quinta-feira, 25 de abril de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Renovação do Perse é erro de R$ 15 bilhões

O Globo

Projeto de Lei prorrogando benefício concedido na pandemia a setor de eventos prejudica equilíbrio fiscal

Em mais um sinal de descaso com a responsabilidade fiscal, a Câmara aprovou na terça-feira um Projeto de Lei que prorroga o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos, conhecido pela sigla Perse. Criado em 2021 para ajudar empresas a enfrentar a crise econômica provocada pela pandemia, o Perse se tornou mais uma evidência de como, no Brasil, o provisório e emergencial tende a perdurar por mais tempo que o razoável. Seu custo é significativo. Dados da Receita Federal mostram que consumiu R$ 10,8 bilhões em renúncias fiscais em 2022 e R$ 13,1 bilhões no ano passado. Se o texto for aprovado no Senado, mais R$ 15 bilhões deixarão de entrar nos cofres do governo até 2026.

A votação na Câmara aconteceu exatamente dois anos depois de o Ministério da Saúde divulgar portaria declarando o fim da Emergência em Saúde de Importância Nacional causada pela Covid-19. De lá para cá, o desemprego no país caiu de 10,5% para 7,8%, com acréscimo de 5,7 milhões de vagas. Desde novembro de 2021, a desocupação está abaixo do nível pré-pandemia, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), do IBGE. O rendimento médio do brasileiro subiu 12% nos últimos dois anos. Esses números tiveram efeito positivo no faturamento de hotéis, bares, parques de diversões, feiras ou agências de viagem — principais segmentos beneficiados pelo Perse.

Ciente da realidade fiscal ingrata — todas as projeções sugerem que a meta de zerar o déficit neste ano não será cumprida, e as de 2025 e 2026 foram afrouxadas —, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fez o que pôde para barrar a prorrogação do programa. Acabou cedendo diante da falta de força do governo no Congresso e da insistência dos parlamentares. Restou a possibilidade de reduzir os danos. Haddad tentava segurar a renúncia fiscal em no máximo R$ 8 bilhões, mas momentos antes da votação aceitou limitar o benefício a R$ 15 bilhões, sem correção da inflação. Também houve redução de 44 para 30 setores contemplados (a intenção do governo era limitar o total a 12). O PL prevê ainda um gatilho para o fim do programa. Se o valor previsto for atingido antes de 2026, o Perse poderá ser suspenso após audiência na Câmara.

O acompanhamento do custo será feito em relatórios bimestrais da Receita Federal. Na tentativa de reduzir o risco de fraude e lavagem de dinheiro, o Fisco também passará a habilitar as empresas interessadas em participar. As que faturam acima de R$ 78 milhões não terão mais isenção de Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) a partir do ano que vem. Mas continuarão com alíquota zero no PIS e Cofins.

Para azar do brasileiro, os deputados resolveram fechar os olhos às evidências. Embora possa haver hotéis, bares e afins ainda em dificuldades, como insistem em dizer representantes do setor, a prorrogação do benefício não é mais justificável. A economia se recuperou da queda brusca provocada pela pandemia, e o montante já concedido em benefícios foi gigantesco. Parece evidente que o Brasil tem demandas mais urgentes. E o valor previsto até 2026 tornará bem mais difícil o urgente equilíbrio das contas públicas. Entre priorizar a racionalidade e ceder ao lobby dos favorecidos com a benesse, os deputados ficaram com a segunda opção. Um erro de R$ 15 bilhões.

Protecionismo incentiva inflação e dificulta aumento de produtividade

O Globo

Tarifa de 25% estipulada sobre o aço ignora o efeito positivo que abertura comercial tem sobre economia

Sob pressão da indústria siderúrgica, o governo anunciou a imposição de cotas e de uma sobretaxa de 25% sobre as importações de aço que excederem o limite — hoje a tarifa praticada está em 10,8%. Repete-se uma história conhecida: recorre-se ao protecionismo para atender ao interesse da indústria nacional, e os consumidores deixam de ser beneficiados por preços baixos no exterior.

