Déficit recorde das estatais mostra que privatizar é urgente
O Globo
Estado não pode manter controle sobre
empresas que só não fecham porque têm acesso a cofres públicos
Como previsto, as estatais federais, excluindo bancos públicos e Petrobras, fecharam 2024 com déficit recorde de R$ 6,7 bilhões, o maior em 23 anos, de acordo com o Banco Central. A ministra de Gestão e Inovação, Esther Dweck, se saiu com uma explicação insólita. “Não chamem de rombo”, disse ela. “O que foi divulgado pelo Banco Central é o resultado fiscal das empresas, que pensa só as receitas do ano e as despesas do ano. Muitas despesas são feitas pelas estatais com dinheiro que estava em caixa, portanto ele acaba gerando resultado deficitário, ainda que as empresas tenham lucro.” Independentemente do jargão contábil ou eufemismo que o governo escolha para descrever o desequilíbrio financeiro, é evidente que em algum momento ele terá de ser coberto pelo Tesouro, como foi no passado.
Nos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro,
as estatais federais passaram por saneamento e deixaram de pesar tanto nos
cofres públicos. Foi só Luiz Inácio Lula da Silva voltar ao Planalto, e elas
voltaram a fechar no vermelho. Os Correios, com
perdas de R$ 3,2 bilhões, encabeçam os resultados negativos. A estatal chegou a
ser incluída no Plano Nacional de Desestatizações, o BNDES preparou um estudo
alentado sugerindo um modelo para a privatizá-la, mas o governo interrompeu
tudo. A Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais afirma
tentar aumentar as fontes de receitas da empresa. Mas faz sentido mantê-la nas
mãos do Estado? É ridículo o argumento de que, não fosse estatal, seria
impossível atender locais remotos. Ela é tão mal gerida que não há entrega
diária de correspondência nem em bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro. Com
investimento privado, é possível cobrar por melhor qualidade do serviço e
manter intacta a malha de distribuição. Há dezenas de exemplos assim no mundo,
mas a gestão petista parece impermeável à realidade.
Outro destaque entre as estatais deficitárias
é a Infraero. Vários aeroportos, congestionados e com necessidade de
investimento, foram privatizados recentemente. Com a queda de receita, a
Infraero acumulou déficit de R$ 540 milhões em 2024. O êxito da privatização
dos terminais não justifica mais a existência da estatal na forma atual. É
preciso rever sua missão e seu tamanho. O mesmo vale para a Casa da Moeda,
outra estatal deficitária impactada por mudanças nos usos e costumes, com o
avanço dos pagamentos digitais.
Por princípio, o Estado não pode manter sob
seu controle empresas que só não fecham as portas porque têm acesso
privilegiado aos cofres públicos, como diversas estatais. Que dizer do Ceitec,
projeto para a produzir semicondutores que jamais fez sentido, já custou perto
de R$ 1 bilhão da União e cuja liquidação foi suspensa por Lula ao assumir? Ou
da CBTU, empresa de trens atuante em poucas capitais, num setor em que as
melhores soluções para atrair investimentos são as concessões ao setor privado?
Ou ainda da Emgepron, que recebeu R$ 10 bilhões do Tesouro entre 2017 e 2019
para construir navios (setor em que o Brasil jamais foi competitivo) e fechou
2024 com déficit estimado em R$ 2,5 bilhões?
O rombo das estatais serve de alerta ao
governo. A viabilidade dessas empresas tem de ser analisada de forma técnica.
Seu desempenho precisa ser cotejado com a realidade do mercado em que atuam e,
com raríssimas exceções em casos de segurança nacional, devem ser privatizadas
ou liquidadas.
Prefeito paulistano está certo ao querer
desocupar área de risco
O Globo
Ricardo Nunes propôs transferir 45 mil
moradores do Jardim Pantanal, onde alagamentos se tornaram corriqueiros
As fortes chuvas que têm castigado São Paulo nos
últimos dias inundaram o Jardim Pantanal, região à beira do Rio Tietê na Zona
Leste da capital. Ao longo das últimas décadas, esse transtorno virou rotina
para os 45 mil moradores, cansados de perder bens sempre que as águas sobem.
Como o próprio nome sugere, o lugar é suscetível a alagamentos. A região
deveria ser uma Área de Proteção Ambiental (APA), mas se tornou espaço para
moradias, repetindo um problema de outras metrópoles que sofrem com a ocupação
desordenada.
