domingo, 23 de fevereiro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Seria um desatino ressuscitar ‘jabutis’ em PL das eólicas

O Globo

Derrubar vetos de Lula equivaleria a aumentar conta de luz 9% por 25 anos. Congresso não pode cometer tal absurdo

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou em janeiro, com vetos, a lei que regula a instalação de usinas eólicas em alto-mar. Da forma como fora aprovado no Congresso, o projeto continha uma profusão de artigos alheios à proposta original, popularmente conhecidos como “jabutis”. Lula fez bem em vetá-los. Os “jabutis” contribuiriam para tornar a conta de luz bem mais cara ao longo das próximas décadas. Aparentemente, o problema estava resolvido. Mas os vetos ainda correm o risco de ser derrubados no Legislativo. Seria uma afronta aos brasileiros se, já sufocados com a alta de preços, ainda tivessem de pagar energia mais cara para satisfazer a interesses particulares.

É preciso deixar claro o tamanho da insensatez. Pelas contas do setor, os “jabutis” criariam um custo adicional de R$ 545 bilhões nas contas de luz até 2050. Na prática, isso equivale a um aumento de 9% nas tarifas. Como mostra um estudo da Frente Nacional de Consumidores de Energia, seria como pagar, por 25 anos, um adicional equivalente à bandeira vermelha patamar 2, a mais alta, cobrada em tempos de escassez hídrica (R$ 7,87 a mais para cada 100 kWh consumidos). Os parlamentares demonstrariam enorme insensibilidade se não levassem em conta o peso da conta de luz no orçamento familiar, crescente em razão da necessidade maior de refrigeração imposta pelas mudanças climáticas.

Sob o selo enganoso de “iniciativa verde”, o projeto aprovado no Congresso era um compêndio de absurdos. Não apenas prorrogava a geração de energia a carvão — a pior emissora de gases de efeito estufa —, mas também autorizava a contratação de novas usinas do tipo. Previa contratação compulsória de térmicas a gás — outra grande emissora de gases — e de Pequenas Centrais Hidrelétricas, hoje condicionadas ao crescimento da demanda (contratos obrigatórios encarecem a energia, pois enfraquecem a competitividade dos leilões). Promovia extensão de subsídios do Programa de Incentivos às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) a usinas hoje já capazes de se sustentar, tamanho o ganho de eficiência na geração solar e eólica. O texto aprovado distribuiu agrados a todos os grupos de pressão do setor, menos ao consumidor. Por isso foram oportunos os vetos de Lula.

Não bastasse a aberração de enxertar, num projeto que trata de energia limpa, o descabido incentivo a combustíveis fósseis — estima-se que as medidas poderiam elevar em 25% as emissões de gases de efeito estufa do setor elétrico —, a proposta ainda pecava pelo inexorável aumento nas contas de luz, impondo perdas a milhões de brasileiros.

O senador Weverton Rocha (PDT-MA), relator do projeto no Senado, tem dito que ainda não há previsão para que o Congresso analise os vetos. Mas existe o risco de que sejam derrubados. Não se pode esquecer que, a despeito dos alertas, o texto repleto de “jabutis” não encontrou resistências significativas para avançar na Câmara e no Senado, tendo recebido apoio até da base governista. Com dificuldades de articulação no Congresso e enfrentando queda de popularidade, o governo precisará se empenhar para convencer deputados e senadores.

Os parlamentares deveriam se dedicar às agendas prioritárias do país, como pautas econômicas ou de segurança. Ressuscitar os “jabutis” nocivos ao meio ambiente e ao bolso dos brasileiros seria um enorme desatino.

Hamas transforma entrega de cadáveres em propaganda macabra

O Globo

Devolução dos corpos de crianças e idoso israelenses expõe crueldade e desumanidade do grupo terrorista

No fatídico 7 de outubro de 2023, correram o mundo imagens de uma mãe israelense tentando proteger os filhos, um bebê de 9 meses e o irmão de 4 anos, no momento em que eram sequestrados por terroristas palestinos no kibbutz Nir Oz, na fronteira de Israel com Gaza. O olhar daquela mãe se tornou símbolo do desespero da sociedade israelense diante da crueldade do grupo terrorista Hamas. Mais de 500 dias depois, o mundo obteve mais uma prova do ponto a que pode chegar tal crueldade.

