sábado, 23 de agosto de 2025

Um pacto além do tarifaço, por Cristovam Buarque*

É preciso atrair a oposição democrática

Em 1931, o governo de Getúlio Vargas respondeu à queda nas exportações comprando e queimando o café que sobrava, mas não criou um mercado interno. Quase cem anos depois, o governo Lula acerta nas medidas conjunturais, mas errará se não olhar para o futuro além do tarifaço: o caminho é atrair as lideranças da oposição democrática na construção de um pacto pelo mercado interno. Talvez agora, enfim, possamos corrigir a falha histórica que brotou com a escravidão, a chaga que nos humilhava: o desprezo pela demanda potencial de nosso imenso contingente populacional. Embora o PIB brasileiro seja pouco dependente das exportações, ele fica limitado em decorrência do consumo interno restrito à pequena parte da população com renda suficiente. No máximo, 30% dos 210 milhões têm o necessário poder de compra para tornar a economia dinâmica e sustentável.

O tarifaço de 2025, imposto por Donald Trump, exige táticas imediatas de mitigação das perdas — ampliação e diversificação de nossas exportações; medidas fiscais e financeiras de apoio aos setores exportadores —, mas também uma estratégia de expansão do mercado interno, até que alcance a totalidade da população. Para tanto, é necessário sairmos de duas armadilhas atávicas: a renda média baixa e a elevada concentração da renda social. Isso requer um pacto nacional para quebrar o burocratismo e o protecionismo que emperram a eficiência, assegurar estabilidades jurídica, fiscal e monetária, formar um Estado eficiente livre do populismo eleitoral, abrir a economia ao comércio internacional e, sobretudo, qualificar a população para enfrentar os desafios técnicos, culturais e políticos da contemporaneidade.

“É impossível dar o salto que o Brasil necessita com 10 milhões de adultos analfabetos plenos”

Assim como era impossível aumentar a produtividade e distribuir renda em um sistema escravocrata, hoje é impossível dar esse salto com 10 milhões de adultos analfabetos plenos e mais de 100 milhões que, mesmo sabendo ler, permanecem sem conhecimento para enfrentar os desafios da economia moderna. O tarifaço, portanto, exige medidas urgentes — que o governo já está adotando, assim como em 1931 comprava e queimava café —, mas nos alerta para a necessidade de diversas reformas estruturais e, sobretudo, para não mais adiar a garantia de uma educação com qualidade e equidade, capaz de preparar todos os brasileiros para as exigências do mundo moderno: falar e escrever bem o idioma português; ser fluente em pelo menos um dos idiomas usados internacionalmente; conhecer os fundamentos da matemática, ciências, geografia, história, artes; debater com competência os principais temas atuais; saber usar as ferramentas digitais; dispor de pelo menos um ofício que permita emprego e renda; adquirir solidariedade com os vizinhos, com a humanidade e com a natureza; ser capaz de obter educação continuada até o final da vida nestes tempos de incertezas e rápida mutação, se quiser disputar vaga em curso superior de qualidade em condições iguais com todo brasileiro, independentemente da renda e do endereço.

Além da prisão atávica de limitar o futuro do país ao curto prazo da conjuntura econômica, o que nos impede de construir o pacto pelo mercado interno do tamanho do Brasil é não reconhecermos a relevância da educação de base para toda a população. Sem isso, a produtividade não cresce, a renda não se distribui, andamos para trás — à mercê de ameaças como o tarifaço de Trump.

*Publicado em VEJA de 22 de agosto de 2025, edição nº 2958


 

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