O motivo alegado pelo governo é a “inundação” de aço chinês, comprovada, diz o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (Mdic), por importações, em 2023, 30% superiores à média verificada entre 2020 e 2022. De nada adiantou a mobilização em Brasília de mais de uma dezena de entidades representativas de setores que têm o aço como insumo básico — construção civil, máquinas e equipamentos, veículos, eletrodomésticos, construção naval ou autopeças. A Câmara Brasileira da Indústria da Construção Civil ainda tentou explicar ao comitê de dez ministérios autor da medida que o principal fornecedor de vergalhão às construtoras é a Turquia, e não a China. Foi em vão.

Para se justificar, o governo recorre também ao avanço do protecionismo no mundo, em particular ao exemplo do presidente americano, Joe Biden, que defende triplicar as tarifas sobre o aço chinês e acusa Pequim de praticar comércio desleal. Mas Biden tem motivos políticos — garantir o voto em estados americanos produtores de aço. A tarifa deveria se justificar em termos econômicos. Não é o caso.

No governo Michel Temer, a Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos (Seae) simulou em estudo uma abertura comercial ampla, zerando alíquotas de importação. Constatou que os preços cairiam em cerca de 5% na economia como um todo. Em setores protegidos demais, como automóveis, couro, têxteis ou vestuário, a deflação ficaria entre 6% e 16%. Ao mesmo tempo, o nível total de empregos ficaria inalterado e, na sequência da abertura comercial, 75% dos setores da economia abririam novas oportunidades de trabalho.

É preciso, ainda, exorcizar o fantasma histórico da quebradeira generalizada no caso de uma abertura ampla da economia ao exterior. O mesmo estudo analisou os efeitos do corte de tarifas de 37% para 12% feito sobre a importação de produtos manufaturados entre 1990 e 1995. A produtividade do país, em queda na segunda metade dos anos 1980, cresceu em razão da reação das empresas à competição externa. Para reagir, elas tiveram acesso mais fácil a máquinas, equipamentos e insumos importados.

A decisão equivocada de criar cotas e estabelecer tarifas sobre o aço chinês mostra, portanto, que o país esquece até as políticas que deram certo. Ao reagir com a criação de barreiras à importação, o Brasil deixa de aproveitar preços mais baixos no exterior, alimentando a inflação. Além disso, retira um incentivo para o parque siderúrgico se tornar mais eficiente e produtivo. Quem pagará o preço será o consumidor.

Tensão política põe em risco reforma tributária

Folha de S. Paulo

Complexa, regulamentação do novo sistema começa num momento de fragilidade do governo, o que pode favorecer lobbies

A regulamentação da essencial reforma tributária começa num clima político desfavorável para o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —o que significa, na prática, a falta de liderança clara do processo. As dificuldades aumentaram com a antecipação da sucessão dos comandos das Casas legislativas.

O sucesso da simplificação dos impostos depende de uma boa legislação complementar, com um mínimo de exceções às novas regras. Entretanto os lobbies por privilégios têm maior chance de êxito num ambiente de fragilização política do Palácio do Planalto.

É grande a complexidade dos detalhes que a regulamentação terá de abordar. Apenas o primeiro dos projetos do Executivo, que trata da lei geral para os novos tributos, tem 500 artigos e 300 páginas, contando os anexos. É mais do que o dobro do Código Tributário Nacional, que conta com 218 artigos.

Se a espinha dorsal da PEC 45, que originou a reforma, era conhecida desde 2019, quando foi protocolada e extensamente debatida, a legislação infraconstitucional é um mundo novo, desconhecido.

Uma discussão central e sujeita a múltiplas pressões é o rol dos setores que terão alíquota reduzida. Num exemplo, quem paga a alíquota mais baixa de educação? Só a escola básica ou também o curso de inglês e a academia de esportes?

