terça-feira, 19 de agosto de 2025

A presença americana muda a política no país, por Fernando Gabeira

O Globo

Durante a guerra fria, os Estados Unidos derrubaram 70 governos, em operações abertas ou clandestinas

Um amigo editor de uma revista portuguesa pediu um artigo sobre o Brasil. Escrevi a respeito da crise, mostrando o que o país tem de bom para garantir sua soberania: florestas, água, minerais estratégicos, alimentos, uma lista invejável.

Depois de enviar o artigo, me dei conta de que não abordei como deveria o que me parece a grande novidade na situação política nacional. Parece que ela mudou completamente. Estávamos acostumados com a polarização entre o governo e a oposição bolsonarista. De repente, entrou em cena um ator gigantesco: o governo americano de Donald Trump. A oposição bolsonarista deixou sua condição de protagonista e se tornou coadjuvante. Ela celebra ações americanas e se dedica a anunciar novas incursões punitivas. Tarifaço, supressão de vistos, Lei Magnitsky, e alguns deliram com a possibilidade de fechamento de bancos e desligamento do Waze. Parecem meninos que se agarram na perna do irmão mais velho que vai brigar por eles.

O resultado disso é que o problema da soberania nacional se tornou decisivo e deverá influenciar fortemente as próximas eleições. Isso fortalece o favoritismo de Lula. A intromissão americana no Brasil é rejeitada pela maioria, ao contrário da Venezuela, onde há uma ditadura, e a eleição foi roubada.

Se o risco de o governo perder as eleições se tornou menor, outros riscos se apresentam no horizonte. Um deles é fantasiar a China como aliado solidário, esquecendo que se trata de uma potência com seus interesses estratégicos bem definidos. No momento, a China negocia com os Estados Unidos a compra de soja americana, o que seria uma perda para os exportadores brasileiros. O ideal para o Brasil é diversificar, fechando o acordo Mercosul-Europa e ajustando sua posição ainda meio ambivalente sobre a guerra na Ucrânia.

Outro perigo é confundir governo Trump com os Estados Unidos e se perder num antiamericanismo estéril. Nem todos concordam com a política para imigrantes, universidades, cientistas, nem com como Trump atropela o sistema legal do país. A verdade é que a resposta ainda é tímida, houve alguma capitulação, mas há uma lenta tomada de consciência.

Um terceiro perigo é entender a questão da autonomia nacional como algo principalmente retórico, subestimando os passos objetivos para que ela possa se afirmar. Há muito o que fazer em infraestrutura digital, redes de alta velocidade, satélites, data centers. O cargo de ministro das Comunicações não pode ser mais algo que se barganhe com o Centrão, como se não tivesse nenhuma importância estratégica.

Finalmente, uma vez que o tema é muito vasto, é preciso tomar consciência da dimensão do adversário que entrou em cena. É simplesmente o mais poderoso do mundo. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos derrubaram 70 governos, em operações abertas ou clandestinas. Trump assinou um decreto autorizando o Exército a fazer operações contra o tráfico nos países latino-americanos, independentemente da autorização de governos. Logo teremos problemas na fronteira norte, com a Venezuela.

 

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