Valor Econômico
O setor financeiro poderia ser um importante
propulsor do bem-estar do país, mas por uma concepção equivocada de seu papel,
pratica a autofagia
O spread bancário, ou simplesmente spread, é
a diferença entre a taxa de captação e a taxa de juros do tomador final de
crédito. Um spread baixo reflete a capacidade dos bancos de intermediar
recursos a um custo baixo para a sociedade, de forma a remunerar bem poupadores
e oferecer crédito a taxas razoáveis para tomadores. É viável apenas com
condições legais, institucionais, macroeconômicas, bancárias e tributárias
adequadas.
A evidência empírica mostra que, quanto
menores os spreads, maior será a relação crédito/PIB do país, maior sua renda
per capita e mais acelerado será seu crescimento. As nações mais ricas têm
spreads menores, mais crédito e crescem mais rapidamente. A eficiência bancária
é uma condição sem a qual não se pode crescer. Não há sequer um contraexemplo
de algum país de renda alta que não tenha spreads baixos.
No Brasil, interessa aos bancos exercer sua vocação e financiar um novo ciclo de crescimento, ao invés de administrar crises. Objetivam um sistema bancário com volume maior de operações e menos inadimplência, operando em prazos mais longos e com menos volatilidade. O Banco Central também tem trabalhado nessa direção, pois baixar spreads interessa aos bancos e à nação.
O título e os três primeiros parágrafos deste
artigo foram publicados sem mudar uma letra, neste jornal, o Valor, em 5 de setembro de
2002, há 22 anos. Na época, em plena campanha presidencial, se debatiam
propostas de metas de desemprego, de superávit fiscal e outras, para ter um
papel semelhante às metas de inflação, adotadas três anos antes. Meu objetivo
foi propor mudanças para aumentar a contribuição do crédito ao desenvolvimento
do Brasil.
O resto do artigo afirma que a evolução é
resultado de melhorias em aspectos legais, na estabilização macroeconômica, em
aperfeiçoamento de instrumentos bancários e em ganhos de eficiência em razão de
investimentos em capital humano e em tecnologia. Poder-se-ia conseguir uma
redução maior trabalhando nas pré-condições em quatro frentes: a) a
legal-institucional; b) a macroeconômica; c) a da política bancária; e d) a
tributária.
É triste notar que as recomendações ainda
valem. Mais ainda, houve alguns retrocessos. O IOF aumentou, o que aumentou o
custo do crédito, os depósitos compulsórios aumentaram, o que também aumenta o
custo do crédito. De lá para cá, o quadro do crédito piorou.
Atualmente, há 6,9 milhões de empresas e 72,5
milhões de cidadãos negativados no Serasa. São recordes históricos no primeiro
semestre. Como nem todo inadimplente está negativado, o problema é maior. As
recuperações judiciais também bateram recordes históricos.
É uma dinâmica insustentável. No primeiro
semestre deste ano, foram pagos R$ 532 bilhões em juros de operações de crédito
a instituições do Sistema Financeiro Nacional. Como o PIB do primeiro semestre
foi de R$ 5,6016 trilhões, os juros pagos correspondem a 9,5% do PIB.
É uma intermediação que também prejudica o
sistema bancário. No primeiro semestre as provisões para créditos de difícil
recuperação foram de R$ 116,7 bilhões, que correspondem a 21,9% das receitas de
crédito e superior ao lucro líquido do sistema, que no mesmo período foi de R$
113,9 bilhões. Emprestariam mais e lucrariam mais se emprestassem melhor.
A oferta de crédito no Brasil é disfuncional.
Ilustrando, este ano, o saldo de crédito de capital de giro cresceu 1,8% e o do
cheque especial para pessoa jurídica, que custa 16 vezes mais que o capital de
giro, aumentou 8,8%. A taxa salta de 21,6% para 346,1%. Tem mais. No primeiro
dia de atraso é cobrado um IOF de 0,3282%, um valor que anualizado corresponde
a 225,3%. Portanto o custo de um dia de atraso é 571,4% ao ano. Problemas
temporários de caixa viram problemas permanentes de solvência.
Esses números mostram que é um milagre que o
Brasil consiga crescer com essa intermediação. É uma autofagia financeira.
Literalmente, significa “comer a si mesmo”. O setor financeiro poderia ser um
importante propulsor do bem-estar do país, mas por uma concepção equivocada de
seu papel, pratica a autofagia. Destrói parte da base que lhe dá sustentação.
Insiste-se num paradigma obsoleto:
compulsórios draconianos, tributação do crédito, a não regulação adequada da
lei 14.131, moeda remunerada, indexação generalizada, ausência de regras de
precificação, papel dos birôs de crédito distorcido e opacidade na comunicação,
para citar alguns.
Considerando que na última reunião do Comitê
de Política Monetária a taxa básica foi aumentada, é razoável antecipar que o
quadro se agravará nos próximos meses. Leia-se menos investimentos, menos
empregos e menos crescimento. O efeito de uma alta na taxa básica é justamente
frear a atividade econômica.
Há grupos de trabalho debatendo o tema do
custo do crédito. A solução é complexa, mas tenho uma proposta que pode fazer
muita diferença: mais transparência. Informações fidedignas são importantes
para qualquer diagnóstico e para boas decisões de crédito. E as informações
sobre o crédito no Brasil são confusas.
Usa-se taxa mês e taxa ano, dias corridos e
dias úteis, incluindo impostos e não, taxa efetiva e custo total. Tornam
desnecessariamente complexo algo que poderia ser resolvido usando uma só medida
para o custo do crédito. Só depende de um normativo.
A nota à imprensa do Banco Central também é
falha em transparência, usa critérios que distorcem a realidade do crédito. No
cálculo, não incluem o IOF, que é um custo a mais para o tomador, e incluem os
pagamentos à vista no cartão de crédito como uma operação de crédito, que
diminuem as médias das taxas, do spread e da inadimplência informadas na nota.
Outra distorção é que calculam o spread usando o estoque de crédito em vez de
usar o fluxo.
Urge mudar. O problema não é falta de
recursos para emprestar dos bancos privados, é a ausência de uma política de
crédito adequada. Sugiro começar com mais transparência. Ganhariam os cidadãos,
as empresas, os bancos, o governo e o Brasil. Por que não tentar?
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