Até agora, o ministro Fernando Haddad mostrou estratégia errática na condução do processo de elaboração e envio dos projetos. Prometeu entregar as propostas em conjunto no início deste abril, mas o trabalho atrasou e haverá fatiamento da reforma.

Estados e municípios ainda têm pontos em desacordo com o que o governo quer e também entre eles, como mostrou a Folha.

Tal cenário reforça o risco de que a negociação dos projetos se dê no varejo político, perpetuando distorções do sistema tributário.

Há ainda questões jurídicas a serem enfrentadas. A ministra Regina Helena Costa, do Superior Tribunal de Justiça, manifestou o entendimento de que a principal inovação da reforma tributária —a criação de dois tributos sobre bens e serviços, com competência tributária compartilhada— sinaliza conflitos nos tribunais.

Uma das grandes críticas ao sistema atual é justamente a ineficiência na recuperação e cobrança dos impostos por parte dos fiscos e o enorme contencioso judicial.

A reforma, que só entrará em vigor em 2026, busca uma mudança radical do processo administrativo, com centralização da arrecadação em um comitê gestor e resolução de disputas no STJ.

Sem uma regulamentação precisa, corre-se o risco de perpetuar a mixórdia de exceções e judicializações existentes hoje.

Escolher ser mãe

Folha de S. Paulo

Lei avançou na regulação da laqueadura, mas ainda é preciso facilitar o acesso

Quando se trata da autonomia da mulher sobre sua saúde reprodutiva, leis nem sempre são suficientes para garantir direitos no Brasil.

No caso da laqueadura, apesar de a norma aprovada em 2022 ter diminuído o limite mínimo de idade para o procedimento, de 25 para 21 anos, e retirado a obrigatoriedade de autorização do cônjuge, brasileiras precisam lidar com recusas de médicos, infraestrutura limitada e burocracia excessiva.

Transtornos começam pela redação da reforma. Entre a manifestação da vontade da mulher e a cirurgia, são necessários no mínimo 60 dias, quando a paciente receberá "aconselhamento por equipe multidisciplinar com vistas a desencorajar a esterilização precoce".

De acordo com o Ministério da Saúde, o texto indica conscientização, não tentativa de "convencê-la a desistir" —mesmo que "desencorajar" signifique exatamente isso.

Reportagem da Folha colheu relatos de mulheres que, durante esse período, precisaram reunir documentos como pareceres de ginecologista, psicólogo, assistente social e Comitê de Ética do hospital para fazerem a laqueadura.

Há ainda casos de recusa de médicos por objeção de consciência, recurso correto garantido por resolução do Conselho Federal de Medicina; outros alegam que não há infraestrutura para a cirurgia.

De fato, a laqueadura —obstrução das tubas uterinas— é irreversível e o índice de arrependimento é maior entre as mais jovens.

Nesse sentido, um aconselhamento médico é necessário, como ocorre nos melhores sistemas de saúde do mundo, como o do Reino Unido —lá, no entanto, não há tanta burocracia e obstáculos.

Mulheres sofrem mais com gargalos, já que são maioria na busca por métodos de esterilização —relatório da ONU de 2020 diz que 219 milhões delas acessaram laqueadura no mundo, ante 17 milhões de homens que fizeram vasectomia.

Filhos impactam mais a vida das mulheres, levando a interrupção da carreira ou menores salários.

O Legislativo avançou na regulação, mas urge que esse incremento seja colocado em prática pelo poder público, facilitando o acesso aos direitos reprodutivos.

A semântica perdulária de Lula

O Estado de S. Paulo

Lula quer gastar à vontade, razão pela qual quer chamar gastos de ‘investimentos’. Mas é justamente com superávit, demonizado pelo petista, que economia cresce e a pobreza diminui

O presidente Lula da Silva acha que os recursos públicos direcionados para áreas como saúde, educação e programas sociais não devem ser tratados como gastos, mas como investimentos. Segundo ele, as reações negativas do mercado financeiro a alguns anúncios do governo, como a revisão das metas fiscais de 2025 e 2026, não o incomodam, pois ele quer “mais bem” ao País do que esses investidores que lucram com os juros elevados.

