Revista Será? Edição de 24/05/2024
As condições atuais são tão desfavoráveis aos humanos que a simples postura em defesa da sustentabilidade não tem mais o efeito que se imaginava há 30 ou 40 anos atrás. Não é mais suficiente. Por isso, Francisco Nilson Moreira está coberto de razão quando diz em seu Ted X ESMPU: “A sustentabilidade já era. Hoje temos que ser regenerativos”.1 E o Rio Grande do Sul está aí para provar.
Por milênios, os homo sapiens têm habitado a terra destruindo-a. Alguns, os menos informados, imaginam que tudo começou com a revolução industrial nas dobras dos séculos XVIII/XIX, como também imaginam que o movimento ambientalista começou com a Conferência de 1972 em Estocolmo (Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano). Antes desta conferência, Rachel Carson2 já havia publicado Primavera Silenciosa, com enorme impacto sobre o nascente movimento ambientalista, e o mundo já conhecia a criação de áreas protegidas, o Brasil inclusive3. Antes da revolução industrial, os Sapiens já haviam dizimado os Neandertais, enfraquecidos pelos fortes efeitos da era glacial na Eurásia, como também os megamamíferos, os mamutes, entre 50 e 10 mil anos atrás. Incluindo o Brasil, onde foram extintos os tigres dentes de sabre, as preguiças gigantes e os toxodontes, entre outros.
A revolução industrial com a adoção do
modelo econômico baseado na reprodução ampliada e nos combustíveis fósseis
acelerou exponencialmente o processo já existente, a destruição da fauna
selvagem. E a expandiu à biodiversidade. Segundo David Attenborough, mais da
metade do número de indivíduos dos vertebrados, sobretudo mamíferos, já foi
extinta. E a outra o será em breve. A sociedade humana destruiu também a maior
parte das florestas, incluindo, mais recentemente, as tropicais. Inspirada na
grande ideologia do crescimento, aquela que perpassa regimes capitalistas e
socialistas, a sociedade humana consome cada vez mais recursos naturais e emite
gases de efeito estufa (GEE) para a atmosfera.
A invenção do desenvolvimento sustentável,
nos anos 1980/1990, implicou múltiplos esforços de mudança, mas, por enquanto,
inócuos. Os GEEs continuam a se acumular provocando o aquecimento global, e com
ele, os seus efeitos nocivos largamente conhecidos.
Já estamos adentrando a meta da COP de 2015, em Paris: 1,5º C acima da temperatura média global de antes da revolução industrial. Se o mundo alcançar 3oC ingressaremos em um patamar catastrófico. E se formos a 5oC será um patamar desconhecido, ou seja, que não sabemos o que ocorrerá com o clima e seus eventos críticos, incluindo neste caso ameaças existenciais à humanidade.4
As concentrações desses gases na atmosfera
são frequentemente medidas em partes por milhão (ppm) ou partes por bilhão
(ppb). Segundo os relatórios do IPCC, em 1990, a atmosfera continha cerca de
354 ppm de CO2; em 2000, cerca de 369 ppm; em 2010 - 389 ppm. Em 2024, cerca de
415 ppm. No caso do metano, a variação foi de 1.700 partes por bilhão (ppb), em
1990, para cerca de 1.870, atualmente. E, no caso do óxido nitroso (N2O),
variou de cerca de 310 ppb para cerca de 333, em 2024. Ou seja, todas as medidas
tomadas no mundo, sob o signo de criar um desenvolvimento sustentável, não
diminuíram os gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera. Eles continuam aumentando,
os eventos críticos climáticos tornam-se mais frequentes e intensos.
É de conhecimento público, com exceção dos
negacionistas, que são as atividades humanas que produzem poluição, destroem a
biodiversidade e provocam as mudanças climáticas (sugiro esgotamento de
recursos não-renováveis). No entanto, estamos adentrando um período em que este
fenômeno será superado: crescimento constante de eventos críticos climáticos, mais
frequentes e mais intensos, que se farão independentemente das atividades
econômicas dos humanos.
Como as mudanças climáticas tendem a ganhar
vida própria, ou seja, independente das atividades humanas? Basicamente pelo
círculo vicioso que está se formando entre o degelo dos Polos, que reduz o chamado
efeito albedo (medida da proporção da radiação solar que é refletida de volta à
atmosfera e ao espaço), a exposição do permafrost, que emite GEEs e o aumento
da temperatura dos oceanos, somado à perda da vegetação e da biodiversidade.
