O Estado de S. Paulo
O avanço de uma estrutura megalômana, com governança baseada em critérios de representação inconstitucionais, custará caro ao País
Enquanto escrevia este artigo, o governo
ensaiava enviar os projetos para regulamentar a Emenda Constitucional (EC) n.º
132, de 2023, a Reforma Tributária do Consumo. Neste artigo, retomo o tema do
Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). O novo tributo
substituirá os atuais ISS, municipal, e ICMS, estadual, para compor a parte
subnacional do novo Imposto sobre Valor Adicionado (IVA). A Federação corre
risco.
O avanço de uma estrutura megalômana, com
governança baseada em critérios de representação inconstitucionais, custará
caro ao País. Serão 54 membros escolhidos pelos Estados e municípios. Os
iluminados vão decidir tudo a respeito do principal tributo do País, o
gigantesco IBS, cuja alíquota ultrapassará 33%, nas minhas estimativas.
Para ter claro, a junção do ISS e do ICMS ocorrerá após uma longa transição, a encerrar-se em dezembro de 2032. Até lá, o sistema tributário conviverá com os antigos e os novos tributos, confluindo para uma complexidade exponencialmente maior em relação ao modelo atual.
Já no começo da transição, até 2028, o IBS
vigorará com alíquota de 0,1%, para testar a capacidade arrecadatória do novo
imposto, de um lado, e angariar recursos a financiar o novo comitê, de outro.
Parece pequena a tal alíquota, mas estamos tratando de pelo menos R$ 1,5 bilhão
ao ano.
O Comitê Gestor vai arrecadar, partilhar com
os entes os recursos recolhidos, dirimir conflitos entre o Fisco e os
contribuintes, devolver créditos tributários e normatizar o IBS. Só isso. Mas,
diziam seus idealizadores, quando a estrutura ainda era mais fidedignamente
chamada de Agência Centralizadora: “É um mero algoritmo”. Algoritmo, aliás, que
não se conhece até hoje!
É uma questão de fé.
Diz o artigo 156-B da EC n.º 132/2023, no seu
parágrafo 1.º: “O Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços, entidade
pública sob regime especial, terá independência técnica, administrativa,
orçamentária e financeira”.
Vamo-nos entender. Essa alegada autonomia
significa que um órgão representará os governos subnacionais e exercerá suas
funções precípuas em substituição aos próprios governadores e governadoras.
Ora, do que se trata? Da implosão da Federação como a conhecemos e como fora
concebida pela Assembleia Nacional Constituinte. E havia alternativas:
simplificar o ICMS, passá-lo ao destino das operações e mudar o critério de
apropriação e apuração de créditos tributários.
O comitê comandará diligências de auditores
fiscais, procuradores e servidores públicos de que precisar para exercer suas
atividades. A Constituição foi modificada pela EC 132 para afirmar que essa
nova entidade vai “coordenar” as Administrações Tributárias hoje existentes.
Não há a menor hipótese de isso funcionar a contento. Não somos (ainda) um país
unitário. Cada Estado tem seus interesses, sua estratégia. Uma comissão vai
substituir quem teve voto?
Imaginem a confusão na fiscalização e no
contencioso tributário. E se a prática de autuação não estiver condizente com a
observada no bojo da CBS, a contribuição criada no âmbito da União, com mesma
base, aliás? Quem vai homogeneizar as normas e a jurisprudência? A quem o
contribuinte recorrerá e que tribunais ou órgãos de contencioso tributário
cuidarão de um determinado auto de infração eventualmente questionado? Órgãos
ou diligências formados por servidores de Estados e municípios com interesses
diferentes vão se entender? Só com muito poder para este comitê, que a todos e
a tudo precisará governar. Vejam a gravidade dessa aventura.
A imprensa noticiou, ontem, que toda a
produção de projetos de lei da Secretaria Especial da Reforma Tributária (Sert)
do Ministério da Fazenda fora encaminhada ao escrutínio da Casa Civil. A
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) tem muitos dos melhores
profissionais do serviço público brasileiro, gabaritados e experientes, a quem
homenageio por meio da procuradora-geral, doutora Anelize Lenzi Ruas de
Almeida. Convivemos quando fui secretário da Fazenda e Planejamento do Estado
de São Paulo.
Conhecendo a capacidade técnica desses
servidores e o seu cuidado com a consistência das normas propostas, suspeito
que será preciso muito tempo para corrigir os textos escritos por quem nunca se
sentou numa cadeira de Fazenda estadual ou municipal, sobretudo se for para
incorporar, de fato, a visão dos Estados e os aspectos federativos deixados de
lado.
O Congresso só vai entrar no processo a
partir de agora. Isso representará mais um obstáculo à tramitação dos projetos
de lei. Não é razoável supor que algo imposto por uma única Secretaria do
Ministério da Fazenda esteja à altura dos desafios federativos.
A criação do Comitê Gestor será a pá de cal
sobre a combalida Federação. Em meio à renegociação de dívidas com a União, às
dificuldades para formar servidores e aprimorar políticas públicas em âmbito
local e ao quadro de exacerbação da guerra fiscal, desmantelase o pacto
federativo. Os fundos criados pela emenda só repetirão as antigas fórmulas de
dilapidação do erário para partilhar mais dinheiro.
Espero que os governadores entrem no STF
contra essa barbárie. O Comitê Gestor é só a parte mais evidente do caos que
estamos prestes a vivenciar. Podem me cobrar.
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