Correio Braziliense
Um passeio pela história serve para reflexão
sobre Lula e a maioria conservadora do Legislativo. É um equívoco imaginar uma
aliança entre o Executivo e STF para domar o Congresso
Na década de 1960, as reformas de base eram um conjunto de mudanças de caráter liberal-social, faziam sentido diante das necessidades de modernização do país. Consistiam nas reformas agrária (distribuição de títulos de terras, desapropriação de terras improdutivas e produção para o mercado interno), administrativa (sistema de compras, meritocracia e regras orgânicas), eleitoral (voto para militares de baixa patente e analfabetos), bancária (controle da inflação por órgão central), tributária (sistema de arrecadação e combate a fraudes e evasão fiscal) e constitucional (necessária para viabilizar as demais).
Algumas foram parcialmente realizadas durante
o regime militar, a maioria foi consagrada na Constituição de 1988 e a
tributária, agora, está na ordem do dia. Era um programa herdado do governo
Juscelino Kubitschek (1956-1961), que fora reapresentado pelo PTB, partido do
vice-presidente João Goulart, como plataforma eleitoral. Na época, a
vice-presidência era disputada separadamente. Entretanto, o vitorioso nas
eleições foi Jânio Quadros, que tinha um projeto oposto e, na Presidência,
tomava decisões muito contraditórias. Realizou uma reforma cambial ultraliberal
e, ao mesmo tempo, condecorou o revolucionário Ernesto Che Guevara, um dos
líderes da Revolução Cubana.
A instabilidade e contradições políticas de
seu governo levaram Jânio à renúncia. Os ministros da Guerra, general Odílio
Denis; da Marinha, vice-almirante Sílvio Heck; e da Aeronáutica, brigadeiro
Gabriel Grün Moss, porém, tentaram impedir a posse de Goulart. O Congresso
Nacional não aceitou o golpe dos militares, mas impôs uma solução
parlamentarista, para dar posse ao vice em 7 de setembro de 1961. No poder, as
reformas de base passaram a ser seu programa de governo, com apoio das forças
de esquerda, agrupadas na Frente de Mobilização Popular (FMP), na União
Nacional dos Estudantes (UNE), o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), no
Pacto de Unidade e Ação (PUA) e na Frente ParlamentarNacionalista (FPN).
Em 6 de janeiro de 1963, por meio de um
plebiscito, o regime presidencialista foi restabelecido. Logo a seguir, Goulart
enviou ao Congresso os projetos de reforma agrária e bancária. A reforma
agrária, proposta pelo PTB, foi rejeitada pelo Legislativo, que também rechaçou
a lei de remessas de lucros proposta por Jango. A maioria no Congresso não
aceitava as reformas de base. À época, era um dogma da esquerda brasileira a
tese de que o país não se desenvolveria com monocultura de exportação e sem
nacionalizar as empresas de capital estrangeiro.
Era uma incompreensão do que estava ocorrendo
no Brasil, onde o capitalismo no campo já era uma realidade, liderado pelo
agronegócio, e a industrialização se dava com forte presença do capital
estrangeiro, sobretudo no setor de bens de consumo duráveis. A radicalização
política se deu muito mais em bases ideológicas, sem que a esquerda levasse em
conta a real correlação de forças na sociedade nem prever a via de modernização
conservadora que seria posta em prática, em marcha forçada, pelos governos militares.
Em vez de recuar em ordem, com apoio popular, Goulart apostou na radicalização.
A grande contradição
Em 13 de março de 1964, foi realizado o
Comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, que reuniu cerca de duzentas
mil pessoas, no qual Goulart anunciou a desapropriação de terras improdutivas e
a estatização de refinarias. O comício serviu de pretexto para que militares e
políticos de direita, com forte apoio do clero católico e da classe média,
intensificasse a conspiração golpista, que foi financiada pelos Estados Unidos.
A tentativa de mobilizar a sociedade para fazer a reforma agrária por decreto,
como fizera com a lei de remessa de lucros em janeiro de 1964, resultou na
crise política com o Congresso e no golpe de estado que destituiu Goulart, há
60 anos.
Por ironia da História, foi um Congresso
transformado em colégio eleitoral, de maioria conservadora, o mesmo que barrou
a emenda das eleições diretas, que viria a pôr fim ao regime militar, ao eleger
Tancredo Neves, em 1985, com respaldo amplo da sociedade civil. Derrotados, os
militares se retiraram em ordem, num processo político iniciado aos trancos e
barrancos, e muita repressão, pelo presidente Ernesto Geisel, na segunda metade
da década de 1970, porém, sendo mais bem-sucedido do que o seu projeto de capitalismo
de estado nacional-desenvolvimentista, autárquico e concentrador de renda. A
última prova desse sucesso político talvez tenha sido o fracasso do projeto
golpista do ex-presidente Jair Bolsonaro, que não teve respaldo do alto-comando
das Forças Armadas, cujo profissionalismo é uma herança de Geisel.
Mas, voltando o Congresso Nacional, esse
passeio pela história serve para reflexão sobre a contradição existente entre o
governo Lula e a maioria conservadora do Legislativo, que flerta com o
semipresidencialismo. É um equívoco imaginar uma aliança entre o Executivo e o
Supremo Tribunal Federal (STF) para domar o Congresso. Não cabe ao Supremo
legislar sobre as políticas públicas, embora tenha o dever de zelar pela
constitucionalidade das leis e pelos direitos dos cidadãos.
Se toda vez que for derrotado no Congresso, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva recorrer à sua prerrogativa institucional
de argüir a inconstitucionalidade das decisões tomadas pelo Legislativo, como
no caso da derrubada dos vetos às desonerações fiscais, mesmo que tenha o
respaldo daquela Corte, estaremos nos trilhos traiçoeiros que levam ao
“iliberalismo” político. Nas regras do jogo, os poderes são independentes e
harmoniosos, mas é o Congresso que representa a totalidade dos votos dos
cidadãos. Tanto que pode, em situações de grave crise, destituir o presidente
da República, por meio do impeachment.
2 comentários:
Talvez o STF queira criar oficialmente o "impeachment condicional"
Sei.
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