha de S. Paulo
Ministros devem exercitar a autocontenção
para zelar pela credibilidade do STF
O ministro Gilmar Mendes,
do Supremo Tribunal Federal, voltou a vestir, recentemente, o que parece ser
seu figurino favorito fora da corte: o de comentarista político. Em mais de uma
ocasião, desfiou opiniões
sobre investigações conduzidas pela Polícia Federal que têm como
alvo Jair
Bolsonaro (PL).
Exercendo a função de ministro do Supremo,
contudo, Gilmar precisa observar certas restrições atinentes ao cargo. Uma
delas o impede de expressar, nos meios de comunicação, o que pensa sobre
processos pendentes de julgamento.
Não se trata de norma fútil. Ela existe para
proteger os magistrados de qualquer nesga de parcialidade capaz de pôr em
dúvida o mérito de uma decisão.
Ao comentar a situação do ex-presidente,
Gilmar dá de ombros a esse imperativo de um Estado de Direito. E não o faz pela
primeira ou segunda vez; o ministro tem longo histórico de atitudes que levam
ao descrédito do STF,
incluindo múltiplas viagens internacionais ao lado de figurões da política e da
economia.
Gilmar não está só. A subversão do bom
comportamento forense é comum entre os ministros —como se viu na participação
de Luís Roberto Barroso em evento da União Nacional dos Estudantes em
2023.
Quando se registram condutas como essas em
instâncias inferiores, há maneiras de corrigir o problema por meio de recursos
aos tribunais ou pela ação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Essas soluções, entretanto, mostram-se
inviáveis quando se trata do STF, última instância da Justiça e fora da alçada
do CNJ. Daí que, desde 1988, nenhum pedido de suspeição ou impedimento de
ministros desse tribunal tenha prosperado.
Nem seria o caso de lançar mão desses
remédios contra o palavrório de Gilmar. O próprio ministro deveria saber que
seu comportamento insufla o ânimo daqueles que, por apreço autoritário, pretendem
cercear os poderes do STF.
Com decisões delicadas pela frente, urge que a corte —cuja atuação é reprovada por 28% dos brasileiros, após pico de 38% em dezembro, segundo o Datafolha— aprenda a habilidade da autocontenção, a fim de zelar por sua credibilidade.
Supremo ‘à la carte’
O Estado de S. Paulo
Revisão sobre o foro especial em intervalo
tão curto só reforça a percepção de que a Corte não apenas é suscetível às
mudanças de vento na política, como é casuística, o que é ainda pior
O Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a se
debruçar sobre o foro especial por prerrogativa de função, o chamado “foro
privilegiado”, apenas seis anos depois de ter fixado uma tese sobre o tema.
Longe de ser um ponto fora da curva, a questão do foro é apenas a mais recente
de uma série de revisões de jurisprudência em curtíssimo prazo que reforçam a
percepção, amplamente difundida na sociedade, de que a mais alta instância do
Poder Judiciário seria não só suscetível às mudanças de vento na política, como
também casuística. Nessa toada, não há confiança na Justiça que resista.
No caso concreto, como mostrou o Estadão, os
ministros julgarão um habeas corpus impetrado pelo senador Zequinha Marinho
(Podemos-PA), que contesta a competência da Justiça de primeiro grau do
Distrito Federal para julgá-lo pela suposta prática de “rachadinha”, entre 2007
e 2015. Marinho argumenta que, por ter exercido cargos com foro por
prerrogativa de função durante todo esse tempo, os crimes dos quais é acusado
devem ser julgados pelo STF, não pela primeira instância. Foi a senha para que
a Corte, com quatro novos membros – Nunes Marques, André Mendonça, Cristiano
Zanin e Flávio Dino –, volte a tratar do assunto.
Não é nada improvável que, no julgamento
desse habeas corpus, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, a nova composição da
Corte fixe novo entendimento sobre o alcance do “foro privilegiado”. Em 2018,
vale lembrar, o STF decidiu que apenas os crimes cometidos por certas
autoridades durante o mandato e relacionados ao exercício do cargo poderiam ser
julgados pela Corte. Ao fim do mandato, os processos deveriam ser remetidos à
instância competente. Mas, como ficou notório nesses últimos seis anos, os
próprios ministros deram de ombros para essa orientação, o que, na prática,
revela que a questão não está pacificada como deveria.
