sexta-feira, 29 de março de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Marionetes

CartaCapital

Os militares, insuflados pelos senhores, deram o golpe. Mas quem puxava as cordas eram os norte-americanos

No início dos anos 60, a sociedade brasileira vivia uma era de saudável e promissora agitação política. Batizado, na época, como “luta de classes”, o fenômeno era decorrência inevitável de quatro décadas de industrialização, modernização econômica e rápida transformação social. O progresso material das sociedades modernas suscita inconvenientes e transtornos, mas é mobilizador de energias e ideias. Os sindicatos, as associações de classe e as organizações estudantis fervilhavam. Os centros acadêmicos, a UEE e a UNE participavam ativamente do debate nacional.

Ainda não se sabe se a despeito ou por conta do jogo estratégico entre as duas grandes potências, o pós-Guerra foi generoso com alguns países da periferia, sobretudo com o Brasil. Entre seus pares, o país tropical era líder no campeonato de taxas de crescimento e de incorporação de novas atividades e de trabalhadores ao mundo da indústria e das cidades. Havia entusiasmo e, provavelmente, muita ilusão. Mas já disse alguém que as ilusões são necessárias e, em muitos casos, estimulantes.

Era, então, possível e razoável imaginar o País cada vez mais próximo de uma sociedade justa e contemporânea, expurgada da herança colonial e de seus humores subalternos. Alguns chamavam essa esperança de socialismo. Outros almejavam que a utopia se assemelhasse às condições de vida e aos padrões de convivência que estavam em construção na Europa Ocidental com o avanço do Estado do Bem-Estar Social.

Na outra ponta do espectro político estava a malta do fazendão subdesenvolvido que combinava cosmopolitismo americanista com a reconhecida ojeriza pela difusão da luz elétrica e da água encanada para o povo mais pobre. Seja como for, a bandeira das forças progressistas foi desfraldada na defesa das reformas de base – agrária, urbana, bancária, trabalhista e previdenciária. As hostes conservadoras e reacionárias, que nunca abandonaram a luta contra o projeto nacional de industrialização, brandiam os chavões da ameaça comunista, do ouro de Moscou, da “cubanização” do Brasil.

Sessenta anos depois, é recomendável alguma frieza na análise: como todos os periféricos, éramos, à esquerda e à direita, protagonistas dos conflitos que se desenvolviam nos palcos globais da Guerra Fria. Vou retomar um texto já publicado em nossa CartaCapital para amparar minhas digressões a respeito da importância da participação norte-americana no golpe civil-militar de 1964. Terça-feira, 7 de janeiro de 2014, foi anunciada a “descoberta” de uma gravação reveladora. Nos idos de 1963, o então presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, gravou a conversa com seu embaixador no Brasil. Kennedy perguntou a Lincoln Gordon se os EUA poderiam “intervir militarmente” no Brasil para depor o presidente João Goulart. Às vésperas do famigerado golpe, surgiu um slogan premonitório: “Basta de intermediários, Lincoln Gordon para presidente”.

Em seu livro A Segunda Chance do Brasil, subtítulo A Caminho do Primeiro Mundo, publicado em 2002, Gordon relata um encontro na Casa Branca com o presidente Kennedy: “Durante a reunião na Casa Branca, eu alertei o presidente Kennedy sobre a possibilidade de algum tipo de ação pelos militares brasileiros e ele perguntou qual deveria ser a nossa atitude”. Depois de tergiversar, enrolar com considerações a respeito da admiração de Goulart pelo presidente norte-americano, Gordon foi ao que interessava e concluiu: “O mais importante é ao mesmo tempo organizar as forças tanto políticas quanto militares para reduzir o poder de Goulart […] ou, em uma situação extrema, destituí-lo, se as coisas chegarem a esse ponto, o que dependeria de uma ação explícita de sua parte”. Minutos depois, o subsecretário para Assuntos Interamericanos, Richard Goodwin, observou: ‘Podemos muito bem querer que eles (militares brasileiros) assumam o poder no fim do ano, se eles puderem fazer isso”.

Como todos os periféricos, éramos, à esquerda e à direita, peças no joguete da Guerra Fria

Na nota de rodapé da página 325 da primeira edição do livro publicado pela Editora Senac, Gordon escreve: “Para minha surpresa, revelou-se recentemente que o presidente Kennedy tinha instalado um aparelho de gravação no Salão Oval. Nessa conversa de 30 de julho, que incluiu também Richard Goodwin, foi a primeira reunião a ser gravada. A transcrição tem muitos hiatos (sic), alguns por razões de segurança, outros porque certas passagens não puderam ser decifradas. A maior parte desse material está disponível agora nas páginas 9 a 25 de Timothy Naftali (Org.) The Presidential Records, John F. Kennedy, The Great Crisis, Vol. 1, 2001.”