“O problema é que, aqui no Brasil, tudo é tratado como se fosse gasto. Emprestar dinheiro para pobre é gasto, colocar dinheiro na saúde é gasto, colocar dinheiro na educação é gasto, colocar dinheiro em qualquer coisa é gasto. A única coisa que parece investimento é superávit primário”, reclamou. “Com todo respeito ao mercado, eu gosto mais do Brasil do que o mercado. Eu quero mais bem ao futuro desse país do que o mercado.”

Com esse discurso, Lula da Silva tenta terceirizar responsabilidades, como se o mercado financeiro, ao reagir às suas falas, tentasse boicotar o País e impedir o presidente de fazer mais pelos mais necessitados. Há muitos problemas nessa declaração, mas o maior é que ela é absolutamente contraproducente para os objetivos que Lula diz defender.

Se o País tivesse um superávit primário estrutural, ou seja, um equilíbrio entre receitas e despesas, a taxa básica de juros poderia ser bem menor do que é hoje, e esses mesmos investidores que tanto lucram com a remuneração dos títulos do Tesouro teriam de buscar outros ativos mais arriscados para ganhar mais dinheiro – como investimentos em infraestrutura, por exemplo.

Com mais investimentos, a economia cresceria mais, a arrecadação seria maior e o País teria mais condições para elevar despesas com saúde, educação e programas sociais sem pressionar a inflação e a própria taxa básica de juros.

Lula da Silva prega o oposto, ou seja, a manutenção de déficits primários para garantir os gastos que ele considera necessários. Isso obriga o Banco Central (BC) a elevar a taxa básica de juros a um nível alto o suficiente para investidores aceitarem financiar a dívida pública brasileira.

Como o próprio governo é o maior “cliente” do malvado mercado, ele consome a maior parte do volume de recursos disponíveis e reduz a oferta para financiar investimentos privados, o que encarece o crédito. Afinal, a remuneração garantida pelos títulos do Tesouro se torna um piso mínimo para qualquer outro investimento e drena a competitividade desses ativos.

É por isso que o País tem um nível de investimentos pífio, insuficiente até para manter a infraestrutura atual, cresce menos do que poderia, perde arrecadação e tem menos verba disponível para gastos com saúde, educação e programas sociais. É por isso, também, que faltam recursos para reajustar os salários do funcionalismo público. “Nem sempre é tudo que a pessoa pede. Muitas vezes, é aquilo que a gente pode dar”, disse Lula, no mesmo evento.

As reações do mercado às ações do governo Lula não são vingança nem punição, mas puro pragmatismo. Se o devedor anuncia publicamente que pretende gastar mais, mesmo sem ter dinheiro para isso, o credor simplesmente ajusta suas condições para emprestar mais recursos – ou seja, cobra mais alto para refinanciar sua dívida. É por isso que os juros são elevados, não por insensibilidade do Banco Central ou voracidade do mercado financeiro.

Nada disso é novidade para Lula da Silva. Do contrário, ele não teria mantido superávits fiscais vigorosos durante seus dois primeiros mandatos presidenciais. Foram esses superávits que garantiram a redução estrutural da taxa básica de juros, período ao longo do qual o petista criou o Bolsa Família, o Programa Universidade para Todos (ProUni ) e as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) 24 horas.

Chamar gastos de investimentos não passa de conversa fiada para enganar incautos. Para o mercado, esse debate é inócuo. Não é isso que fará os juros caírem ou o País crescer. Quem mais perde com isso é a população mais vulnerável, que depende de transferências do governo e de inflação sob controle para sobreviver com dignidade.