As geleiras do mundo inteiro,
particularmente dos polos, possuem a capacidade de refletir a radiação solar,
evitando que a terra absorva o seu calor (efeito albedo). Na medida em que a
terra se aquece, e ela tem se aquecido desde o século XIX com a
industrialização, porém mais acentuadamente nas últimas três décadas, a terra
perde superfície de gelo e, assim, reduz o efeito albedo. Com isso, o planeta tem
que absorver uma maior quantidade de calor. A consequência da perda de
superfície de gelo reflete-se, também, em outro aspecto: o ressurgimento do
permafrost à luz do sol. Esta é a terra que está sob as geleiras, às vezes há
milhões de anos, repleta de micróbios e germes ancestrais, mas sobretudo de CO2
e metano, dois dos mais poderosos gases de efeito estufa. Com isso, aumenta o
acúmulo de GEE na atmosfera e a terra se aquece ainda mais. O que produz, por sua
vez, mais degelo. Ao que se deveria acrescentar a redução da capacidade dos
principais sumidouros de CO2: oceanos e cobertura vegetal. Os oceanos porque,
com o aquecimento, perdem vida, sobretudo algas, e absorvem menos CO2. A
cobertura vegetal, como no caso das florestas já foram em grande parte
destruídas, e continuam a sê-las.
Em resumo: mesmo que os humanos cessassem hoje de emitir gases de efeito estufa, as mudanças climáticas, com seus eventos críticos continuariam, e de forma mais frequente e intensa. O aquecimento continuaria a se elevar, e não apenas, como diz Tomas Tarquínio, em belíssimo artigo aqui publicado5, resultado dos gases já emitidos nas últimas décadas.
Neste sentido, Richards, Lupton e Allwood em artigo publicado na revista Climatic Change (2021), chamam a atenção, para o fato de que hoje “Há uma preocupação crescente de que as alterações climáticas representem um risco existencial para a humanidade”.6 Previsões similares, e mesmo mais graves, têm sido feitas constantemente por outros estudiosos das mudanças climáticas.7 O risco existencial se faz também presente junto a animais não-humanos.
Muitos cientistas evitam falar em desastre
ou colapso. Em parte, pelas idiossincrasias próprias da cultura científica,
sempre atrelada aos cuidados de objetividade, verificação e adequação à
empiria, ou seja, aos fatos e experimentos. Um dos intelectuais mais brilhantes
neste campo foi sem dúvida Jared Diamond, com seu famoso, e muito debatido
internacionalmente, livro – Colapso. Como as sociedades escolhem o fracasso ou
sucesso. Livro cujas partes mais interessantes rezam sobre as sociedades
antigas: os Maias da América Central, os Rapa Nui da ilha de Pascoa, os Polinésios
das Ilhas de Pitcairn e d’Henderson, os Anasazis do Novo México no sudoeste dos
Estados Unidos e os Vikings da Groelândia.
Para Diamond, cinco são os fatores centrais
na destruição dessas civilizações pretéritas: (i) destruição dos recursos naturais,
(ii) mudanças climáticas, (iii) conflitos internos e externos, (iv) dependência
de parceiros comerciais e (v) respostas inadequadas aos problemas ambientais.
Fatores que em geral se retroalimentam.
Os cinco fatores causais do colapso, citados por Diamond, estão presentes de forma relevante em todos os casos, e igualmente presentes hoje, no mundo: (i) mais da metade da vegetação de florestas tropicais já foram destruídas e mais de 60% dos indivíduos da fauna selvagem, particularmente mamíferos; (ii) o aquecimento é um fato inconteste assim como o aumento da frequência e da intensidade dos eventos críticos; (iii) a polarização e, sobretudo, o negacionismo são os exemplos mais visíveis dos conflitos de risco; (iv) o mundo hoje é economicamente globalizado, e o que ocorre em um determinado país pode desorganizar cadeias produtivas globais como ocorreu com a invasão da Rússia na Ucrânia, e, finalmente, (v) as respostas mais evidentes para vencer o risco climático são largamente insuficientes. Os GEE se acumulam na atmosfera. A cada ano o mundo bate recorde de aquecimento. Tudo se conjuga para provocar a sexta extinção da vida no planeta, e com ela, os sapiens correm o risco de irem juntos8.
