Correio Braziliense
Para modernizar a sua economia e enfrentar a
China, o presidente dos Estados Unidos põe em xeque tudo o que obstrui suas
intenções, inclusive a democracia e a ordem mundial
O filósofo e historiador norte-americano Marshal Berman foi um pensador que perseguiu o humanismo ao longo de toda a sua obra, encerrada precocemente, em setembro de 2001, aos 72 anos. Em As Aventuras do Marxismo (Companhia das Letras), uma coletânea de artigos, alguns escritos após o fim do União Soviética, o autor refletia sobre o que ainda seria útil no pensamento de Karl Marx, ao qual dedicara boa parte de seus estudos, ao lado da interpretação da vida das cidades que mais amava: Paris, São Petersburgo e, sobretudo, Nova York.
Berman estudou e lecionou em Oxford e em
Harvard, que considerava universidades "intelectualmente excitantes, mas
socialmente solitárias". Na década de 1960, mudou-se para a City
University de Nova York, cidade onde nasceu e se tornou um dos principais
impulsionadores da revista Dissent. Seu livro mais importante é Tudo
que é Sólido Desmancha no Ar (Companhia de Bolso), lançado em 1982, sobre
o que chamou de "aventura da modernidade".
Esse título não é uma simples frase de
efeito. Berman mostra a relação entre a reconfiguração produtiva do capitalismo
e as mudanças de comportamento de homens e mulheres nas cidades que considera
protagonistas da modernidade. São Petersburgo foi planejada e construída para
ocidentalizar o Império Russo. Inspirou a reforma urbana de Paris, que
influenciaria as reformas urbanas pelo mundo, inclusive as do Rio de Janeiro e
de São Paulo, na década de 1920.
No livro Um Século de Nova York (Companhia
das Letras), Berman descreve a virada urbanística da megalópole ao longo dos
100 anos da Times Square. Seu olhar parte do cruzamento da Rua 42 com a Sétima
Avenida, entre americanos e turistas, à sombra de arranha-céus e diante de um
impressionante painel de outdoors, letreiros luminosos e anúncios eletrônicos.
Avenidas, pessoas e signos, em ensaios que vão da agitação cultural da Broadway
na década de 1930 ao poder financeiro das grandes corporações, tecem o caldeirão
no qual nasceu o atual presidente dos Estados Unidos.
Donald
Trump recebeu de seu pai, Fred Trump, em 1971, o controle da The Trump
Organization e construiu um império imobiliário. Se meteu em quase tudo, fez
maus e bons negócios, sempre na fronteira sinuosa da transgressão. Foi dono do
concurso Miss USA, figurante em filmes e séries de televisão e apresentador e
produtor do reality show O Aprendiz (The Apprentice), que pavimentou
a carreira eleitoral. Em junho de 2015, anunciou a candidatura à Presidência
pelo Partido Republicano. Em maio de 2016, assumiu a Casa Branca.
Herança de Reagan
O slogan de campanha de Trump, Make America
Great Again (Torne a América Grande Novamente), abreviado como MAGA, surgiu na
campanha presidencial de Ronald Reagan de 1980. Foi usado por Trump nas
eleições de 2016, em meio a acusações de interferência russa a favor de sua
campanha, e nas eleições do 2024. A remissão ao passado no imaginário popular é
uma caraterística universal do pensamento reacionário. Para modernizar a
economia dos Estados Unidos e enfrentar a China, Trump atropela quase tudo que
obstrui suas intenções: as leis americanas, as democracias representativas, a
institucionalidade da economia mundial e os organismos multilaterais
pós-Segunda Guerra Mundial.
No dia da posse, 20 de janeiro, Trump assinou
uma série de ordens executivas que viraram os EUA pelo avesso. Retirou-se da
Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Acordo de Paris; revogou o
reconhecimento da ideologia de gênero; congelou novas regulamentações; demitiu
servidores; criou o Departamento de Eficiência Governamental (entregue a Elon
Musk) para reformar o Estado; removeu militares, investigadores e
promotores que considera desafetos políticos; reclassificou Cuba como
patrocinadora do terrorismo.
Também revogou sanções contra colonos
israelenses; anulou regulamentos sobre inteligência artificial; dissolveu a
Força-Tarefa de Reunificação Familiar; anistiou aproximadamente 1,5 mil
manifestantes que depredaram o Capitólio, em 6 de janeiro de 2022, para impedir
a posse de Joe Biden; tentou acabar com a cidadania por nascimento; e declarou
emergência nacional na fronteira com o México. Trump adotou tarifas de 25%
sobre importações do Canadá, do México e do aço brasileiro. Anunciou a intenção
de anexar o Canadá, comprar a Groenlândia, tomar de volta o Canal do Panamá,
fazer um resort na Faixa de Gaza e dividir a Ucrânia com Putin.
Fosse vivo ainda, Berman poderia começar a
escrever o segundo volume de Tudo que é Sólido Desmancha no Ar, título
retirado de uma passagem do famoso Manifesto do Partido Comunista (Boitempo),
de 1848. Nele, Marx afirma que a burguesia só pode existir com a condição de
revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, as relações de
produção e, como isso, todas as relações sociais.
"Dissolve todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; e as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas", destaca. Mais atual, impossível.
Nenhum comentário:
Postar um comentário