quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

A extrema direita sequestrou a rebeldia - Wilson Gomes

Folha de S. Paulo

Esquerda resiste à ideia de que contribuiu para a manutenção de Trump e de seus aliados

Há, evidentemente, muitas razões pelas quais pelo menos metade dos eleitores norte-americanos tem preferido Trump nas últimas três eleições. E essas razões provavelmente são muito parecidas com aquelas que levam pelo menos metade dos eleitores brasileiros a continuar optando por candidaturas presidenciais da extrema direita desde 2018.

O que me preocupa, no entanto, é a resistência da esquerda e dos progressistas em se implicar nessa virada eleitoral para a extrema direita, que tem se repetido ao longo desta última década.

"Implicar-se" significa reconhecer que a própria esquerda está errando e que seus erros são parte das razões que alimentam o vertiginoso crescimento do apoio a extremistas, desta vez em conformidade com as regras do jogo da democracia eleitoral.

O que tem sido constante nas promessas de campanha de Trump, no seu discurso de posse, nas suas primeiras ordens executivas e em suas declarações? Duas coisas. Um etnocentrismo sem limites, expresso na retórica radical de colocar os interesses americanos acima de tudo, proteger a segurança nacional, romper com compromissos multilaterais e restaurar o orgulho e a prosperidade do país. E uma promessa direta e sem concessões de desmontar a agenda e a cultura progressista e de esquerda, especialmente no que diz respeito à ideologia e às práticas identitárias.

O que há em comum entre essas duas diretrizes? Uma posição moral baseada na força e na audácia e um líder que se vende como inabalável, sem compaixão, que nunca pede desculpas, recua ou demonstra vulnerabilidade. Esse é um etos vitalista e afirmativo, não há margem para dúvida.

Enquanto isso, para qualquer lado que se olhe, o que os progressistas estão fazendo? Na semana passada, exigiam o desligamento de um sócio de uma editora que se comportou mal com sua mulher há 15 anos. Nesta semana, pedem que uma cantora seja condenada por racismo religioso, proibida de se apresentar e obrigada a pagar uma indenização milionária por ter trocado o nome de Iemanjá pelo de Jesus em uma performance.

Os progressistas estão presos a uma lógica de retaliação e revanche. O que oferecem não é uma nova cultura afirmativa, mas uma ênfase na culpa coletiva e histórica, que reforça a ideia de que o indivíduo está eternamente preso a um passado que o condena. Seu motor é, em grande medida, o ressentimento.

Uma grande parcela da sociedade experimenta o identitarismo como uma moralidade imposta, em que a linguagem deve ser reformulada (novos pronomes, palavras proibidas, vocabulário "neutro") e o passado deve ser reescrito. Direitos considerados básicos passam a ser vistos como privilégios injustificáveis, e o indivíduo deve carregar culpas históricas e sociais que não são diretamente suas.

Quando o politicamente correto é vivido e sentido por milhões de pessoas como uma forma de opressão, a alternativa a ele aparece como libertação. É perfeitamente plausível afirmar que um dos principais atrativos do trumpismo reside na oferta de um vitalismo afirmativo para amplos segmentos da população que se sentem oprimidos por essa mentalidade e suas formas institucionais.

Essa dinâmica se assemelha muito às revoluções morais do passado. Em certo sentido, o trumpismo promete ser para os conservadores o que os movimentos contraculturais dos anos 1960 foram para os progressistas —uma rebelião contra normas repressivas e sufocantes. A diferença é que, agora, a rebelião é contra a esquerda, seus novos dogmas, sua insaciável sede de compensações e cotas.

A extrema direita sequestrou o imaginário da rebeldia, um papel que por muito tempo foi exclusivo da esquerda. Durante o século 20, eram os progressistas que desafiavam normas conservadoras e pregavam a liberdade contra a repressão. Agora, com o politicamente correto transformado na nova ortodoxia cultural, a extrema direita se apresenta como a verdadeira força rebelde.

Isso permite ao trumpismo se vender como um movimento de insubmissos, de gente que não se dobra à patrulha ideológica. E, pelo menos na fachada, isso evoca o "sim à vida" do vitalismo positivo, exalta o impulso, a espontaneidade e o desprezo pelo conformismo social e moral.

Se a esquerda quiser reconquistar o terreno perdido, precisa abandonar a lógica da punição e do ressentimento e oferecer algo mais do que culpa e vigilância moral. Enquanto continuar gritando por mordaças, reparações e humilhações, seguirá entregando à extrema direita o argumento da rebeldia e da liberdade. Mas é claro que continuar pensando que quem vota em Trump é fascista é muito mais consolador.

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