Diante da realidade, está certo o prefeito de
São Paulo, Ricardo Nunes (MDB
), em propor a transferência das famílias. Ele disse estudar uma indenização de
R$ 20 mil a R$ 50 mil, dependendo do imóvel. “Não tem como lutar contra a
natureza. Não vejo outra solução a não ser incentivar as pessoas a sair daquele
local”, disse Nunes. É verdade que a prefeitura não entregou até agora obras
contra cheias prometidas para 2023. Se estivessem prontas, poderiam amenizar o
problema. Mas é improvável que impedissem a inundação. Desde a década de 1980,
quando o local começou a ser ocupado, as cheias se repetem. Entre 2009 e 2010,
a região chegou a ficar alagada por quase dois meses, levando o município a
decretar estado de calamidade pública. Segundo a prefeitura, o custo de um
dique para impedir a água de chegar ao bairro é estimado em R$ 1 bilhão — preço
inviável ante as necessidades de um município com Orçamento de R$ 112 bilhões
em 2024 para atender a 11,5 milhões de habitantes.
Com eventos climáticos extremos cada vez mais
intensos e frequentes, as cidades brasileiras precisam repensar seus modelos de
ocupação. Isso ficou claro nas enchentes do Rio Grande do Sul no ano passado.
Bairros às margens de rios foram completamente devastados, mostrando que essas
áreas jamais deveriam ter sido ocupadas, pois a vida dos moradores está em
risco. Não é fácil retirá-los de suas casas quando as águas sobem rapidamente
diante de chuvas torrenciais mais frequentes.
Compreendem-se a dificuldade de convencê-los
a deixar seus lares e os desafios logísticos envolvidos. Eles não estão ali por
acaso, mas porque não têm opção. Durante décadas, as políticas habitacionais
têm fracassado. Projetos como Minha Casa, Minha Vida oferecem moradias em áreas
distantes, sem infraestrutura adequada de transportes e serviços.
Contraditoriamente, as cidades mantêm vazios urbanos em áreas centrais
acessíveis. Junte-se a isso a leniência do poder público com as ocupações
irregulares. Políticos não gostam de se indispor com moradores que constroem
casas em encostas ou margens de rios. É um equívoco, pois têm o dever de
protegê-los do risco.
Áreas sempre sujeitas a inundação precisam
ser repensadas como local de moradia. Deveriam ser transformadas em parques
para absorver as águas das chuvas. Os efeitos das mudanças
climáticas trouxeram desafios complexos. As autoridades precisam
enfrentar a nova realidade.
Mercado de trabalho dá sinais de
desaceleração da economia
Valor Econômico
Se as empresas e empresários sofreram coação ilegal, nada devem à União nem deveriam pagar um tostão
Um alerta acendeu no mercado de trabalho.
Embora os números de 2024 tenham sido positivos, o último mês do ano mostrou
que os bons resultados podem não se repetir. A sinalização é mais forte no
Caged, do Ministério do Trabalho e Emprego, e que mede o emprego formal, mas
também é visível na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad
Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O ano terminou com saldo positivo de 1,7
milhão de vagas formais abertas. Segundo o Caged, o melhor resultado anual
desde 2022, quando 2 milhões de postos foram criados. O registro é 16,5%
superior ao de 2023. O setor de serviços liderou ao contratar quase 1 milhão de
trabalhadores. Os serviços são a principal fonte de pressão sobre a inflação,
além dos alimentos. Comércio, indústria e construção vieram na sequência.
O desempenho do mercado em 2024 embutiu, no
entanto, sinais de enfraquecimento ao longo do segundo semestre. Em outubro
houve queda de 47,2% dos novos postos de trabalho sobre setembro; e, em
novembro, o saldo foi 19% menor que no mês anterior. O pior ocorreu em
dezembro, quando foram fechadas 535,4 mil vagas de trabalho com carteira
assinada, extrapolando a sazonalidade do mês. O resultado superou a expectativa
do próprio governo e foi o pior para o mês desde 2020, durante a pandemia de
covid-19. Os cinco grupos de atividades econômicas registraram saldo negativo
em dezembro. O setor de serviços também se destacou nas demissões, com o
fechamento de 257,7 mil postos apenas no mês. Em seguida ficaram a indústria, a
construção, a agropecuária e o comércio.