A ilusão do Bolsa Família

O Estado de S. Paulo

A desigualdade brasileira só não piorou graças ao Bolsa Família, segundo o IBGE, mas é espantoso ainda ver tantos milhões de dependentes do benefício estatal para sobreviver

Alívio e vergonha, acerto e desacerto, gigantismo e vulnerabilidade: se há no Brasil um terreno em que se constatam sentimentos aparentemente contraditórios e desconexos é nos números relacionados à pobreza, à miséria e à desigualdade. O País viu um novo exemplo dessas dualidades vexatórias com a divulgação da pesquisa do IBGE sobre rendimentos, a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua. Dela se constatam boas e péssimas notícias – da demonstração de força do redivivo Bolsa Família à manutenção da desigualdade em níveis absolutamente inaceitáveis. Dada a natureza triunfante do lulopetismo, o maior risco é o governo optar pelo regozijo das boas notícias e ignorar os gigantescos desafios que as más notícias impõem.

A boa notícia é, primeiro, a constatação de que a expansão de programas sociais como o Bolsa Família ajudou a conter a desigualdade no País em 2023. A proporção de domicílios com algum beneficiário do programa atingiu níveis recordes, algo relativamente positivo depois da atabalhoada e eleitoreira criação do Auxílio Brasil pelo governo de Jair Bolsonaro, que não só demoliu as bases do Cadastro Único (CadÚnico) – porta de entrada dos programas sociais –, como eliminou as necessárias contrapartidas que o benefício impunha às famílias, como frequência escolar e cumprimento do calendário de vacinação das crianças. Para completar, a massa de rendimentos da população e o rendimento domiciliar per capita em 2023 foram recordes quando analisada a série histórica.

Mas isso não é tudo. A desigualdade só não piorou devido ao reforço do Bolsa Família e à recuperação do mercado de trabalho. Como o governo de Lula da Silva adicionou benefícios complementares conforme o número e a idade das crianças das famílias, o valor médio do rendimento per capita nos domicílios que recebiam o Bolsa Família em 2023 cresceu 42,4% na comparação com o ano anterior. Sem o Bolsa Família, a desigualdade teria piorado. No mercado de trabalho, mais gente obteve rendimentos, seguindo uma tendência desde 2021, mas a população de renda mais elevada conseguiu melhores salários, ampliando a distância entre ricos e pobres. Apesar de uma suave elevação na renda, trabalhadores menos escolarizados ficaram para trás.

Tais números oferecem uma constatação dupla e igualmente desabonadora: de um lado, a dependência em relação ao Bolsa Família para conter o avanço da desigualdade; de outro, mesmo sendo fundamental para reduzir o número de pessoas na extrema pobreza, o programa se mostra insuficiente para reduzir os níveis de pobreza e de desigualdade.

E nem foi criado para tanto. Apesar da prosápia lulopetista, programas de transferência de renda não produzem desenvolvimento social. Um torneiro mecânico que iniciou sua carreira décadas atrás pode ter subido na escala estatística da renda, mas, sem conquistas educacionais, aumento de produtividade, emprego com maior perspectiva de crescimento e condições melhores de saúde e saneamento, terá continuado no mesmo patamar da estratificação social original. Uma ascensão pela metade, frágil, de curto prazo e sujeita às intempéries e descontinuidades de ocasião. No caso de 2023, por exemplo, os ganhos tanto do Bolsa Família quanto do rendimento do trabalho foram neutralizados pela inflação.

É espantoso ainda haver tantos milhões de dependentes do benefício estatal para sobreviver. Estamos longe de acabar com a miséria e eliminar a desigualdade como um traço distintivo da formação nacional e, por essa razão, não se pode prescindir de um bom programa de transferência de renda. Mas isso continuará a ser insuficiente se não avançarmos nas condicionalidades do programa e, sobretudo, nos caminhos necessários para que eliminemos as vulnerabilidades e incertezas impostas à esmagadora maioria.

