Pode-se discutir a conveniência da decisão de Dino em relação à aplicação da Lei Magnitsky, mas, na essência, ela está correta
Há um entendimento geral, talvez não um consenso, sobre o conceito de soberania, sua origem e desenvolvimento. Trata-se, certamente, de um conceito jurídico-político. Alguns costumam remetê-lo ao mundo antigo e medieval, quando se falava em summa potestas, summum imperium, termos que significavam poder supremo, mas no sentido da preeminência. Podia ser remetido à organização política – Império ou Estado – ou ao governante, notadamente o imperador. Esses termos teriam sido os genitores do conceito de soberania.
De modo geral, entende-se que é um conceito
coetâneo ao Estado Moderno, mas o seu desenvolvimento remete à Idade Média e
está imbricado com as disputas entre o Império e a Igreja. Ele envolve
elaborações, de um lado, de pensadores como Tomás de Aquino, Marsílio de Pádua
e Guilherme de Ockham e, de outro, de pensadores como Nicolau Maquiavel, Jean
Bodin e Thomas Hobbes. Ressalvadas todas as contribuições e parentescos, a
paternidade do conceito é atribuída mesmo a Bodin (1530–1596) e,
subsidiariamente, a Hobbes. Bodin afirma que “por soberania entende-se aquele
poder absoluto e perpétuo que é próprio do Estado”.
A soberania requer alguém que a exerça e este
pode ser um indivíduo (o monarca), um grupo (república representativa) ou todo
o povo, como na vontade geral de Jean-Jacques Rousseau. Bodin e Hobbes preferem
o monarca absolutista. No século seguinte a Bodin, o francês Luís XIV, o “Rei
Sol”, tornou-se a expressão máxima do absolutismo monárquico e da encarnação da
soberania com a afirmação de “o Estado sou eu”.
A construção do Estado Moderno passa por uma
série de acontecimentos. Alguns historiadores e pensadores remetem o início
desse processo ao século XIV. A maioria aponta para o século XVI, contemplando
uma série de episódios que começam com a Reforma Protestante em 1517 e
transpassam os séculos seguintes. Há, porém, um marco simbólico da consolidação
e afirmação do Estado Moderno: a Paz de Westfalia, ocorrida em 1648, após a
Guerra dos Trinta Anos, que varreu a Europa.
O tratado estabeleceu o início da regulação
internacional moderna entre os Estados e foi o marco decisivo da afirmação do
Estado-nação soberano em determinado território e sobre uma população. Essa
soberania implicava a não ingerência em assuntos internos por motivos religiosos,
políticos ou guerras civis facciosas. Afirmava também a supremacia do poder
soberano do Estado sobre a Igreja, configurando a separação deles.
As democracias modernas são herdeiras desse
conceito de soberania, vinculando-o ao povo e transmutando-o nos corpos
representativos, como os entes que exercem esse poder no Estado. No sentido
amplo do termo, soberania passou a significar o poder de mando que decide, em
última instância, no âmbito de uma sociedade política.
A soberania moderna comporta um duplo aspecto:
um interno e outro externo. Internamente, ela abarca o poder de coerção, a
mediação e regulação dos conflitos. Externamente, diz respeito aos problemas da
paz e da guerra e das interfaces com o direito internacional. Se, no nível
externo, a soberania afirma-se em princípios e relações de igualdade entre
Estados, no nível interno ela se expressa numa condição de supremacia,
estabelecendo, além de direitos, relações de obrigação e obediência.
A tentativa de ingerência do governo dos EUA
em assuntos internos do Brasil, incluindo o Supremo Tribunal Federal e o
ministro Alexandre de Moraes, toca nesse entendimento. A conclusão é
inequívoca: as decisões de Donald Trump agridem a soberania do Estado
brasileiro. A aplicação da Lei Magnitsky é uma clara agressão, na medida em que
ela não está prevista em nenhum tratado ratificado pelo Brasil nem é evocada
por qualquer tribunal internacional com o qual o Brasil mantenha convênios e
acordos. A lei não tem jurisdicionalidade sobre o território ou a população brasileira.
Dessa forma, quando Moraes afirma que não cederá um milímetro em relação às demandas,
pressões e agressões do governo Trump, relativas ao julgamento de Bolsonaro e
dos atos golpistas, está simplesmente cumprindo os mandamentos constitucionais
e salvaguardando a soberania.
O ministro Flávio Dino adota a mesma postura ao reafirmar que nenhuma determinação legal
estrangeira pode, em termos jurídicos, ter validade no Brasil sem estar
prevista em tratados ratificados pelo País e sem a anuência das instâncias
judiciárias nacionais. É possível discutir a conveniência, a forma, o momento e
o caminho pelo qual Dino proferiu essa decisão. No entanto, no conteúdo e na
essência, sua determinação está correta e preserva tanto a Constituição quanto
a soberania do Brasil. O caminho pode ser ajustado, mas a determinação precisa
ser reafirmada. •
Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital,
em 27 de agosto de 2025.
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