Gordon conspirava abertamente com as “forças democráticas” nativas, aquelas que estão permanentemente a arquitetar a supressão da democracia. Da conspirata participavam naturalmente os homens de bem: ricos de todos os gêneros, parte da classe média ilustrada, semi-ilustrada e deslustrada. Até mesmo os habitantes de outras galáxias sabiam que senhores da mídia tupiniquim estavam metidos até a raiz dos cabelos nas conversações e maquinações conspiratórias articuladas por Gordon. É surpreendente que manifestem surpresa com as palavras de Kennedy registradas na gravação.

Segue o enterro: a situação política, continua Gordon, “me levou a endossar a sugestão da CIA de que fornecesse dinheiro a candidatos amigáveis”. Para tanto, a agência norte-americana de espionagem e informação valeu-se do Ibad, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática, criado em 1959 por um certo Ivan Hasslocher com o propósito de combater o governo Juscelino Kubitschek, que, sabem todos, era um perigoso aliado do comunismo internacional.

Os Estados Unidos haviam patrocinado a deposição de Jacobo Árbenz na Guatemala e instigaram a queda de Juan Domingo Perón na Argentina. O suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e a coragem do então general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, ministro da Guerra, em 11 de novembro de 1955, abortaram as tentativas de interrupção da normalidade institucional no Brasil. Mas, em março de1964, o País entrou finalmente no roteiro dos “golpes democráticos” gestados em Washington.

Está mais do que provado há tempos que a participação da CIA e de outras agências norte-americanas no golpe foi decisiva. Washington foi generosa na transferência de tecnologia: enviaram experts nas técnicas de tortura, conforme depoimento insuspeito e digno de muitos oficiais brasileiros que se recusaram a compactuar com os torturadores. Na Terra Brasilis, a camarilha do vira-latismo preparou seu arsenal golpista, amontoando os argumentos de sempre para brecar o avanço dos movimentos reformistas e progressistas. Ontem como hoje, sacam da algibeira o nheco-nheco do “perigo comunista”.

No excelente livro 1964: História do Regime Militar Brasileiro, Marcos Napolitano observa na lógica particular da classe média brasileira, a ascensão dos “de baixo” é sempre vista como ameaça àqueles que estão nos andares de cima do edifício social. Como os que estão na cobertura têm mais recursos para se proteger, quem está mais perto da base da pirâmide social se sente mais ameaçado. Não por acaso, o fantasma do comunismo encontrou mais eco nesses segmentos médios. As classes médias, bombardeadas pelos discursos anticomunistas da imprensa e de várias entidades civis e religiosas reacionárias, acreditaram piamente que Moscou tramava para conquistar o Brasil, ameaçando a civilização cristã, as hierarquias “naturais” da sociedade e a liberdade individual.

Os “homens de bem” da época e a mídia estavam metidos até a raiz dos cabelos nas maquinações conspiratórias dos EUA

Vou relembrar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, entre tantas manifestações que alertavam para os ricos da derrocada da sociedade brasileira no abismo do socialismo ou coisa parecida. No dia 19 de março de 1964, as ruas de São Paulo foram tomadas por uma multidão capitaneada por entidades conservadoras, entre tantas a União Cívica Feminina, que abrigava em seu comando senhoras da alta e da média-alta sociedade.

A multidão reuniu-se na Praça da República e marchou até a Praça da Sé, atravessando o Centro da cidade. Observei a tigrada percorrendo a Rua Barão de Itapetininga. Lancei o olhar desde um andar do edifício da Editora Brasiliense, na companhia do meu companheiro de todas as horas, o professor João Manuel Cardoso de Mello.

Terminada a procissão dos patriotas, dona Stella, irmã do conhecido Paulo Machado de Carvalho e admiradora de Adolf Hitler, partiu em visita à família Cardoso de Mello. Dona Adelaide, mãe do professor João Manuel, indagou Stella a respeito da Marcha:

– Stella, com foi a marcha das grã-finas?

Resposta:

– Grã-finas? Nada disso. Tinha até uns pretos

Pano Rápido. 

*Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.

 

3 comentários:

marcos disse...

Deixou de ser babaca para ser um FDP², ou seja. Farsante Da Política e Filho De Putin.

MAM

Daniel disse...

Excelente! Nunca é demais lembrar a participação decisiva do governo estadunidense e da mídia brasileira no golpe militar de 1964, bem como do grande empresariado brasileiro e dos políticos "liberais" na "revolução" que nos deixou por 20 anos sob uma DITADURA MILITAR.

O historiador, jornalista, sociólogo e professor, Dr. Juremir Machado da Silva, cunhou a expressão GOLPE MIDIÁTICO-CIVIL-MILITAR para o título de um de seus livros. Ele tem republicado algumas partes do livro no sítio eletrônico:

matinaljornalismo.com.br/categoria/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/

ADEMAR AMANCIO disse...

A verdade nua e crua em carne-viva.