O Globo
Durante a guerra fria, os Estados Unidos
derrubaram 70 governos, em operações abertas ou clandestinas
Um amigo editor de uma revista portuguesa
pediu um artigo sobre o Brasil. Escrevi a respeito da crise, mostrando o que o
país tem de bom para garantir sua soberania: florestas, água, minerais
estratégicos, alimentos, uma lista invejável.
Depois de enviar o artigo, me dei conta de que não abordei como deveria o que me parece a grande novidade na situação política nacional. Parece que ela mudou completamente. Estávamos acostumados com a polarização entre o governo e a oposição bolsonarista. De repente, entrou em cena um ator gigantesco: o governo americano de Donald Trump. A oposição bolsonarista deixou sua condição de protagonista e se tornou coadjuvante. Ela celebra ações americanas e se dedica a anunciar novas incursões punitivas. Tarifaço, supressão de vistos, Lei Magnitsky, e alguns deliram com a possibilidade de fechamento de bancos e desligamento do Waze. Parecem meninos que se agarram na perna do irmão mais velho que vai brigar por eles.
O resultado disso é que o problema da
soberania nacional se tornou decisivo e deverá influenciar fortemente as
próximas eleições. Isso fortalece o favoritismo de Lula. A intromissão
americana no Brasil é rejeitada pela maioria, ao contrário da Venezuela, onde
há uma ditadura, e a eleição foi roubada.
Se o risco de o governo perder as eleições se
tornou menor, outros riscos se apresentam no horizonte. Um deles é fantasiar a
China como aliado solidário, esquecendo que se trata de uma potência com seus
interesses estratégicos bem definidos. No momento, a China negocia com os Estados Unidos a
compra de soja americana, o que seria uma perda para os exportadores
brasileiros. O ideal para o Brasil é diversificar, fechando o acordo
Mercosul-Europa e ajustando sua posição ainda meio ambivalente sobre a guerra
na Ucrânia.
Outro perigo é confundir governo Trump com os
Estados Unidos e se perder num antiamericanismo estéril. Nem todos concordam
com a política para imigrantes, universidades, cientistas, nem com como Trump
atropela o sistema legal do país. A verdade é que a resposta ainda é tímida,
houve alguma capitulação, mas há uma lenta tomada de consciência.
Um terceiro perigo é entender a questão da
autonomia nacional como algo principalmente retórico, subestimando os passos
objetivos para que ela possa se afirmar. Há muito o que fazer em infraestrutura
digital, redes de alta velocidade, satélites, data centers. O cargo de ministro
das Comunicações não pode ser mais algo que se barganhe com o Centrão, como se
não tivesse nenhuma importância estratégica.
Finalmente, uma vez que o tema é muito vasto,
é preciso tomar consciência da dimensão do adversário que entrou em cena. É
simplesmente o mais poderoso do mundo. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos
derrubaram 70 governos, em operações abertas ou clandestinas. Trump assinou um
decreto autorizando o Exército a fazer operações contra o tráfico nos países
latino-americanos, independentemente da autorização de governos. Logo teremos
problemas na fronteira norte, com a Venezuela.
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