Os números do IBGE vão na mesma direção. A
taxa média de desemprego de 2024, apurado pela Pnad Contínua, foi de 6,6%,
abaixo dos 7,8% de 2023, e o menor patamar desde 2012. É a primeira vez que a
média anual fica abaixo dos 7% apurados em 2014. A máxima ocorreu em 2021, e
foi de 14%.
Ao fim do ano, havia 103,818 milhões de
trabalhadores ocupados, 2,7 milhões a mais do que no ano anterior. Esse grupo
corresponde a 58,6% da população com 14 anos ou mais, a maior taxa já
registrada pela série histórica, superando o recorde de 58,3% de 2013.
O número de pessoas ocupadas nunca foi tão
alto no país, com recordes nas vagas formais e por conta própria. A população
desocupada caiu para 6,8 milhões, o registro mais baixo desde 2014. O avanço no
emprego foi puxado pela formalidade, segundo o IBGE. O emprego esteve aquecido
em todos os setores. Comércio, transporte, administração pública, informação e
comunicação e outros serviços atingiram recorde de profissionais.
O rendimento médio também foi o maior já
registrado. A renda média mensal dos ocupados atingiu R$ 3.315 no último
trimestre do ano. Valores superiores só existiram na pandemia, quando a crise
tirou do mercado os informais, trabalhadores que ganham menos, elevando a média
até acima do nível atual. Desta vez, o aumento na geração de empregos formais,
reajustes para servidores públicos, elevação do salário mínimo e recuperação
dos ganhos de informais, em setores como a construção, influenciaram.
Assim como o Caged, a Pnad Contínua também
mostrou piora no fim do ano. No trimestre encerrado em dezembro, a taxa de
desemprego subiu para 6,2%, na comparação com os 6,1% do trimestre móvel
terminado em outubro, e ficou acima das previsões do mercado. Foi a primeira
elevação após oito trimestres móveis consecutivos de quedas.
Se o mercado de trabalho foi favorecido em
2024 pela melhora da atividade econômica, o fim do ano já reflete, além de
fatores sazonais, perspectivas menos favoráveis para 2025, influenciadas por
fatores como a elevação dos juros e a pressão da inflação. O aumento da Selic
iniciado em setembro e a sinalização dada pelo Copom de que as taxas
continuarão subindo até março, com repercussões no crédito, desestimulam a
contratação. O cenário fiscal doméstico e as novas pressões que vêm do exterior
com a política econômica e comercial dos EUA, sob o comando de Donald Trump,
não ajudam.
Além do mercado de trabalho, outros setores
sensíveis antecipam a desaceleração da economia esperada para o ano. Um deles é
o varejo, cuja taxa de expansão em unidades caiu de 11% para cerca de 2%, entre
a primeira e a terceira semana de janeiro, na comparação com os mesmos períodos
de 2024, segundo monitoramento da NielsenIQ (NIQ). Já pesquisa da Scanntech
mostra que, nos últimos seis meses, metade do ganho em volume visto nos
primeiros meses de 2024 foi anulada (Valor,
31/1). A redução das vendas ocorre também em supermercados e hipermercados do
Nordeste, onde está a maior a base de eleitores do presidente Lula.
Na mesma linha, pesquisa da Confederação
Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) constatou a queda de
0,9% da Intenção de Consumo das Famílias (ICF) em janeiro, em comparação com o
mesmo mês de 2024, motivada pela queda de emprego e da renda e piora no acesso
ao crédito.
Os indícios de desaceleração da economia
devem interromper o bom momento do mercado de trabalho, influenciando o nível
de atividade e a inflação. Há previsão de que o desemprego pode voltar aos 7%,
com inevitável repercussão política.
Choque entre Poderes diminui, mas problema
permanece
Folha de S. Paulo
STF e Congresso devem atuar com comedimento,
seja ao decidir processos ou no uso de emendas que geram gastança inaudita
Atritos entre os Poderes são naturais, e em
certa medida desejáveis, na configuração mais comum entre as repúblicas
democráticas modernas, nas quais Executivo, Legislativo e Judiciário compõem um
sistema de freios e contrapesos mútuos.
Têm-se um problema, porém, quando o simples
atrito escala para conflito, tornando-se fator de instabilidade capaz de
contaminar a agenda política e prejudicar o equilíbrio institucional.
