Em "O homem que sabia javanês" Lima Barreto utiliza-se da Indonésia e da "língua malaia" como metáforas para criticar o que rotulou como "o Brasil imbecil e burocrático". Mas a Indonésia nos interessa também como modelo corrupto de presidencialismo de coalizão. Antes restrita aos meios acadêmicos, esta expressão popularizou-se para designar o arranjo institucional no qual o presidente governa apoiado por base multipartidária, com a qual partilha recursos de poder. Para alguns, ele é sinônimo de divisão do butim entre elites políticas. Outros enxergam nele o esteio da governabilidade, uma espécie de pedágio a ser pago para alcançá-la. Ocorre que presidencialismos de coalizão não constituem novidade, tampouco representam algo especificamente brasileiro, nem muito menos salvo conduto para malfeitos.
Afonso Arinos, em 1948, já chamava atenção para o novo presidencialismo que surgia: "nós praticamos um sistema talvez único no mundo: o presidencialismo com representação proporcional, de onde emergiram vários partidos fortes. A situação do presidente da República se aproxima mais, politicamente, dos chefes de Estado do parlamentarismo europeu do que do presidente dos EUA".
O presidencialismo de coalizão é uma "licença para roubar"?
Seu vaticínio quanto à suposta especificidade brasileira falhou. Na América Latina governos de partido único são a exceção e não a regra; apenas Costa Rica e México se enquadram nesta classificação. Um terço dos países da região tem tido apenas governos de coalizão e quatro apresentam uma mistura de governos de coalizão e de partido único. O Chile representa o modelo virtuoso, não corrupto deste arranjo institucional. Seu lugar no ranking da Transparência Internacional (21º) é mais elevado do que o dos EUA (22º)!
No polo oposto, a Indonésia é o paradigma da versão viciosa do modelo. Com 240 milhões de habitantes e marcada por clivagens étnicas profundas, o país é candidato natural a turbulências. E não só políticas. Em 1998, no olho do furacão da crise asiática, a crise derrubou o governo de Suharto, no poder havia 31 anos. Mas desde 2004, o "boom" de commodities tem garantido crescimento e uma coalizão de cinco partidos tem garantido uma surpreendente estabilidade. E como no Brasil, muitos sustentam que o preço a ser pago por ela é a elevadíssima corrupção (110º no ranking da TI). A "fórmula" do sucesso indonésio é o "presidencialismo de coalizão ao estilo javanês". E trata-se efetivamente de uma fórmula matemática acordada pelas lideranças partidárias: os cargos na administração - a começar pelo de presidente (que inicialmente era eleito pelo parlamento) - foram pontuados: presidente (10 pontos), vice-presidente (6), ministro da fazenda (4) ou do interior (3), diretores gerais (0,5) e assim por diante. Os cargos foram distribuídos de acordo com o percentual de cadeiras dos partidos.
"Prima facie", o presidencialismo de coalizão brasileiro assemelha-se ao do gigante asiático, mas difere deste em um aspecto crucial: as regras do jogo eram institucionalizadas. No Brasil a distribuição do portfólio ministerial e dos cargos de primeiro escalão é discricionária. Ela fica ao sabor do estilo de gerenciamento do Executivo. Em seu primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não sabia javanês, engatinhava na língua: distribuiu cargos, mas não seguiu nenhuma fórmula ou proporcionalidade. Pelo contrário o PT monopolizou parte importante dos cargos no governo. No segundo, o presidente aprendeu javanês. Mas as regras não estão "escritas em pedra". A presidente Dilma ainda esbarra na "língua malaia" ou seu estilo de gerenciamento de coalizão é diferente?
Acho estas duas hipóteses pouco persuasivas e, se verdadeiras, explicam parcialmente a volatilidade ministerial recente. Afinal ela era o maestro da orquestra do arranjo anterior. Outras hipóteses me parecem mais plausíveis. A primeira é que os custos políticos da corrupção tornaram-se proibitivamente altos. Ao legalizar o que antes era ilegal, o recém-aprovado Regime Diferenciado de Contratações Públicas que entre outras coisas torna secreto o valor dos investimentos visa reduzir tais custos. Mas a opinião pública passou a ver a concessão de ministérios de porteira fechada como licença para roubar.
A segunda é que a extensão da corrupção passou a representar risco sistêmico. Ela passou a ameaçar a eficiência do governo em áreas críticas como as obras de infraestrutura da Copa. As reformas citadas objetivam também aumentar a eficiência dos projetos. A terceira é que a exposição internacional do país se ampliou enormemente, e acompanhou a expansão da economia: antes restritos à agenda doméstica, os escândalos impõem "custos reputacionais" sem precedentes ao governo. A quarta é que tais escândalos servem a estratégia de "blame shifting" da presidente - eximem-na de responsabilidades com um bônus adicional importante de livrá-la do estoque de ministros que não escolheu.
O Brasil tem sido considerado um modelo institucional bem sucedido. Em geral, as avaliações positivas centram-se em um aspecto: a capacidade do sistema em produzir governabilidade, este conceito escorregadio com o qual busca-se definir a ausência de crises. Presidentes minoritários e sem base estável de sustentação evocam o espectro de cesarismo e crise institucional. A tolerância aos desmandos origina-se daí. Supermaiorias hipertrofiadas levam, no entanto, à paralisia decisória, à perda da capacidade de dizer não e à recusa ao enfrentamento que gere custos. Com isso aniquila-se a capacidade de transformação em um país em que quase tudo deve ser mudado. Entre o modelo Indonésio e o chileno, o Brasil deve optar por este último.
Marcus André Melo é professor da UFPE, foi professor visitante da Yale University, é "Fellow" da John Simon Guggenheim Foundation
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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