Originalmente, os formuladores do Bolsa Família previam que a porta de saída estaria nos filhos dos beneficiários – e ainda assim condicionada a uma soma complexa e contínua de mudanças estruturais. Uma geração depois, a luz no fim do túnel da pobreza é apenas um lusco-fusco.

Emergência permanente

O Estado de S. Paulo

Caso do Perse mostra como é difícil acabar com benefício, mesmo que não se justifique mais

A Câmara aprovou em votação simbólica, no dia 23 passado, o projeto de lei que reformula o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse). Criado em maio de 2021, num momento dramático da pandemia de covid-19, o Perse se prestava originalmente ao socorro financeiro a empresas de alguns dos segmentos econômicos mais afetados pela tragédia sanitária, como os setores de turismo, produção teatral, produção musical, bares e restaurantes, entre outros. Porém, o que fazia sentido há quase três anos, hoje, como é notório, já não tem a menor razão de existir.

O Perse não deveria ter sido reformulado pelos deputados. O programa deveria ter sido extinto – como, aliás, defendeu o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, quando o presidente Lula editou uma medida provisória, em fins de 2023, que, entre outras providências, retomava a cobrança do PIS, Cofins e da CSLL (a partir de 1.º de abril deste ano) e do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (a partir de 2025) para todas as empresas beneficiadas pelo Perse, de acordo com a Classificação Nacional das Atividades Econômicas (Cnae). Mais de 40 Cnaes foram contempladas no programa.

Mas, se reformulação houve, que ao menos tivesse começado pelo nome do programa, até por questão de honestidade com os contribuintes e, não menos importante, respeito à inteligência alheia. Evidentemente, o Perse não é mais “emergencial” porque, ora vejam, a emergência sanitária já passou. Menos ainda o programa se presta à “retomada” do setor de eventos. Como qualquer cidadão pode observar, esse setor está tão ou mais pujante do que nas vésperas da eclosão da pandemia de covid-19. Ingressos para shows, cinema e teatro são vendidos como pão quente. O mesmo vale para os estádios de futebol. Na capital paulista, por exemplo, bares e restaurantes, uma marca da cidade, têm um público que faz da pandemia de covid-19 não mais que uma triste lembrança.

Embora o número de Cnaes beneficiadas pelo Perse tenha caído para 30 nessa reformulação, ante as 44 originais, trata-se de um volume ainda muito alto para um programa de socorro financeiro que – é preciso enfatizar – nem sequer deveria estar vigente. O custo dessa cortesia com chapéu alheio é estimado em R$ 15 bilhões nos próximos três anos.

A permanência desse Perse reformulado é mais um típico caso de auxílio pontual que se perpetua ao longo do tempo como privilégio de difícil desmame (i) por força do lobby dos setores beneficiados no Congresso e (ii) pelo interesse político-eleitoral de seus patronos nas Casas Legislativas. O autor do projeto de lei, deputado Felipe Carreras (PSB-PE), e a relatora da matéria na Câmara, deputada Renata Abreu (Podemos-SP), juram de pés juntos que o Perse segue valendo por si só. Se valeu, não vale mais. O que está em jogo é o interesse eleitoral dos parlamentares, seja o imediato, com vista à eleição deste ano, seja a médio prazo, pensando na eleição geral de 2026.

Para a turma que não abre mão de um naco do Estado, livre mercado é bom só até a página dois.

Milei obtém avanços na economia, sob protestos

Valor Econômico

Inflação pode desabar e PIB voltar a crescer no terceiro trimestre, mas os riscos de tropeços continuam altos

Os últimos dias são emblemáticos sobre os riscos e incertezas que ainda pairam sobre o programa de ajustes do presidente argentino, Javier Milei. Ao mesmo tempo em que indicadores macroeconômicos mostraram resultados melhores do que o esperado, houve um primeiro sinal importante de resistência social à terapia de choque econômico do novo governo.