Como parte do acordo de cessar-fogo que envolve a libertação de reféns ainda vivos e a entrega do cadáver de mortos, o Hamas encenou na quinta-feira passada outra pantomima em que tenta cantar vitória sobre as ruínas de uma Gaza devastada pela reação israelense a seus ataques. Homens armados, uniformes escuros, a cabeça coberta por balaclavas e adornada por faixas, dispuseram quatro caixões sobre um palco coberto de pôsteres e propaganda. Antes de entregá-los à Cruz Vermelha, fizeram uma exibição de armas diante de uma multidão de palestinos, com crianças aplaudindo e entoando gritos de guerra. “A parada de cadáveres como vista é cruel, horrenda e se choca frontalmente com a lei internacional”, afirmou o Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU. São proibidos, disse, “tratamento cruel, desumano ou degradante, garantindo respeito à dignidade de mortos e famílias”.

Em dois dos caixões, estavam os corpos de Kfir e Ariel Bibas, os irmãos que aparecem nas imagens do 7 de Outubro. O Hamas informou que um terceiro caixão continha o cadáver da mãe deles, Shiri, mas testes genéticos revelaram que era mentira. O próprio Hamas reconheceu e devolveu o cadáver dela no dia seguinte. Os terroristas atribuíram a bombardeios israelenses a morte dos três. Legistas israelenses constataram que Kfir e Ariel foram mortos selvagemente pelos terroristas com as próprias mãos, aos 10 meses e 4 anos de idade respectivamente (Israel informou que fornecerá a perícia para verificação). O pai, Yarden, sequestrado e libertado numa rodada anterior, se recusava a acreditar que os dois filhos e a mulher estivessem mesmo mortos.

Ontem o Hamas libertou os últimos seis reféns vivos que constam da atual fase do acordo de cessar-fogo. Faltam ainda quatro mortos. O Hamas ainda mantém, pelas informações disponíveis, dezenas de cadáveres e pelo menos 24 outros reféns vivos, cuja libertação é esperada para a próxima fase, em troca do fim dos ataques israelenses e de planos para a reconstrução de Gaza.

O quarto caixão devolvido pelo Hamas na quinta-feira continha os restos mortais de um dos fundadores de Nir Oz, o ex-jornalista Oded Lifshitz, morto aos 83 anos depois de sequestrado no 7 de Outubro. Ativista de direitos humanos, sionista, Lifshitz era conhecido pela militância em favor de um Estado palestino e por levar palestinos de Gaza para receber tratamento médico em Israel. É gente como ele e como a família Bibas que o Hamas quer destruir. Enquanto o grupo terrorista mantiver controle sobre Gaza, qualquer paz continuará um sonho distante.

Restringir a livre expressão não favorece a democracia

Folha de S. Paulo

Esquerda, que defendia liberdade de opinião, hoje, onde alcançou poder, apoia medidas que blindam governo de críticas

A sabedoria prática em que se assenta a tradição democrática ocidental desde cedo detectou nos governantes a grande ameaça ao regime das liberdades civis. A primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, marco desse processo, dirige-se a quem detém poder.

O comando proíbe o Congresso de aprovar leis que, entre outros temas, restrinjam a liberdade de expressão e de imprensa. Os fundadores da república norte-americana estavam cientes da tentação censória sobre todos os que exercem a função de Estado, mesmo os eleitos pela população.

Essa lição tem sido menosprezada em boa parte das nações alicerçadas sobre essa herança. A pretexto de proteger a democracia, avançam regulamentações e precedentes jurídicos concedendo a autoridades o poder de reprimir a expressão dos cidadãos.

O Brasil embarcou na maré regressista. As cúpulas de Executivo e Judiciário, compostas ou nomeadas sobretudo pelo maior partido de esquerda, se irmanam no propósito de aumentar as restrições ao que se publica nos meios de comunicação, em especial nas redes sociais. Uma parcela influente do assim chamado progressismo apoia a investida.