Dado que o Brasil flertou, nos últimos anos,
com esse cenário de desarranjo estatal, foram bem-vindas as mensagens com que
os chefes do Legislativo e do Judiciário marcaram a retomada dos trabalhos no
Congresso e no Supremo Tribunal Federal, em sessões nessa segunda-feira (3).
Cada um a seu modo, o senador Davi
Alcolumbre (União-AP), o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB)
e o ministro Luís
Roberto Barroso pregaram a harmonia entre os Poderes —em uma atitude
necessária para aquietar os ânimos, embora não suficiente para resolver a
questão de fundo que tem estressado a relação do Legislativo com o Judiciário.
O STF, com suas ações
heterodoxas, seus inquéritos eternos e sua propensão a pisar no terreno alheio,
incomoda o Congresso quando politiza os mais variados temas e, sobretudo,
quando usa suas decisões para regular assuntos que deveriam ficar sob o cuidado
dos deputados e senadores.
Tais problemas não constituem, todavia, o
único aspecto dessa queda de braço. Outro pomo da discórdia tem nome e
sobrenome: emendas parlamentares.
Nesse caso, são os senadores e os deputados
que acumulam força extraordinária, muito além do que seus mandatos permitiriam.
Eles passaram a gerir dezenas de bilhões de reais com essa manobra, colhendo os
frutos eleitorais dessa gastança, mas se livrando da responsabilização legal e
política que deveria acompanhá-la.
Foi para interromper essa hipertrofia
desmedida que o STF determinou, com razão, a adoção de princípios
constitucionais elementares, como a transparência e a eficácia dos gastos
públicos.
Daí por que Alcolumbre acertou apenas em
parte ao dizer, em discurso na segunda-feira, que o
Supremo não pode cercear o Parlamento "em sua função primordial
de legislar e representar os interesses do povo brasileiro".
Como regra geral, o senador aponta na direção
correta; erra, contudo, ao afirmar que possa ter havido cerceamento quanto às
emendas —o
STF nada mais fez que cumprir seu papel.
Que atores políticos procurem ganhar espaço
por meio de negociações, blefes e balões de ensaio, isso é do jogo. A busca
pelos resultados desejados, entretanto, não pode se dar por meio do sacrifício
das instituições e à revelia dos interesses nacionais.
E o que interessa ao país é que
o Judiciário se lembre da autocontenção ao exercer suas funções e que
o Congresso deixe de tratar o dinheiro público como se fosse uma mesada da qual
pode dispor sem dar satisfação a ninguém.
Atrasos em obras amplificam estrago das
enchentes em SP
Folha de S. Paulo
Intervenção adiada em bairro alagado
evidencia inação governamental; crise do clima exige planejamento urbano
corajoso
Em uma metrópole já carente de solos
permeáveis, dispor de sistemas de drenagem capazes de suportar chuvas mais
concentradas no tempo e no espaço é condição imperiosa, ainda
mais sob a recorrência de eventos climáticos extremos.
Castigada por temporais, São Paulo demonstra
em cenas assustadoras sua inaptidão para lidar com escoamentos, seja na
enxurrada que invadiu estação de metrô e pôs
em risco a vida de passageiros, seja em um bairro pobre do extremo leste da
cidade já habituado a inundações duradouras e promessas efêmeras.
De nome sugestivo, o Jardim Pantanal
completou nesta terça-feira (4) quatro dias com suas ruas alagadas —foram 40 na
enchente histórica de 2009.
Erguido no mesmo nível da várzea sinuosa do
rio Tietê, o local convive há décadas com água suja invadindo casas, por longos
períodos, na temporada de chuvas.
Em abril de 2023, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) anunciou
uma obra, por R$ 6,5 milhões, que amenizaria as cheias no bairro. O muro de
contenção anexado a um reservatório para reter água e direcioná-la para um
córrego, contudo, ainda não saiu do papel. O valor do contrato já subiu para R$
8,5 milhões devido a aditamentos.
Na crise atual, o prefeito propôs nos últimos
dias uma saída mais drástica e polêmica: a remoção de 36 mil a 56 mil pessoas
que vivem na região, a um custo estimado em até R$ 1,92 bilhão.
É curioso observar que estudo da própria
prefeitura verificou que uma intervenção quiçá definitiva, com construção de
diques, reservatórios e um canal de 5,5 km, sairia
mais em conta —cerca de R$ 1 bilhão, e sem precisar retirar nenhum morador
do local.
