O Globo
Quanto mais longa, mais nos entorpecemos com
o noticiário repetitivo. Só quando a desgraceira acusa algum pico de
desumanidade, voltamos a prestar atenção ao horror
É sabido que somente cada um de nós pode construir a ponte em que atravessará o rio da vida. Nessa trajetória, somos únicos e estamos sozinhos. O caminho de fuga mais fácil para essa travessia, esse navegar pela vasta e complexa realidade que escapa a nosso controle e compreensão, é acumular certezas. Só que certezas de porteira fechada, além de daninhas para nós mesmos, em nada ajudam o convívio em sociedade. Como escreveu o espirituoso ensaísta americano George Saunders, neste mundo cheio de pessoas que confundem certeza com poder, é um alívio encontrar alguém que não teme a própria insegurança. Não raro são mentes privilegiadas, perpetuamente curiosas, que sabem como a realidade é plural, não singular, planície para vários pontos de vista, não ponto de observação com foco único.
A bebê Sabreen al-Rouch Jouda não teve tempo
para esse tipo de elucubração existencial. Nasceu prematuramente, arrancada do
ventre materno no Hospital Emirati de Rafah, em Gaza, no sábado, dia 20. Mãe,
pai e irmã haviam morrido nos escombros da casa familiar atingida pelo
bombardeio israelense. Sobreviveu por cinco dias envolta em orações dos
parentes. “Agora”, contou o tio à Associated Press, depois de enterrá-la numa
franja de cemitério ainda intacta, “a família do meu irmão está completamente
erradicada. Será deletada do registro civil. Não restará nenhum vestígio dele”.
Em algum momento, toda guerra vira sumidouro
de vidas — quanto mais longa, mais nos entorpecemos com o noticiário
repetitivo. Só por vezes, quando a rotina da desgraceira acusa algum pico de
desumanidade, voltamos a prestar alguma atenção ao horror. Foi assim com a
recente descoberta de mais de 700 cadáveres palestinos no perímetro de dois
grandes complexos hospitalares do enclave — o Nasser, em Khan Younis, e o
Al-Shifa, em Gaza.
Durante seis dias, uma única escavadeira (só
resta uma em funcionamento na região) desenterrou mais de 320 corpos de valas
comuns na área do hospital Nasser. Semanas antes, perto de 400 outros haviam
sido descobertos entre as ruínas do Al-Shifa, desossado pelas Forças de Defesa
de Israel depois de um cerco de duas semanas em abril. Segundo testemunho de
entidades humanitárias, a cada corpo encontrado acorrem dezenas de pessoas na
esperança de identificar algum parente desaparecido. Algumas lápides improvisadas
têm inscrições rudimentares: “Sujeito alto. Cabelo comprido. Camiseta cinza”.
Fiapos de informação deixados por alguma alma caridosa. Cabe então a cada
parente tentar lembrar o que filho, mãe, irmão, mulher usavam quando foram
mortos. Felicidade, em Gaza, é poder salvar os seus mortos da invisibilidade de
um não enterro.
De onde surgiram tantos cadáveres de uma só
vez? De acordo com a Defesa Civil do enclave, seriam, originalmente, túmulos
temporários para quem morreu no perímetro hospitalar durante o cerco israelense
regado a bombas. Com os hospitais cercados, era impossível levar qualquer morto
até um cemitério. O próprio Exército de Israel, em comunicado, confirma que os
cadáveres de palestinos apressadamente enterrados “foram examinados” pelas
forças invasoras, na tentativa de “localizar nossos reféns e desaparecidos”. Acrescenta
o comunicado que “a perícia foi realizada de forma cuidadosa”, e os cadáveres
não pertencentes a israelenses foram “devolvidos a seu lugares”. Não há menção
de haver sido encontrado qualquer um dos 133 reféns ainda em mãos dos
terroristas do Hamas.
De Washington a Berlim, passando por Londres,
Bruxelas e Paris, e inevitavelmente pela ONU, houve um surto de inquietação com
pedido de “apuração transparente, clara e crível”, conduzida por investigadores
independentes. O jornalista palestino Akram al-Satarri, entrevistado pelo
portal Democracy Now!, dá de ombros. Exerce o jornalismo há 16 anos e perdeu a
conta de comissões independentes, investigações, relatórios internacionais,
missões de averiguação vazias. “A comunidade internacional falhou ao não observar
a lei humanitária, que sabe ser tão rica em termos e palavreado. Precisamos de
algo tangível, já.”
Esse algo ainda tímido veio à luz nesta
semana, na forma de um apelo capitaneado por um emparedado presidente Joe Biden
em conjunto com 16 outras nações (inclusive o Brasil), para que o Hamas aceite
a proposta de libertar todos os reféns que mantém cativos em condições
inimagináveis por mais de 200 dias. Em troca, um cessar-fogo imediato e
prolongado — o que, para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, equivaleria a
admitir que sua guerra ao Hamas fracassou, que a realidade é plural e que o
acúmulo de certezas é sinal de fraqueza. A estudantada mundial, com seus erros
e acertos de DNA, já compreendeu o essencial. Falta aos adultos no poder
fazerem o mesmo.
2 comentários:
Muito bom! Quando um Estado assassina mais de 15 mil crianças, destrói dezenas de hospitais, centenas de escolas e dizima quase todas as cidades duma região, expulsando 2 milhões de pessoas das suas residências quase completamente explodidas, só pode ser qualificado como um ESTADO TERRORISTA! E este governo genocida ainda é apoiado por CÚMPLICES como EUA e principais governos europeus! Só os cidadãos destes países é que se revoltam com as atrocidades cometidas pelo Estado TERRORISTA de Israel e seu governo criminoso!
Tarcísio e Caiado foram lá...
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