Em boa hora um intelectual do mesmo campo vem lembrar os seus companheiros do equívoco de endossar movimentos censores. Impor limites ao discurso é atitude típica de quem se encastelou no poder, e o fato de a esquerda abraçar essa iniciativa demonstra que ela faz parte do establishment, afirmou à Folha o cientista político Yascha Mounk.

PT, de volta ao Planalto em 2023, governou o Brasil em 15 dos 35 anos de retomada do sistema de eleições diretas para presidente. Em outras passagens, acalentou o projeto de controlar os veículos de imprensa, o que só não foi à frente pela forte resistência da sociedade e do Congresso.

Em seu terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tornou-se um pregador do controle das redes sociais. Faz pressão sobre o Congresso para que aperte o cerco sobre as plataformas e deixa no ar a ameaça de que o Supremo Tribunal Federal (STF) agirá se o Legislativo não o fizer.

A artimanha não deveria enganar ninguém. Quem governa não tem isenção para invocar poderes de decidir o que será publicado. O seu interesse é mandar sem ser questionado e evitar que concorrentes lhe arrebatem a cadeira.

O fato, que deveria dissuadir inclusive os bem intencionados que defendem reprimir a livre expressão a título de combater os extremismos, é que essa estratégia não funciona. As ideias, as mentiras e as visões viesadas não deixam de circular porque autoridades montaram aparatos de censura.

A vitória de Donald Trump, que foi amplamente silenciado nas grandes plataformas, é apenas a evidência mais recente disso. O que se perde com a atitude repressora da opinião são oportunidades de criticar à luz do dia as manifestações erradas, distorcidas ou odiosas que abundam, quer gostemos disso ou não.

Estratégia de Trump com tarifas ainda não está clara

Folha de S. Paulo

Déficit comercial dos EUA não é novidade; importar inflação elevando preços de matérias primas e produtos é insensato

Ainda não estão claras as reais motivações de Donald Trump para iniciar uma ofensiva tarifária contra parceiros comerciais, Brasil incluído, ameaçando-os com restrições à entrada de seus produtos nos Estados Unidos a fim de tornar a "América grande novamente".

Números do setor industrial dos americano mostram que os empregos recuaram de cerca de 8,5% do total ao final do primeiro governo do republicano (2017-2021) para 8,1% em 2024, apesar do aumento do protecionismo.

Do ponto de vista econômico, segundo a literatura acadêmica e a prática comercial, a imposição de barreiras a transações mais fluídas pode trazer mais prejuízos do que benefícios. No caso dos EUA, país rico e que consome muito mais bens do que é capaz de produzir, isso é especialmente verdadeiro.

Se levadas adiante, a consequência de tarifas maiores será a majoração dos valores de matérias-primas e de produtos acabados importados pelos EUA, com impactos sobre a inflação, ainda não controlada no país. No acumulado de 12 meses até janeiro, o principal índice de preços fechou em 3%, acima da meta de 2% perseguida pelo Fed, o banco central americano.

Pressões adicionais sobre a inflação obrigariam a autoridade monetária a eventualmente subir os juros para esfriar a economia, o que levaria a um fortalecimento do dólar —à medida que mais investidores adquiririam a moeda para comprar títulos atrativos do Tesouro dos EUA, considerados um porto seguro no mundo.

A valorização do dólar também tornaria as exportações americanas menos competitivas, anulando em parte os efeitos das tarifas —cuja motivação seriam os déficits comerciais dos Estados Unidos com o mundo.

Mesmo a existência desses déficits não é novidade. Eles têm se mantido estáveis há mais de uma década, em torno de 4% do PIB no caso de bens e entre 2,5% e 3,5% considerando a conta de produtos e serviços. Com a China, vêm até diminuindo —e, em relação ao Brasil, os EUA têm tido superávits anuais desde 2009.