Nunes, porém, já avisou que qualquer decisão
de macrodrenagem, se houver, será tomada após o fim do verão, em março,
em parceria com o governador Tarcísio
de Freitas (Republicanos).
Enquanto isso, não há previsão para as águas baixarem.
Ações essenciais para a contenção de
enchentes atravessam gestões, mas não só no Jardim Pantanal. Projetado há 23
anos, um piscinão na Vila Madalena (zona oeste) ainda está em fase de estudos
pré-licitação. Sua conclusão poderia ter evitado a morte de um artista plástico
de 73 anos, engolfado em casa pela correnteza.
Um planejamento urbano que preveja infraestrutura verde e capacidade de absorver, drenar e armazenar águas pluviais é essencial, mas exige coragem e capacidade administrativa das autoridades para evitar que o dinheiro público seja tragado pelo sorvedouro das más decisões.
Trump, o pombo enxadrista
O Estado de S. Paulo
Ao punir aliados como se fossem inimigos,
presidente americano bagunça o tabuleiro das relações internacionais. Será
difícil confiar nos EUA enquanto essa doutrina errática persistir
O presidente dos EUA, Donald Trump, se
autoproclama o “homem tarifa” e diz que “tarifa” é a palavra mais bela do
dicionário. Analistas ainda nutriam esperanças de que essas invectivas ficassem
contidas na retórica e o emprego das tarifas seguisse o padrão mais moderado do
primeiro mandato. Esse otimismo foi dizimado quando Trump abriu fogo não só
contra os três principais parceiros comerciais dos EUA, mas mais agressivamente
contra os dois vizinhos e aliados: Trump prometeu aumento de 10% para as tarifas
da China e tarifas de 25% para o México e o Canadá. Logo depois, suspendeu
temporariamente as taxas sobre os vizinhos, mas a mensagem foi clara: as
tarifas serão mais agressivas e generalizadas, e ninguém está seguro. Não são
só batalhas comerciais contra este ou aquele país, mas uma guerra contra o
comércio global.
Para Trump, as tarifas servem a múltiplos
objetivos econômicos: restaurar a indústria nacional, gerar receitas e reduzir
o déficit comercial. Mas dois séculos de experiência econômica demonstram que,
na melhor das hipóteses, seu efeito é inócuo e, na pior (e mais provável),
contraproducente. E os danos exacerbarão os problemas econômicos. Uma vez que
as tarifas não serão empregadas só com fins comerciais, mas como ferramentas
para coagir países a cumprir todo tipo de demanda, elas alienarão aliados. E, uma
vez que são aplicadas por meio de expedientes legalmente questionáveis,
degradarão o Estado de Direito nos EUA.
Algumas indústrias se beneficiarão no curto
prazo, mas isso não compensará os custos repassados aos demais consumidores e
produtores, sobretudo aos consumidores mais pobres e produtores menores, que,
em geral, dependem mais de produtos importados.
Mesmo majoradas, as tarifas responderão por
uma fração marginal das receitas públicas e não abrirão muito espaço para
reduzir impostos ou a dívida pública. A balança comercial é menos afetada por
políticas comerciais do que por fatores macroeconômicos, como poupança, padrões
de investimento, valor da moeda ou políticas fiscais. De resto, o aumento das
alíquotas tende a ser anulado pela redução das importações. E, se as
importações diminuirão, as exportações também diminuirão, primeiro, porque um
dólar mais forte tornará os produtos americanos mais caros para outros países,
depois, pelas retaliações que os alvejados se verão obrigados a impor.
Pagando mais pelos melhores produtos que o
mundo oferece, a indústria americana ficará menos competitiva. Para piorar, o
protecionismo estimula o clientelismo e desencoraja a inovação, resultando em
menos empregos, renda, receitas e crescimento econômico.
Se o impacto sobre a economia americana é
negativo, sobre os países atingidos é ainda mais. Trump aposta nessa assimetria
para conquistar outras metas, como obrigar o México e o Canadá a coibir a
imigração ou o tráfico de drogas. Mas um México mais pobre só agravará esses
problemas, enquanto a participação do Canadá neles é irrisória. Os dois
vizinhos têm uma economia altamente integrada aos EUA por tratados de livre
comércio. Além dos danos econômicos para todos, a mensagem aos aliados dos EUA
é de que o país não é confiável.
A destruição da rede de alianças ocidentais é
um sonho tornado realidade para adversários como China e Rússia.