Para citar apenas casos recentíssimos, o STF
já expediu mandados de busca e apreensão contra um cidadão que se envolveu numa
altercação em Roma com o ministro Alexandre de Moraes. Já julgou um sem-teto,
ao final absolvido, que fora acusado de crimes relacionados ao 8 de Janeiro.
Sob o manto opaco dos inquéritos intermináveis das fake news e das “milícias
digitais”, o STF tem se arvorado em juízo universal da defesa da democracia,
lidando com réus ou investigados que jamais deveriam estar submetidos à Corte Constitucional.
O caso Marielle Franco é outro que suscita a competência do STF como foro
criminal.
Procedendo dessa maneira, a Corte a um só
tempo maltrata a Constituição e desprestigia todo o Poder Judiciário, como se
não houvesse juízas e juízes anônimos Brasil afora com capacidade para julgar
esses crimes, em especial os cometidos contra o Estado Democrático de Direito.
Outros temas de grande relevância para o País
têm sido tratados com pouco cuidado – é forçoso dizer – pelo Supremo. Tome-se,
por exemplo, a questão da execução da pena após condenação em segunda
instância. Ao fim e ao cabo, trata-se de discussão sobre um princípio
fundamental consagrado pela Constituição – a presunção de inocência. Não
haveria de ser tão controvertido. No entanto, num curto intervalo de tempo, o
STF já manifestou posições diametralmente opostas sobre essa questão. Neste
momento, e sabe-se lá até quando, prevalece o entendimento, totalmente
equivocado, de que um condenado só pode ser preso após o trânsito em julgado da
sentença penal, ou seja, esgotadas todas as suas possibilidades recursais.
A volatilidade da jurisprudência, quase um
oximoro, é péssima não só para o próprio Supremo, mas para a credibilidade do
Poder Judiciário como um todo. Nunca será demais lembrar que cada cidadão tem
de respeitar a Justiça. Mas esta, por sua vez, também tem de respeitar cada um
dos jurisdicionados. E um cenário de incerteza jurídica é, fundamentalmente, um
quadro de desrespeito à sociedade.
Nesse sentido, não surpreende por que tantos
cidadãos concordem com a ideia segundo a qual não haveria um único STF, vale
dizer, uma única instituição colegiada e previsível, mas sim “onze ilhas” que
mudam seus entendimentos de acordo com conveniências do momento.
De novo o populismo penal
O Estado de S. Paulo
Ao propor endurecimento da lei, governadores do Sul e Sudeste aderem à mentalidade de que basta severidade para que haja mais segurança. Pode até ter apelo eleitoral, mas não funciona
Atribui-se a Capistrano de Abreu um projeto
de Constituição com apenas um artigo: “Artigo 1.º: Todo brasileiro deve ter
vergonha na cara. Parágrafo único: revogam-se as disposições em contrário”. A
boutade era uma crítica, sobretudo, à presunção de que bastava enunciar leis
para resolver os problemas do País – no caso, a falta de vergonha na cara. Foi
esse pensamento mágico, aliás, que gerou a quilométrica Constituição de 1988,
verdadeira obra aberta que pretende regular toda a vida nacional. Como parece
óbvio, nada disso foi capaz, por si só, de melhorar o País, mas não desistimos:
agora, governadores do Sul e do Sudeste acham que a criminalidade será
combatida com o endurecimento da legislação.
Liderado pelos governadores de São Paulo,
Tarcísio de Freitas, Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e Minas Gerais, Romeu
Zema, o grupo acredita que, para o “enfrentamento mais qualificado do crime”,
ajustes precisam ser feitos no Código Penal, no Código de Processo Penal e na
Lei de Execução Penal – leiam-se penas mais duras, novas tipificações penais,
maior estímulo ao encarceramento e regras que, na prática, dão maior
protagonismo à polícia. É a safra nova de lideranças com um enredo antigo:
contra o crime, novas leis; por mais segurança, respostas de fácil apelo junto
a uma população que se sente assustada e insegura; para uma maior eficiência
das polícias e do Poder Judiciário, leis mais duras e mais prisões.