Após impor tarifas de 10% a produtos chineses na largada, Trump citou na semana passada um "possível acordo" com os asiáticos. Ele também não sacramentou ainda a intenção de impor, a partir de março, sobretaxas de 25% ao aço e alumínio brasileiros.

O republicano se notabilizou na televisão lustrando sua imagem de negociador. O mais provável, por enquanto, é que esteja recorrendo à ameaça tarifária a fim de arrancar concessões para poder contar vitória depois.

Golpismo continuado

O Estado de S. Paulo

Fiel à sua irrefreável índole golpista, Bolsonaro iniciou uma campanha de deslegitimação da PGR e do Supremo, bastante reveladora da fraqueza de sua defesa jurídica e de seu desespero

Na manhã do dia 28 de agosto de 2021, a pouco mais de um ano do primeiro turno das eleições gerais de 2022, o então presidente Jair Bolsonaro disse a uma plateia de evangélicos que só enxergava três opções de futuro: “Estar preso, estar morto ou a vitória”, concluindo logo em seguida que “a primeira alternativa não existe”.

Em todo o seu fulgor, ali se manifestava o espírito golpista que sempre orientou a trajetória do mau militar que, para infortúnio deste país, chegou à Presidência da República. Ao não admitir nem sequer como possibilidade uma derrota eleitoral, cenário legítimo e aceitável por qualquer político verdadeiramente democrata, Bolsonaro já prenunciava o iter criminis – o “caminho do crime” – que estava disposto a percorrer para se aferrar ao poder.

Pois o mesmo espírito golpista que animou Bolsonaro antes, durante e depois de seu mandato presidencial segue inspirando a sua defesa diante das gravíssimas acusações feitas contra ele pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, no dia 18 passado. Como se sabe, Bolsonaro foi denunciado ao Supremo Tribunal Federal (STF) por “liderar organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado”, crimes cujas penas somam mais de 40 anos de prisão.

No dia seguinte ao oferecimento da denúncia formulada pela PGR contra ele e outros 33 acusados, Bolsonaro escreveu em sua conta no X que “o mundo está atento ao que se passa no Brasil”, o que, segundo o ex-presidente, não passaria de um ardil: o velho “truque de acusar líderes da oposição democrática de tramar golpes”. Noves fora essa risível associação de um fã de ditadores e torturadores com uma oposição “democrática” ao governo do presidente Lula da Silva, Bolsonaro insiste na deslegitimação das instituições republicanas, particularmente da PGR e do STF, para se apresentar ao Brasil e ao mundo como vítima, ora vejam, de uma suposta perseguição política.

Se o tal “truque” descrito por Bolsonaro “não é algo novo”, como ele escreveu, tampouco o é a manjada tese da “perseguição política”, enunciada por dez entre dez poderosos sempre que são apanhados em seus malfeitos. Essa balela, obviamente, não para de pé. Afinal, Bolsonaro nunca escondeu de ninguém seu desapreço pela democracia e seu profundo ressentimento pela promulgação da Constituição de 1988, o marco jurídico que restabeleceu o Estado Democrático de Direito no Brasil após a ditadura militar. Ademais, ao longo do mandato, o ex-presidente produziu provas contra si mesmo aos borbotões, não escondendo de ninguém que uma transição pacífica de poder, em caso de derrota eleitoral, nunca esteve em seu radar.

Ao comparar seus reveses jurídico-penais no Brasil à truculência de ditaduras como as da Venezuela, Cuba e Nicarágua, como fez em postagem no X, Bolsonaro exala desespero, pois não é crível que ele desconheça as evidentes diferenças entre o grau de liberdades democráticas que se tem aqui ante as que são negadas aos cidadãos daqueles países. Ademais, a robustez da peça acusatória assinada pelo procurador-geral, encadeando fatos e apresentando provas da volição delitiva de Bolsonaro e dos que a ele teriam se associado na trama golpista, deixa pouco espaço para o ex-presidente se defender além do recurso às teorias da conspiração, tão caras ao bolsonarismo.