Economicamente, a China perderá mais com um desacoplamento comercial com os
EUA, mas isso a obrigará a buscar estratégias independentes para criar novas
tecnologias (como já acontece com o 5G ou a inteligência artificial). Uma China
menos interdependente tenderá a aumentar, não a diminuir, suas políticas
totalitárias, agravando riscos geopolíticos que as tarifas de Washington supõem
afastar e facilitando alianças de Pequim com países ressentidos com os EUA.
Se há alguma verdade no bordão tipicamente
americano de que não há ganho sem dor (“no pain, no gain”), nem por isso toda
dor é produtiva. Neste caso, só haverá dor, e nenhum ganho. Economicamente,
todos perderão. Geopoliticamente, é como se Trump fosse um pombo enxadrista,
que bagunça o tabuleiro e estufa o peito cantando vitória. A ofensiva tarifária
degrada a aliança das democracias e fortalece as autocracias. Ela não tornará a
“América grande de novo”, só tornará o mundo mais pobre e perigoso.
O STF ideal e o real
O Estado de S. Paulo
Barroso está certo: a Justiça deveria ser
técnica, imparcial e isenta de paixões políticas. Mas a dura realidade é que o
próprio STF tem se afastado cada vez mais desse ideal
Ladeado pelos chefes do Executivo e do
Legislativo, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto
Barroso, inaugurou o ano judiciário apresentando dados protocolares da Justiça
e tecendo considerações genéricas sobre sua missão, como, aliás, convém a uma
cerimônia desse tipo. Mas, como dizia a célebre ponderação do filósofo José
Ortega y Gasset, “eu sou eu e minha circunstância”, e a circunstância da Corte
é bem mais tumultuosa do que sugere o discurso de seu presidente.
“Todas as democracias reservam uma parcela de
poder para ser exercida por agentes públicos que não são eleitos pelo voto
popular, para que permaneçam imunes às paixões políticas de cada momento”,
disse Barroso. “O título de legitimidade desses agentes é a formação técnica e
a imparcialidade na interpretação da Constituição e das leis.” A fala, em tese,
é irretocável. O problema é a sua discrepância com as práticas da Corte.
Pesquisas registram que a credibilidade do
STF está em franco derretimento. No núcleo da desconfiança está justamente a
percepção de que sua atuação é movida por paixões políticas, não só para
interpretar a Constituição e as leis, mas reformulá-las.
“Somos contra todo tipo de abusos”, disse
Barroso. Mas como conciliar essa intransigência com o fato de que mais de 90%
dos magistrados e procuradores recebem acima do teto estabelecido pela
Constituição que deveriam guardar?
“Celebramos a vitória das instituições e a
volta do País à normalidade plena”, disse Barroso. Mas será normal haver
inquéritos secretos que já duram milhares de dias, ao abrigo dos quais já se
praticaram desde suspensões de perfis em redes sociais a censuras a veículos de
comunicação? Quando Dias Toffoli dizima monocraticamente provas, confissões e
punições no âmbito da Operação Lava Jato com fundamento na narrativa
conspiratória petista, é de “técnica” e “imparcialidade” que se está falando? O
próprio Barroso, supostamente a salvo das paixões políticas, vangloriou-se, num
evento estudantil, de ter ajudado a derrotar o bolsonarismo.
“Decidimos as questões mais complexas e
divisivas da sociedade brasileira”, disse Barroso. Eis o maior problema: a
esmagadora maioria dessas questões deveria ser decidida pelo Parlamento. A
parte que toca ao STF é crucial, mas limitada: exercer o controle de
constitucionalidade.
A Corte, entretanto, vem ampliando a
compreensão a respeito de suas próprias competências, ora atuando como uma
espécie de Poder moderador entre os outros Poderes, ora agindo no lugar deles.
Só no ano passado, o STF emitiu ordens executivas que abrangem desde as
políticas de câmeras em uniformes policiais, passando por medidas de combate a
queimadas até os preços de sepulturas, e disfarça cada vez menos sua ambição de
legislar sobre questões como o aborto, liberação das drogas e regulação das
redes sociais.
Alternando entre o triunfalismo e o
vitimismo, os ministros frequentemente atribuem o descrédito à desinformação
dos “inimigos da democracia”. Mas as pesquisas mostram que a desconfiança
grassa à esquerda e à direita, e vai muito além da militância bolsonarista. As
críticas mais contundentes não atingem o papel da Corte na defesa da
democracia, mas justamente os abusos cometidos em nome dessa defesa.
