quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Trump põe todos no colo da China – Elio Gaspari

O Globo

Donald Trump entrou na Casa Branca com a cabeça no fim do século XIX. Naquele tempo, o vigor da economia americana contrapunha-se a uma Europa dividida e a uma América Latina sonolenta. Se os Estados Unidos tinham rivais, depois de 1914 eles resolveram brigar com duas guerras. Em 1945, terminada a briga, a economia americana era, disparada, a mais forte do mundo. Do outro lado estava a falecida União Soviética. Veio a Guerra Fria, e ela desmoronou.

Em poucas semanas o presidente americano ameaçou a Europa, encrencou com os dois vizinhos e com a China, a segunda economia do mundo.

Falta ao trumpismo a percepção de um lugar-comum: a paciência chinesa. No final do século XIX, o Império do Meio estava em franca decadência e, ao final da Segunda Guerra, em 1945, era uma nação conflagrada pela guerra civil. Hoje, a situação é outra. Misturando protecionismo e expansionismo, Trump joga uma parte do mundo no colo da China.

No dia de sua posse, Trump teve um sinal de que a famosa “destruição criadora” do capitalismo está num país teoricamente socialista. Na verdade, trata-se de uma ditadura de partido único, economicamente capitalista. Trump reclama porque consórcios chineses mandam no Canal do Panamá, mas isso só acontece porque as empresas americanas deixaram de competir.

Foi-se o tempo em que a China treinava guerrilheiros. De 1964 a 1968, cerca de 40 militantes do Partido Comunista do Brasil receberam treinamento militar em Pequim, e pelo menos dez morreram na Guerrilha do Araguaia. Naquele tempo, a China e a União Soviética competiam com os Estados Unidos ideologicamente. Hoje a competição é exclusivamente econômica.

A visão de mundo do trumpismo quer ser expansionista e, ao mesmo tempo, isolacionista. O sonho dos Anos Dourados, que ficaram no passado, é hoje uma contradição em si mesma, e a China se beneficia disso. Ela investe na infraestrutura mundo afora, ocupando o espaço dos Estados Unidos. Além disso, se os chineses fazem carros numa fábrica que foi da Ford, o problema é da Ford e, portanto, da indústria americana. Para ficar no caso panamenho, são os chineses que constroem a ponte sobre o canal, coisa de US$ 1,3 bilhão. Os americanos nem sequer competiram.

No dia em que Trump encrencou com a Colômbia, o embaixador chinês em Bogotá disse que as relações entre os dois países estavam em “seu melhor momento”. Aí está a vulnerabilidade do surto trumpista: onde ele encrenca, lá entra o chinês.

O trumpismo tem algo de subversivo em relação aos valores seculares da democracia americana, enquanto o governo chinês prossegue na tradição milenar de seus imperadores. Às vezes essa tradição leva a desastres, com fome e até casos de antropofagia. Há décadas, nem mesmo Trump é capaz de achar que a máquina chinesa anda para trás.

O presidente americano tem um gosto pela bravata, e esse é mais um problema. O Império do Meio tem horror a estridências. A ideia de impor tarifas ao México e ao Canadá, para suspendê-las temporariamente dias depois, é coisa que a China jamais fez, nem durante seus momentos de delírio. Afinal, seus governantes não precisam cultivar diariamente o público interno.

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