É perfeitamente compreensível, portanto, o lançamento dessa campanha de desqualificação da instituição que acusa Bolsonaro e daquela que virá a julgá-lo. A rigor, é o mesmo modus operandi da disseminação das mentiras que Bolsonaro inventou desde o início de seu desditoso governo contra o sistema eleitoral brasileiro.

Felizmente, em que pese a necessidade de reexame de comportamentos ao qual alguns ministros do STF têm de se dedicar, o Brasil dispõe de instituições sólidas e de um sistema de Justiça que já demonstrou ter capacidade de resistir a mentiras e investidas autoritárias. Se Bolsonaro nada teme, que desça do palanque da desinformação e se defenda nos autos.

A ‘formalização’ do crime organizado

O Estado de S. Paulo

Estudo mostra a extensão da contaminação da economia formal pelas facções, e já se teme o fenômeno da ‘mexicanização’, isto é, a transformação do crime como maior empregador do País

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mapeou, pela primeira vez, o impacto econômico do crime no País. O estudo Rastreamento de Produtos e Enfrentamento ao Crime Organizado no Brasil apresenta um impressionante diagnóstico da ramificação da bandidagem em mercados formais e traz também uma série de recomendações.

Os valores estimados pelo relatório impressionam, e quatro setores chamam mais a atenção. Com base em dados coletados pelos pesquisadores a partir de 2022, chegou-se à estimativa de que o crime organizado movimenta R$ 146,8 bilhões por ano com combustíveis, bebidas alcoólicas, ouro e cigarro.

Mas há ainda mais 18 setores em que as facções se ramificaram, como transportes, imobiliário, pesca, e roubo de celulares e golpes virtuais. Aliás, este último tem receita de R$ 186 bilhões por ano.

O foco dos pesquisadores, porém, foram os maiores mercados lícitos contaminados pelo crime organizado. Isso não significa que o tráfico de drogas tenha perdido relevância, mas tão somente que nos setores formais a bandidagem encontrou novas frentes de atuação e vastas fontes de receita.

A cocaína não é nada desprezível para o crime, haja vista que por ano esse entorpecente movimenta R$ 15 bilhões. Como explicou o presidente do FBSP, Renato Sérgio de Lima, ao Estadão, a infiltração nos mercados lícitos, usados inicialmente para a lavagem de dinheiro do tráfico, gerou “receita tão grande que a droga deixou de ser o negócio mais rentável, ainda que não tenha deixado de ser o principal”.

E prova disso é que facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) não abrem mão de exportar cocaína por portos de norte a sul do País, com destino a mercados bilionários, como o europeu. Mas enquanto o tráfico de drogas dá suporte às facções criminosas em sua expansão desenfreada por territórios, onde impõem “leis” e amedrontam a população, o contágio de setores formais propicia influência econômica e política aos criminosos, que não à toa tentam influenciar eleições.

Há muita audácia, sofisticação e versatilidade do crime. Da perspectiva econômica, a presença no mercado de combustíveis e lubrificantes, por exemplo, já se dá de ponta a ponta da cadeia, passando por refino, distribuição e comercialização dos produtos, além de adulteração. Na venda de cigarros, há efeitos na saúde, além de farta sonegação. Já no mercado do ouro, são inegáveis os impactos ambientais em razão dos garimpos ilegais na Amazônia.

Tanta influência do crime organizado em tantos setores econômicos acarreta prejuízos gigantescos e variados ao País. Além da retroalimentação do financiamento dos negócios do crime organizado, há perdas bilionárias de arrecadação de governos municipais, estaduais e federal em razão de fraudes tributárias e evasão fiscal.

Ademais, segundo Renato Sérgio de Lima, presidente do FBSP, o avanço desses negócios ilícitos pode levar o Brasil a uma espécie de “mexicanização”. Isso porque, no México, o crime organizado já é o maior empregador do país. De acordo com ele, embora o Brasil ainda esteja longe dessa degeneração, o risco é real, uma vez que, “em algumas regiões, como a Amazônia, isso já acontece”.

