Folha de S. Paulo
Embora o presidencialismo de coalizão não
tenha morrido, o fato é que o pêndulo da dominância foi se deslocando do
Executivo para o Legislativo
A chapa voltou a subir na praça dos Três
Poderes, nesta semana, com a derrubada do IOF. Nada
surpreendente, em face da decisão do eleitor de escolher um presidente mais à
esquerda e um parlamento bem mais à direita. Mais uma vez o Supremo está no meio
da refrega.
Para alguns cientistas políticos, especialmente estrangeiros, a conjugação entre presidencialismo e multipartidarismo adotada pela Constituição de 1988 tornaria o regime brasileiro ingovernável. O fato é que o chamado presidencialismo de coalizão se demonstrou mais funcional do que se imaginava, permitindo aos presidentes Itamar, FHC, Lula e Dilma 1, governar, sem grandes sobressaltos, por mais de duas décadas.
A conjugação entre habilidade política e
prerrogativas institucionais -como as medidas provisórias, o regime de urgência
ou o contingenciamento de despesas orçamentárias criadas pelos parlamentares-,
conferiu aos referidos presidentes as condições para exercerem certa dominância
sobre o Legislativo, implementando reformas e suas respectivas agendas de
governo.
Esse modelo, no entanto, entrou em crise a
partir de 2013. As vastas manifestações de rua, a crise fiscal, associadas à
Lava Jato, afetaram as engrenagens do modelo, culminando com o controvertido
impeachment de Dilma. Daí em diante o presidencialismo de coalizão nunca mais
foi o mesmo. O presidente Temer, é verdade, operou o sistema, mas no modo semiparlamentar.
Embora o presidencialismo de coalizão não
tenha morrido, o fato é que o pêndulo da dominância foi se deslocando do
Executivo para o Legislativo. A derrubada do IOF, é apenas mais uma etapa desse
processo.
Diversos fatores têm contribuído para essa
mutação. Com a substituição do financiamento privado pelo financiamento público
das campanhas, os partidos se tornaram mais autossuficientes. Aproveitando as
fragilidades de Dilma, Temer e Bolsonaro, os parlamentares foram se
assenhorando do orçamento, em troca de alguma governabilidade, tornando-se cada
vez mais independentes do Executivo.
A primeira consequência dessa nova dinâmica,
aprofundada pela dissintonia ideológica entre Legislativo e Executivo, é que o
parlamento se sente cada vez mais à vontade para maximizar seus próprios
interesses, sem arcar com a correspondente responsabilidade política pelos seus
atos.
A segunda consequência é a ampliação do
protagonismo do Supremo que é convocado pelos próprios partidos políticos ou
setores da sociedade para arbitrar e resolver conflitos que deveriam ter sido
enfrentados pelos Poderes políticos.
O noticiário político dessa semana oferece um
retrato fiel dessa nova dinâmica do sistema político brasileiro. Enquanto o
ministro Flávio Dino se debruça sobre o imbróglio das emendas secretas, criadas
por um parlamento insaciável por recursos, e por esconder sua destinação, os
Congressistas retaliam o Executivo que depende do Supremo para recuperar o
controle sobre o orçamento.
Na mesma toada, no plenário do tribunal, os
ministros decidem sobre a responsabilidade das plataformas em relação aos
conteúdos por elas veiculados, que o Congresso se absteve de resolver, por medo
de retaliação das grandes empresas de tecnologia.
Se há algo de positivo em nosso modelo de
separação de Poderes é que ele não tem levado a uma paralisia decisória, como
previam os mais céticos. O lado negativo, no entanto, é que a tensão entre os
Poderes políticos tem demandado um protagonismo cada vez maior por parte do
Supremo.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em
direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes,
2023)
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