domingo, 29 de junho de 2025

Refrega entre Poderes - Oscar Vilhena Vieira*

Folha de S. Paulo

Embora o presidencialismo de coalizão não tenha morrido, o fato é que o pêndulo da dominância foi se deslocando do Executivo para o Legislativo

A chapa voltou a subir na praça dos Três Poderes, nesta semana, com a derrubada do IOF. Nada surpreendente, em face da decisão do eleitor de escolher um presidente mais à esquerda e um parlamento bem mais à direita. Mais uma vez o Supremo está no meio da refrega.

Para alguns cientistas políticos, especialmente estrangeiros, a conjugação entre presidencialismo e multipartidarismo adotada pela Constituição de 1988 tornaria o regime brasileiro ingovernável. O fato é que o chamado presidencialismo de coalizão se demonstrou mais funcional do que se imaginava, permitindo aos presidentes Itamar, FHC, Lula e Dilma 1, governar, sem grandes sobressaltos, por mais de duas décadas.

A conjugação entre habilidade política e prerrogativas institucionais -como as medidas provisórias, o regime de urgência ou o contingenciamento de despesas orçamentárias criadas pelos parlamentares-, conferiu aos referidos presidentes as condições para exercerem certa dominância sobre o Legislativo, implementando reformas e suas respectivas agendas de governo.

Esse modelo, no entanto, entrou em crise a partir de 2013. As vastas manifestações de rua, a crise fiscal, associadas à Lava Jato, afetaram as engrenagens do modelo, culminando com o controvertido impeachment de Dilma. Daí em diante o presidencialismo de coalizão nunca mais foi o mesmo. O presidente Temer, é verdade, operou o sistema, mas no modo semiparlamentar.

Embora o presidencialismo de coalizão não tenha morrido, o fato é que o pêndulo da dominância foi se deslocando do Executivo para o Legislativo. A derrubada do IOF, é apenas mais uma etapa desse processo.

Diversos fatores têm contribuído para essa mutação. Com a substituição do financiamento privado pelo financiamento público das campanhas, os partidos se tornaram mais autossuficientes. Aproveitando as fragilidades de Dilma, Temer e Bolsonaro, os parlamentares foram se assenhorando do orçamento, em troca de alguma governabilidade, tornando-se cada vez mais independentes do Executivo.

A primeira consequência dessa nova dinâmica, aprofundada pela dissintonia ideológica entre Legislativo e Executivo, é que o parlamento se sente cada vez mais à vontade para maximizar seus próprios interesses, sem arcar com a correspondente responsabilidade política pelos seus atos.

A segunda consequência é a ampliação do protagonismo do Supremo que é convocado pelos próprios partidos políticos ou setores da sociedade para arbitrar e resolver conflitos que deveriam ter sido enfrentados pelos Poderes políticos.

O noticiário político dessa semana oferece um retrato fiel dessa nova dinâmica do sistema político brasileiro. Enquanto o ministro Flávio Dino se debruça sobre o imbróglio das emendas secretas, criadas por um parlamento insaciável por recursos, e por esconder sua destinação, os Congressistas retaliam o Executivo que depende do Supremo para recuperar o controle sobre o orçamento.

Na mesma toada, no plenário do tribunal, os ministros decidem sobre a responsabilidade das plataformas em relação aos conteúdos por elas veiculados, que o Congresso se absteve de resolver, por medo de retaliação das grandes empresas de tecnologia.

Se há algo de positivo em nosso modelo de separação de Poderes é que ele não tem levado a uma paralisia decisória, como previam os mais céticos. O lado negativo, no entanto, é que a tensão entre os Poderes políticos tem demandado um protagonismo cada vez maior por parte do Supremo.

*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)

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