Para que esse processo seja revertido, exige-se uma resposta do poder público à altura do problema. E os pesquisadores do fórum, além de o diagnosticarem, apontam remédios. Entre eles estão governança integrada e interinstitucional que reúna segurança pública, sistema de Justiça, meio ambiente, Receita Federal, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), com coordenação e inteligência entre os níveis federal, estadual e municipal para a adoção de ações eficazes; cooperação internacional por meio de acordos multilaterais e bilaterais para troca de informações e realização de operações conjuntas; e atualizações legislativas que garantam o rastreamento de produtos, com uso de novas tecnologias.

Às autoridades brasileiras resta pouco tempo para agir diante de um dos maiores desafios da atualidade. Mas há saídas.

Inflação atropela agenda ambiental

O Estado de S. Paulo

Lula decide suspender o cronograma do Combustível do Futuro por recear alta de preços

O governo optou por manter a atual mistura obrigatória de biodiesel ao diesel em 14% e suspender o cronograma oficial do Programa Combustível do Futuro, que previa elevar o porcentual a 15% em 1.º de março. A decisão, informa o Estadão, teria sido tomada a pedido do próprio presidente Lula da Silva, preocupado com o fato de que a medida pudesse impulsionar ainda mais a inflação.

O momento é delicado para o Executivo federal. Com a aprovação no pior nível dos três mandatos de Lula, a ideia parece ser a de evitar ou ao menos postergar decisões que possam piorar o que já não está bom, mas o caso do biodiesel ilustra bem o quanto o governo está perdido.

A quebra da safra de soja 2023/2024, aliada à desvalorização do real, gerou um aumento expressivo nos preços da commodity. E isso, por óbvio, não passou despercebido pelo consumidor. O óleo de soja subiu 29% no ano passado, segundo o IBGE, sendo 5,12% apenas em dezembro.

A soja é também matéria-prima utilizada na produção do biodiesel. E o diesel fóssil já aumentou por dois motivos diferentes desde o início de fevereiro. Além de a Petrobras ter reajustado em R$ 0,22 o preço do litro do combustível nas refinarias, os governadores elevaram a alíquota de ICMS sobre o produto em R$ 0,06.

Aos olhos do governo, manter o cronograma do aumento da mistura do biodiesel ao diesel poderia gerar novos aumentos no preço de um combustível essencial no transporte de cargas. Mas é sintomático que isso tenha sido feito para evitar um aumento de um centavo por litro – impacto que chegaria ao consumidor final caso a mistura fosse elevada a 15%.

A decisão, por óbvio, decepcionou o setor, que investiu pesado para aumentar a capacidade de processamento do produto e ficou sabendo que tudo mudaria com apenas 15 dias de antecedência. O Programa Combustível do Futuro, cuja lei foi sancionada em outubro do ano passado, prevê R$ 260 bilhões em investimentos até 2037 e prevê que a mistura de biodiesel ao diesel seja elevada de maneira escalonada até chegar a 20% em 2030. Como acreditar na palavra do governo se nem mesmo uma lei recém-sancionada é cumprida?

Se o governo ao menos soubesse o que está fazendo, talvez a decisão pudesse ser tecnicamente justificada, mas não parece ser o caso. Os preços do óleo de cozinha e do biodiesel recuaram nos dois últimos meses, o real voltou a ganhar valor frente ao dólar e a projeção é de que a safra de soja bata recorde para este ano. Ainda segundo o setor, a produção de óleo de soja é maior que o consumo interno, ou seja, os produtos nem sequer concorrem entre si.

De uma tacada só, o governo jogou para o alto a previsibilidade e a segurança jurídica tão necessárias para atrair investimentos e mostrou que a agenda da transição energética está subordinada a questões que nada têm a ver com emissão de carbono. Pior: mais uma vez, o governo prefere atuar na ponta da cadeia, em vez de agir nas causas da inflação, com as quais contribui diretamente ao recusar-se a fazer um ajuste fiscal decente.