Os governadores propuseram, por exemplo, a
possibilidade de prisão preventiva mesmo sem condenação com trânsito em julgado
de pessoas que reiteradamente praticam atos ilícitos – ou seja, na prática,
querem que o passado do criminoso o condene antecipadamente. O pacote inclui a
definição como homicídio qualificado aquele que é feito a mando de uma facção
criminosa (hoje, como homicídio simples, a pessoa pode ser solta ou ter
liberdade provisória ao cumprir 1/6 da pena). Outra medida propõe alteração na
lei para que se permita a prisão em casos de abordagens policiais que não
tenham sido feitas com base em elementos objetivos. Isto é, se acolhida, a
abordagem policial poderá ser conduzida ancorada em mero comportamento
suspeito, definido a critério “subjetivo” do policial.
Ainda que parte das ideias dos governadores
possa inspirar uma necessária revisão no tratamento de crimes cometidos por
grandes facções criminosas, as propostas não escondem o DNA de quem enxerga a
criminalidade no País como consequência de uma suposta legislação branda, que
precisaria ser urgentemente enrijecida. Basta lembrar que a Lei de Crimes
Hediondos, de 1990, foi alterada inúmeras vezes para abrigar mais e mais tipos
penais, sem que isso resultasse na redução da criminalidade. A Câmara dos Deputados
já chegou a ter inacreditáveis 1.550 projetos protocolados para alteração do
Código Penal. O número beira o absurdo, mas é resultado da convicção entre
muitos de que essa é uma perfumaria que dá voto. O medo, como se sabe, é arma
poderosa e sedutora, sobretudo perante uma população que se sente desprotegida.
Uma política criminal séria não pode ser
pautada por bravatas de apelo eleitoral. Se ouvida a voz das ruas para tal fim,
seria provável a introdução de penas extremas. Enquanto isso, com o tamanho da
população carcerária que tem e o estado de calamidade de seu sistema
penitenciário – que o Supremo Tribunal Federal reconheceu como um “estado de
coisas inconstitucional” –, fica óbvio dizer que o Brasil prende muito e mal,
sem produzir efeitos significativos na proteção da sociedade. Não se resolverá
esse duplo e complexo problema, contudo, com populismo penal. Em vez disso, é
necessário arregaçar as mangas, reformar as polícias, aperfeiçoar a capacidade
de solucionar crimes, desbaratar o poder do crime organizado nas penitenciárias
e colocar na cadeia só quem deveria estar lá. Não é fácil, mas, para começar,
basta seguir a Constituição de Capistrano.
O jogo do superávit
O Estado de S. Paulo
É hora de o governo começar a olhar para as
despesas, antes que o Congresso o faça por conta própria
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, jogou
a responsabilidade pelo cumprimento da meta fiscal nas mãos do Congresso
Nacional. Em entrevista à CNN, ele disse que as decisões que o
Legislativo tomará nas próximas semanas vão
definir se será possível alcançar um superávit primário de 0,5% do Produto
Interno Bruto (PIB) em 2025. “As pessoas imaginam que o resultado primário
depende só do Executivo. Isso é um erro, e é um erro maior hoje do que já foi
no passado”, disse o ministro, usando como exemplo a facilidade com que o
Congresso tem derrubado vetos presidenciais.
Haddad até tem alguma razão. De fato, quem dá
a última palavra sobre o Orçamento é o Congresso, e a aprovação de qualquer
proposta de interesse do governo, sobretudo quando ela altera a tributação de
algum setor, requer muita negociação política. É algo que o ministro demonstrou
ter ao longo do ano passado, quando conquistou o apoio do Legislativo para sua
agenda econômica.
Neste ano, no entanto, o Congresso tem dado
mostras de que chegou ao seu limite no que diz respeito ao pacote de
recuperação de receitas. Depois da aprovação da taxação das apostas esportivas
online, dos fundos exclusivos e offshore, do retorno do voto de qualidade no
Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e da histórica reforma
tributária, o ministro pode ter achado que a batalha estava ganha no
Legislativo.
Dentro desse espírito, Haddad propôs a
reoneração da folha de pagamento e o fim do Programa Emergencial de Retomada do
Setor de Eventos (Perse) por meio de uma medida provisória (MP). Para o
ministro, a MP era uma maneira de “enfrentar” o debate fiscal, embora o próprio
Haddad tenha admitido que a iniciativa era “pouco ortodoxa” sob o ponto de
vista formal. Para o Congresso, no entanto, a edição de uma MP em pleno recesso
de fim de ano foi vista como uma afronta à vontade dos parlamentares.