Milei anunciou na terça-feira um superávit fiscal de 0,2% do PIB no primeiro trimestre deste ano, o primeiro saldo positivo trimestral nas contas públicas argentinas desde 2008. Segundo o economista Carlos Melconian (La Nación, 23/4), um quarto do ajuste fiscal que levou a esse superávit foi conseguido com corte de gastos, especialmente no repasse às províncias e nas obras públicas. Outro quarto veio do não pagamento de dívidas, como as de energia elétrica. E metade se deveu à não correção de gastos, como a dos pagamentos de aposentadoria, cujo valor foi corroído pela inflação.

Além do saldo fiscal, outra boa notícia recente foi a queda da inflação além do esperado. Após ter atingido o pico de 25,5% (dado mensal) em dezembro, o IPC argentino caiu para 20,6% em janeiro, 13,2% em fevereiro e 11% em março, segundo dados oficiais do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) argentino.

Desde dezembro a Argentina vem acumulando superávits comerciais, devido à boa safra agrícola (ao contrário de 2023, quando houve quebra por causa de uma das mais severas secas da história do país) e à queda na demanda interna por causa da recessão. Com isso, o Banco Central argentino está conseguindo recompor as reservas internacionais, que passaram de US$ 16,8 bilhões em novembro (o menor nível em quase 20 anos) para US$ 21,3 bilhões em fevereiro. O saldo positivo das divisas ajuda a manter sob controle o câmbio. O dólar blue (paralelo) está cotado a pouco mais de mil pesos, quase o mesmo valor de começo de outubro, o que acabou com a farra dos turistas brasileiros na Argentina.

Com esses bons resultados do lado financeiro, o risco-país (Embi, do JP Morgan) caiu já 40% desde o começo deste ano, indo a 1.143 pontos nesta semana. Ainda assim, está muito acima dos 205 pontos do Brasil e dos 119 do Chile. Com esse nível de risco, a Argentina continua impossibilitada de buscar financiamento nos mercados internacionais.

Por outro lado, ocorreu na terça-feira a maior manifestação até agora contra a política “motosserra” de corte de gasto público de Milei. Cerca de 430 mil pessoas, segundo estimativa do jornal “La Nación”, protestaram no centro de Buenos Aires contra o corte no financiamento das universidades públicas, por meio da não correção dos valores. O presidente, no seu estilo combativo, chamou o ato de “lágrimas de esquerdistas”. No dia seguinte, porém, o porta-voz presidencial, Manuel Adorni, adotou um tom mais moderado, disse que o governo defende a educação pública, que não pretende fechar universidades e que o tema do orçamento está sendo resolvido.

Apesar dos bons números financeiros, os dados de produção e consumo na Argentina são muito ruins, em linha com expectativa de forte queda do Produto Interno Bruto neste ano (de 2,8%, na projeção do FMI). Setores da indústria vêm registrando queda de produção de dois dígitos neste começo de ano. As vendas no primeiro trimestre também tiveram fortes quedas, como as de 45% em eletrodomésticos e 30% em carros novos. Milei continua mantendo um nível muito alto de aprovação, apesar das medidas impopulares adotadas, como o corte de subsídios a energia, gás e transporte, cujo aumento de tarifas come uma parcela crescente da renda das famílias. Segundo pesquisa do instituto Opina Argentina, divulgada nesta semana (site Infobae, 21/4), 49% dos entrevistados aprovam seu governo, contra 50% que desaprovam.

Os dados estão inalterados, na margem de erro, desde fevereiro. Entre os jovens, o apoio chega a 64%.

Essa resiliência da população argentina diante de um ajuste duríssimo sugere como é forte a rejeição às políticas populistas dos governos kirchneristas anteriores. O economista e ex-ministro Dante Sica destacou a capacidade de Milei de vender esperança ao país, de manter a expectativa de que, desta vez, a Argentina sairá da crise. Ele chamou o momento atual de “recessão com otimismo”.