Trump, o flibusteiro

Correio Braziliense

Flibusteiros seguem um ciclo previsível: exploram fragilidades, convencem aliados temporários e, quando a realidade se impõe, são descartados

Em 1856, William Walker, um flibusteiro americano, autoproclamou-se presidente da Nicarágua após uma expedição militar não autorizada. Médico, advogado e jornalista, destacou-se por comandar incursões privadas na América Central. Com apoio de mercenários e interesses externos, tomou o poder, reintroduziu a escravidão e buscou moldar o país conforme interesses expansionistas dos EUA. Sua trajetória exemplifica o flibusteirismo, termo que designa indivíduos que intervêm em territórios estrangeiros para promover interesses próprios. Mas e se esse conceito ainda fosse atual? Seria Trump um flibusteiro dos interesses ocultos do poder real?

Trump propôs medidas que desafiam normas internacionais e direitos humanos. Entre elas, a transferência de cidadãos americanos condenados para prisões estrangeiras mediante compensação financeira e a realocação dos habitantes de Gaza para nações vizinhas, com os EUA assumindo o controle da região. Essas iniciativas reacendem um histórico de políticas unilaterais que ignoram soberania e autodeterminação dos povos.

Além da violação dos direitos fundamentais dos presos, direitos estes que permanecem e devem ser garantidos durante o cumprimento da pena, violam-se outros dispositivos. No sistema de execução penal norte-americano, a pena não é supervisionada pelo Poder Judiciário, mas, sim, guiada por um modelo administrativo, cuja participação do Judiciário se impõe apenas em situações de violações constitucionais. Ou seja, em havendo qualquer tipo de violação de direitos fundamentais, de tortura, penas indevidas, não haveria fiscalização por meio do órgão fiscalizador competente. Ao abdicar do dever de julgar e punir os próprios cidadãos, os Estados Unidos rebaixariam sua credibilidade como modelo jurídico e abriram precedentes para a instrumentalização da justiça penal como ferramenta de barganha diplomática.

Contudo, não é de hoje que Donald Trump adota políticas questionáveis e que não demonstram qualquer preocupação com o cumprimento da lei e a garantia de direitos. A ideia de deslocar forçosamente a população de Gaza constitui uma violação direta do direito à autodeterminação dos povos, princípio basilar do direito internacional. A realocação compulsória de populações tem precedentes históricos sombrios, associados a crises humanitárias e impactos sociais de longo prazo. Na lógica trumpista, a solução para problemas complexos passa por um redesenho geopolítico arbitrário, ignorando as raízes dos conflitos e os direitos daqueles diretamente afetados. Em sua ideologia, somente ele teria a solução correta para os problemas mundiais, mostrando, mais uma vez, a visão centralizadora que os Estados Unidos têm de si mesmo.

Se Walker não agiu sozinho, tampouco Trump age. O flibusteiro do século 19 contou com apoio de interesses comerciais e expansionistas, assim como Trump é impulsionado pelos verdadeiros donos do poder: magnatas da tecnologia como Elon Musk e Mark Zuckerberg. Seu populismo e ataques às instituições não são apenas traços pessoais, mas servem aos que controlam a economia digital e a infraestrutura da informação. O poder tradicional migrou para grandes conglomerados tecnológicos, tornando Trump um agente útil, desviando a atenção das forças que realmente remodelam o mundo.

A comparação com Walker vai além da disposição de ambos em ignorar normas internacionais. Assim como Walker expandiu a influência americana por meio de intervenções diretas, Trump busca reconfigurar territórios conforme interesses específicos, projetando crises internas para fora. A instabilidade política, o descontentamento social e a criação de inimigos externos transformam a política expansionista em válvula de escape. Como Walker explorou fragilidades externas para consolidar poder, Trump usa crises domésticas para justificar medidas radicais fora das fronteiras.

Flibusteiros seguem um ciclo previsível: exploram fragilidades, convencem aliados temporários e, quando a realidade se impõe, são descartados. Walker teve apoio de setores nicaraguenses que, ao perceberem que seu flibusteirismo só o beneficiava, deixaram-no à própria sorte. Trump e seus parceiros que vendem ilusões talvez descubram o mesmo: a história não protege aventureiros por muito tempo. No final das contas, o legado desses flibusteiros será, como sempre, uma história de ilusões desfeitas e ambições fracassadas.

 

 

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