Ora, no caminhar atual da carruagem, ou
seja, se não forem tomadas medidas drásticas de mudanças nos defrontaremos,
antes de 2050, com perda de vidas humanas aos milhões, senão bilhões. Enquanto
isso, muitos políticos, governos e empresas tendem a escamotear o problema ou
simplesmente negá-lo. Em plena tragédia climática do Rio Grande do Sul, o
Congresso Nacional continua a aprovar medidas para reduzir as restrições à
destruição da natureza no Brasil.
E a sociedade, como um todo, resiste à adoção de medidas radicais que, no entanto, com o aumento da frequência dos eventos críticos terão de ser tomadas, para não tornar a terra um lugar inabitável aos humanos. Se não tomarmos medidas radicais de mudança de rumo, como propugna Edgar Morin9, o Rio Grande do Sul será o Brasil de amanhã. E como diz Przeworski, “nossos filhos e netos morrerão ou queimados ou afogados”.10
Sem medidas radicais de mudança, o ser
matricida, que somos nós, será expulso da vida. Para regozijo de todos os seres
vivos da terra. Por isso, sustentabilidade já era. Adentramos a fase de atividades
regenerativas a começar da própria agricultura: é preciso reduzir a monocultura
e o uso excessivo e mortal de pesticidas, estimular a agricultura orgânica e a
agroecologia. É preciso recuperar a biodiversidade, ampliando áreas protegidas;
parar de emitir gases de efeito estufa, com novas tecnologias e estímulo à economia
de proximidade e à economia circular; reduzir o consumo dos ricos; findar com a
obsolescência programada; reduzir as embalagens e adotar material reciclável;
acelerar a transição energética, adotar um novo e radical sistema tributário, e
mudar nossos hábitos e valores.
Não temos que pensar que “não tem mais
jeito”, nem julgar que medidas paliativas resolverão o problema. Ainda temos
tempo.
Porém para sobreviver, os humanos devem
produzir uma metamorfose, como dizem Ulrich Becker e Edgar Morin, uma revolução
não basta.
*Sociólogo político e socioambiental. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília e do Programa de Pós-Graduação Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas
Notas
1 Francisco Nilson Moreira. Negócios contra
o status quo. TED X ESMPU In https://www.google.com/search?client=safari&rls=en&q=Francisco+Nlson+Mofreira+Ted+Takl&ie=UTF-8&oe=UTF-
8#fpstate=ive&vld=cid:2baf3ce7,vid:c618N5WLtyc,st:0
2 Bióloga marinha e escritora
norte-americana, autora de diversos bestsellers além de Silente Sprint (1962),
tendo recebido o prêmio National Book Award.
3 José Luiz de Andrade Franco e José
Augusto Drummond. Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos 1920-1940.
Editora Fio Cruz, 2009
4 Well Below 2oC: Mitigation Strategies for
Avoiding Dangerous to Catastrophic Climate Changes. PNAS, 14, set. 2017
5 Tomas Togni Tarquínio. Revista Será?
Penso Logo duvido, 17 de maio de 2024 In https://revistasera.info/2024/05/os-eventos-extremos-chegaram-para-ficar-nao-apenas-no-rio-grande-do-sul/
6 Catherine E. Richards, Richard C. Lupton
e Julian M. Allwood “Re-Framing the Threat of Global Warning: Na Empirical
Causal Loop Diagram of Climate Change, Food Insecurity and Societal Collapse.
Climatic Change”, v.164, no 3-4, 19 fev. 2021. Disponível em
https://link.springer.com/article/10.1007/s10584-021-02957-w acessado em
30/04/2024
7 Timothy Lenton et al. Climate Tipping
Points: Too risk to bet Against, Nature, V. 575, p. 592-5, 28 nov. 2019; David
I. Armstrong McKay et al. Exceeding 1.5 o C Global Warming Could Trigger
Multiple Climate Tipping Points. Science, V. 377, n. 6.611, 9 set. 2022
8 Elizabeth Colbert. A sexta extinção: uma
história não natural. Editora Intrínseca, 2015.
9 Edgar Morin. A via para o futuro da
Humanidade. Bertrand Brasil, 2013.
10 Adam Przeworski. Crises da democracia. Zahar, 2020.
Um comentário:
Excepcional! Texto magnífico, muito bem pensado e embasado! Parabéns ao autor, e ao blog por divulgar seu trabalho!
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