terça-feira, 19 de agosto de 2025

Sebastião voltou e adubou a terra, por Míriam Leitão

O Globo

Em cerimônia emocionante, as cinzas de Sebastião Salgado foram misturadas à terra onde se plantou uma peroba, em Minas

Sebastião Salgado voltou à terra onde nasceu, Aimorés, Minas Gerais, encostado no Espírito Santo. “Hoje vai ser a derradeira missão do Tião”, disse Lélia, esposa dele por 61 anos. “Ele vai ser o adubo da planta maravilhosa que vai ser essa peroba. Tenho certeza de que essa peroba vai ser a mais bonita, a maior, a mais alta aqui dessa floresta. E de longe as pessoas vão dizer, ‘está lá o Sebastião Salgado’. Como diria nosso grande amigo Saramago, Tião não voou para as estrelas, ele foi para a terra porque ele era da terra”.

As cinzas do grande fotógrafo e humanista foram misturadas à terra usada para o plantio da árvore, numa clareira bem em frente à mata que ele e Lélia plantaram na fazenda Bulcão. Os filhos, Juliano e Rodrigo, a viúva e a neta plantaram a muda de peroba, uma das rainhas da Mata Atlântica. A fazenda da família, na qual Sebastião viveu sua infância, estava completamente degradada quando ele a herdou. Lélia teve então a ideia de plantar uma floresta. Hoje, o Instituto Terra é um exemplo de que restaurar é possível e abriga três milhões de árvores.

O grupo que se reuniu na cerimônia dizia muito da capacidade de Sebastião de unir pessoas. Havia amigos da Europa e dos Estados Unidos. Estavam os ministros Mauro Vieira, das Relações Exteriores, Herman Benjamin do STJ e dirigentes do MST. Artistas como Marcos Palmeira, Mariana Ximenes e o presidente da COP, embaixador André Corrêa do Lago. Ambientalistas, fotógrafos, a presidente da Funai, Joenia Wapichana e João de Orleans e Bragança.

— A pessoa usou o seu instrumento de trabalho para defender os povos originários. Por isso, hoje eu vim aqui. Quis vir de carro de Vitória até Aimorés para refazer o mesmo percurso que ele fazia — disse Joenia.

O último grande trabalho da vida de Sebastião, que durou dez anos, foi fotografar povos indígenas para a exposição Amazônia.

Seu método de trabalho era ir para as aldeias e ficar por semanas ou meses, para captar o modo de vida, a cultura, a beleza de cada povo. Os primeiros povos brasileiros sempre estiveram no foco da sua câmera.

Sebastião mostrou os encantos e as feridas da Terra. A luta dos trabalhadores, os povos em migração, as belezas extremas do planeta, a exuberância humana e florestal da Amazônia.

— Há quem diga que no Brasil sempre faltou especialistas que explicassem outros países, ou até o Brasil para outros países. Sebastião é o único brasileiro que conseguiu explicar o mundo para o mundo — disse, nas rodas de conversa, o embaixador Corrêa do Lago.

Herman Benjamin foi chamado para falar e disse que melhor era dar voz ao próprio Sebastião. E leu uma mensagem que o fotógrafo mandou para ele, agradecendo o artigo “O tradutor fotográfico dos invisíveis”. Benjamin escreveu este artigo, de uma página, para O GLOBO, em 2024, quando Sebastião fez 80 anos. Sebastião disse que se sentiu compreendido no que buscou, na sua solidão de fotógrafo. E fez um balanço da vida que viveu.fotos

“Não foi fácil e, ao mesmo tempo, foi lindo e extremamente duvidoso, se estava no caminho certo do respeito e do amor. Foi como passar uma vida inteira caminhando sobre o fio de uma navalha sem me ferir. E foi ao mesmo tempo rico e enorme em todas as experiências; eu ia com o coração cheio e voltava com toda uma vida plena. Hoje com a experiência e a felicidade dos meus 80 anos, me sinto um privilegiado de ter tido esta oportunidade de experimentar de tudo e de ter duvidado de mim mesmo durante toda a minha vida.”

O filho Juliano explicou porque era ali que seu pai descansaria.

— Ele aprendeu a ver o mundo exatamente deste lugar. Ele olhava para o céu, com essas nuvens que estão começando a se formar aqui hoje. Ele olhava para o céu, no contraluz, e foi assim que seu olhar se formou. Assim ele enxergava o mundo. Sebastião saiu dessa fazenda com 15 anos, foi para Vitória, se formou como economista, encontrou a Lélia e juntos foram para São Paulo e depois para a França, onde aconteceu a história que todo mundo sabe.

A história imensa de Lélia e Sebastião ampliou o olhar do mundo sobre si mesmo, e ensinou muito ao Brasil. A história não acabou, avisaram Lélia e Juliano. O Instituto Terra continua.

Os amigos jogavam pétalas sobre o pé da peroba plantada, quando o som transmitiu a voz do próprio Sebastião cantando, em um áudio que mandara para o amigo Afonso Borges: “Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar…”

 

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