O desfecho não poderia ser mais previsível.
Para evitar que a proposta fosse devolvida ao Executivo, Haddad teve de voltar
atrás e optar por projetos de lei para tratar de cada um dos assuntos. Deles,
segundo Haddad, depende a manutenção da meta de superávit primário de 2025,
parte essencial da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) a ser enviada pelo
governo ao Congresso até o dia 15 de abril.
Cobrar o Congresso é uma estratégia perigosa
e que não costuma funcionar. Primeiro, porque é o governo quem tem de construir
maioria suficiente para aprovar suas propostas. Segundo, porque a
responsabilidade por violar o objetivo fiscal recai unicamente sobre o
Executivo. E terceiro, porque, no limite, essa provocação pode levar o
Legislativo a reagir e pautar projetos como a péssima reforma administrativa
que tramita na Câmara.
Ainda que Haddad seja habilidoso o suficiente para vencer a resistência dos parlamentares a esses projetos, não será possível atingir as ambiciosas metas fiscais que o ministro traçou apenas com novas receitas. É hora, portanto, de o governo começar a olhar para o lado das despesas, antes que o Congresso o faça por conta própria e da pior maneira possível.
Os desafios do autismo
Correio Braziliense
Levantamento da Associação Brasileira de
Planos de Saúde (Abramge) mostra que os custos com tratamentos para transtorno
do espectro autista (TEA) superaram os gastos com tratamentos oncológicos
A onda de diagnósticos — precoces ou tardios
— de pessoas com autismo, inclusive de celebridades, no Brasil, tem chamado a
atenção de especialistas e profissionais de saúde em geral. A prova é que um
levantamento da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) mostra que
os custos com tratamentos para transtorno do espectro autista (TEA) superaram
os gastos com tratamentos oncológicos. Somente no ano passado, as despesas com
TEA atingiram 9% do custo médico total, ultrapassando os 8,7% destinados à oncologia.
Isso se intensificou com as mudanças
implementadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) desde 2021, que
incluem cobertura ilimitada de sessões com psicólogos, terapeutas ocupacionais
e fonoaudiólogos, além de outros métodos indicados para tratamento desse
transtorno.
Se por um lado os pacientes diagnosticados
têm recebido um melhor tratamento — multidisciplinar, na maioria dos casos —,
por outro muitos não têm como arcar com esses gastos. Um outro estudo, Retratos
do autismo no Brasil, realizado pela healthtech Genial Care, em parceria com a
Tismoo.me, revela que 73% dos entrevistados mencionam dificuldades financeiras
para arcar com os custos do tratamento.
O relatório revela, ainda, que a grande
maioria dos cuidadores está profundamente preocupada com o futuro a longo prazo
da criança com autismo (79%). E vale destacar que essa preocupação integra
também os estudos anteriores. Esses profissionais apontam a incerteza de um
futuro a longo prazo para essas crianças em termos de desenvolvimento, inclusão
e apoio emocional. Por isso, intervenções multidisciplinares e orientação
parental são fundamentais nesse aspecto. Além disso, o setor de saúde deve ser
ativo, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida de crianças autistas e
suas famílias.
Atualmente, em todo o planeta, os autistas
representam 2% da população, e, nos últimos 20 anos, houve uma grande evolução
no diagnóstico devido aos avanços das técnicas de sequenciamento. Mas no Brasil
ainda há precariedade na adoção de políticas públicas que permitam o
acompanhamento e o tratamento de todos os brasileiros com essa condição. Entre
2017 e 2021, o Censo Escolar registrou um aumento de 280% no número de
estudantes com TEA matriculados em escolas públicas e particulares do país, e a
Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que o Brasil tenha entre 2 milhões e
4 milhões de pessoas com o transtorno.
Fato é que há falhas na condução das práticas que envolvem o tema autismo. Os sistemas de saúde e educação — tanto a rede pública quanto a privada — precisam se realinhar, visando a capacitação de pessoas com autismo. Focar o tratamento na doença ou na "cura" não é o caminho ideal, bem como práticas como terapias intensivas e salas de aula separadas. Cabe também à sociedade enxergar a pessoa com autismo e suas famílias como parte integrante da comunidade, e ser capaz de garantir um suporte inclusivo que reforce as diferenças de forma positiva. Há muito o que fazer, mas é preciso começar.
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