Barroso está correto. O ideal da Justiça é de
um quadro de servidores qualificados que arbitram conflitos sobre os quais não
têm parte, aplicando leis que não criaram. Mas o sentimento predominante é de
uma Corte instável, conivente com abusos e politizada.
Se os ministros não querem se fiar neste
jornal, ouçam seus próprios pares. “Cabe sempre observar o limite da
Constituição”, disse recentemente o vice-presidente da Corte, Edson Fachin. “Ao
Direito o que é do Direito, e à política o que é da política”, declarou Fachin,
que acrescentou, sabiamente, que, “numa democracia, não cabe ao árbitro
construir o resultado”, ou seja, “o juiz não pode deixar de responsabilizar
quem violou as regras do jogo, mas não lhe cabe dizer quem vai ganhar”.
Essas advertências foram feitas no
aniversário do infame ataque do 8 de Janeiro às sedes dos Três Poderes, e
deixam uma questão incômoda: seriam necessárias se o País gozasse mesmo de
“normalidade plena”?
O duro recado do Banco Central
O Estado de S. Paulo
Copom mostra que não pode controlar sozinho a
inflação. Precisa da colaboração do governo
Na ata da mais recente reunião do Comitê de
Política Monetária (Copom), o Banco Central (BC) enviou um recado taxativo ao
governo que poderia ser resumido em uma frase: sozinho, o BC não terá como
controlar a inflação. E deixou claro que o que mais tem dificultado sua tarefa
são fatores internos, como o ritmo intenso de crescimento da demanda, em
particular o consumo das famílias, estimulado por concessão de crédito,
política fiscal expansionista e mercado de trabalho aquecido.
Enquanto o presidente Lula da Silva, em
negociação com os bancos, busca fórmulas para incrementar ainda mais o crédito
incentivando empréstimos consignados, o Copom adverte para os riscos de uma
economia sobreaquecida e antecipa a possibilidade de descumprimento da meta de
inflação em junho, “sob a nova sistemática do regime de metas”. Como se sabe,
está em vigor o sistema de avaliação contínua e, caso o alvo (com seus
intervalos de tolerância) não seja alcançado por seis meses consecutivos, as
razões precisam ser explicitadas, assim como as medidas e o prazo para
recolocar a inflação na meta.
A ata do Copom – em tom bem mais duro do que
o do comunicado divulgado logo após a reunião de janeiro que elevou em 1 ponto
porcentual a taxa básica de juros, para 13,25% ao ano – acentuou o descompasso
entre as políticas fiscal e monetária que seguem divergentes, quando deveriam
ser “harmoniosas”, com políticas “previsíveis, críveis e anticíclicas”. Sem
rodeios, o documento enfatizou que “o esmorecimento no esforço de reformas
estruturais e disciplina fiscal, o aumento de crédito direcionado e as incertezas
sobre a estabilização da dívida pública têm o potencial de elevar a taxa de
juros neutra da economia, com impactos deletérios sobre a potência da política
monetária”.
No trecho acima está um dos recados mais
veementes passados pelo BC ao governo. Ou seja, sem uma política econômica que
contribua para o controle inflacionário, por mais contracionista que seja, a
política monetária será ineficaz para garantir o poder de compra do real. Ou a
desinflação terá de ser feita a um custo muito alto para a atividade econômica.
Diante de mensagens tão fortes da primeira
reunião comandada por Gabriel Galípolo como presidente do BC, soam impróprias
as declarações de governistas que tentaram colocar integralmente na conta do
antecessor, Roberto Campos Neto, a subida dos juros, incluindo o próprio Lula
da Silva, que disse que seu escolhido não poderia “dar um cavalo de pau em um
mar revolto de uma hora para outra”.
O Copom não deu pistas sobre orientações futuras para os juros além das duas altas de 1 ponto porcentual indicadas na reunião de dezembro, uma em janeiro e outra em março, o que elevará a Selic para 14,25%. Para a reunião de maio houve apenas a citação de que o aperto monetário dependerá da evolução da dinâmica da inflação. Mas o vigor da ata de janeiro torna difícil a Galípolo uma eventual mudança de rota em direção à queda de juros pretendida por Lula. Resta saber se continuará a contar com a complacência do chefe.
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