segunda-feira, 3 de junho de 2024

Deborah Bizarria - Câmeras corporais desligadas

Folha de S. Paulo

Tarcísio desfaz avanços na segurança pública e subverte o que se mostrou efetivo

As câmeras corporais na Polícia Militar de São Paulo foram introduzidas com um objetivo claro: aumentar a transparência e conformidade no trabalho policial, reduzindo a letalidade e os abusos de poder.

No entanto, as recentes alterações propostas pela gestão de Tarcísio de Freitas representam uma mudança de foco que compromete os avanços alcançados até agora.

O programa anterior integrava-se a iniciativas mais amplas da própria PM que visavam aprimorar o treinamento —as imagens eram utilizadas para reforçar os procedimentos nas sessões.

Além disso, diversos estudos, como o de Tricia Bent-Goodley, apontam uma forte relação entre a redução da letalidade policial e o aumento da confiança da população nas forças de segurança, fundamental para o combate ao crime.

A letalidade policial não é uma questão trivial no país. Com 6.357 mortes por intervenção policial em 2023, taxa de 3 mortes por 100 mil habitantes, o Brasil supera países como México, Argentina, Chile e Colômbia, onde as taxas são bem inferiores a 1.

Nesse sentido, um estudo da FGV para o caso de São Paulo reforça a necessidade de continuação da política de câmeras corporais. Os resultados mostram que o uso contínuo da tecnologia foi crucial na redução do uso excessivo da força ao incentivar práticas de conformidade: áreas que adotaram as câmeras tiveram 57% menos mortes por intervenção policial.

Houve também um aumento nos registros de porte de drogas e armas e nos registros de casos de violência doméstica no sistema da Polícia Militar.

Já a nova proposta do governador altera radicalmente o uso das câmeras corporais, agora focando na detecção de criminosos para supostamente aumentar a eficiência no controle do crime. Embora importantes, não há garantia que a estratégia será eficaz para atender esses objetivos.

O edital exige que o policial ative a câmera, e uma central pode fazê-lo remotamente se necessário. Então, as câmeras seriam usadas para identificar suspeitos e melhorar a qualidade das provas.

Essa mudança, contudo, ignora aspectos cruciais para a boa gestão da PM e a conformidade às normas operacionais. Ao deixar a responsabilidade de ligar o equipamento aos agentes, compromete-se a adesão a protocolos e aumenta-se o risco de abusos não registrados, assim como a vista grossa para casos em que a ação policial não poderia ser dispensada.

Enfraqueceria, portanto, o êxito e responsabilidade das ações policiais, resultando em um controle menos rigoroso dos protocolos, da letalidade, do abuso de poder e da ineficiência.

A Secretaria da Segurança Pública justifica a medida com problemas de bateria e altos custos de armazenamento no modelo anterior. Assim, o novo edital reduz o tempo de armazenamento dos vídeos intencionais de 365 para 30 dias, comprometendo o uso das imagens como provas em investigações e processos judiciais.

Será que São Paulo não poderia eliminar outras ineficiências para abrir espaço no orçamento para segurança pública?

Outro argumento utilizado pela gestão é de que a proposta segue as diretrizes nacionais para o uso deste tipo de equipamento. Segundo o governador, o Ministério da Justiça permitiria a cada estado definir seu funcionamento.

Ora, uma vez que o estado de São Paulo tinha uma política pública bem desenhada e comprovadamente eficaz, Tarcísio não deveria estar se escondendo atrás das regras federais. Ao contrário, deveria cobrar ao governo Lula a promoção do uso de câmeras nos moldes que sabemos funcionar.

Logo, a mudança no uso de câmeras corporais subverte o que se mostrou efetivo na promoção da transparência policial e na redução da letalidade. A nova diretriz joga contra a confiança da população nos agentes públicos e compromete a percepção de integridade das investigações.

Um governo preocupado com segurança deveria promover e ampliar estratégias baseadas em evidências, não transferir responsabilidades ao retroceder políticas bem-sucedidas.

 

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