Mas o protesto desta semana mostra que essa paciência não é ilimitada e que Milei passará a depender mais de resultados daqui para a frente. Numa comparação futebolística, Milei é aquele técnico que assumiu um time grande que vem de várias temporadas ruins. Há uma enorme expectativa, o time parece estar melhorando, a torcida apoia, mas com o passar do tempo ele precisará de vitórias.

Para Sica, a vitória mais importante é manter a inflação na atual trajetória descendente pelo resto do ano, o que gerará confiança na economia e mais previsibilidade nos negócios. Uma projeção interna da equipe econômica (Bloomberg, 24/4) estima inflação mensal abaixo de 4% já em setembro, contra previsão do mercado em torno de 7%. Com isso, o PIB poderá voltar a crescer, talvez já no terceiro trimestre. Até lá, porém, o risco de tropeços seguirá alto.

Senado amplia cotas para o setor público

Correio Braziliense

A nova versão aumenta de 20% para 30% as vagas, que deixam de ser exclusivas para os negros, e passa a contemplar quilombolas e indígenas, assim como ocorre nas instituições de ensino superior

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado aprovou, na manhã de ontem, o Projeto de Lei (PL) nº 1.958/2021, que reserva 30% das vagas dos concursos públicos federais para negros, indígenas e quilombolas. O PL, que seguirá para a Câmara dos Deputados, é uma revisão da Lei nº 12.990/2014 — Lei das Cotas no Serviço Público —, cuja validade terminaria em 9 de junho próximo.

A nova versão aumenta de 20% para 30% as vagas, que deixam de ser exclusivas para os negros, e passa a contemplar quilombolas e indígenas, assim como ocorre nas instituições de ensino superior. Antes, havia a expressão "no mínimo", o que abria caminho para uma oferta de mais vagas para negros, quilombolas e indígenas. A supressão de "no mínimo", invalida a possibilidade de abrir mais espaços por critério étnico-racial. O PL assegura ainda que a mesma regra seja obedecida pelos processos seletivos simplificados, destinados a contratações temporárias.

A validade da norma será de 10 anos, a partir da data de sanção do projeto. A equipe que construiu a nova versão da Lei nº 12.990, formada por técnicos dos ministérios da Igualdade Racial, Povos Indígenas e Gestão e Inovação, tentou ampliar o prazo de revisão para 25 anos. Mas os senadores mantiveram a vigência de uma década.

Embora as mulheres negras sejam maioria da população brasileira, os senadores não aprovaram a subcota de 50% para elas, na esteira das ações afirmativas, como defendido pela equipe que elaborou a revisão da lei. Em contrapartida, os senadores rejeitaram a ideia de transformar a lei, destinada a negros, indígenas e quilombolas, em marco legal para cotas raciais.

Os não negros e não indígenas têm mais chances no mercado de trabalho, tanto no setor privado quanto no público. Na estrutura do governo federal, pretos e pardos somam 35,09%, segundo dados do Sistema Integrado de Administração de Pessoal (Siape/2020). Um percentual pequeno, quando só pretos e pardos somam mais 55% da população brasileira. Os negros, no entanto, são maioria entre os 39,1 milhões — cerca de 24 milhões ou 61,3%. Eles ficam, ainda que não queiram, na informalidade, desprotegidos de todos os benefícios consagrados pela legislação aos trabalhadores.

Estabelecer um regime de cotas para o acesso de mulheres e homens negros, quilombolas e indígenas ao serviço público é mais um modesto gesto de reparação pelas perdas impostas a esses segmentos das sociedade brasileira. Ainda hoje, na segunda década do século 21, uma vasta camada da população comporta-se como vivêssemos no século 16, quando negros e indígenas não eram vistos como seres humanos. Mais uma vez, o bom senso dos senadores prevaleceu, pois não estender a vigência da lei das cotas implicaria prejuízo ao segmento étnico-racial (negros e indígenas), ainda hoje, alvo do racismo, do preconceito e das discriminações por meio das mais diversas formas de violência. 

 

 

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