- O Estado de S. Paulo
O diagnóstico acerca do déficit de representação do sistema político brasileiro é bastante difundido na opinião pública. As expressões de descontentamento com os partidos políticos, entre a opinião, pública são recorrentes. De fato, as evidências empíricas mostram declínio na taxa de identificação partidária no Brasil.
Em boa medida, os movimentos sociais mais recentes apontaram para uma versão tupiniquim do slogan "que se vayan todos". Os números do Latinobarómetro mostram que 34% dos brasileiros concordam com a afirmação de que a democracia pode funcionar sem os partidos políticos. O Congresso Nacional brasileiro é talvez a instituição campeã no quesito desconfiança.
Se a constatação desse mal-estar da sociedade com relação ao sistema político brasileiro é razoavelmente trivial, a leitura desse processo é alvo de relativa discordância entre atores políticos no que tange às causas, interpretações e soluções para a superação de tal mazela da democracia em nosso país.
Minha leitura é que o termo "crise" no que se refere aos partidos políticos contribui para reforçar essa percepção de insatisfação social com as legendas partidárias. Essa leitura reflete menos uma visão positiva das legendas e mais a constatação de que as demandas em torno dos partidos estão superestimadas. A decepção se explica pelo descaso entre expectativas irreais, em boa medida, estilizadas em torno de um processo político ideal.
Dito de outro modo, a crítica voraz aos partidos políticos expressa, no limite, um mal-estar com os mecanismos institucionais do governo representativo moderno. Ela reflete, na verdade, um crescente questionamento por parte do soberano (eleitor) com relação ao mecanismo eleitoral como forma principal de delegação do poder político. Mais do que um estado "excepcional", esse mal-estar com os partidos é parte constitutiva da construção de um regime representativo. Os limites dos partidos políticos na construção da representação são crônicos.
Essa interpretação questiona a associação entre o status dos partidos perante o eleitorado e a qualidade da democracia no Brasil. Tal insatisfação é menos o resultado de problemas da democracia no País (embora existam abundantes) e mais a expressão de um movimento do eleitorado de busca por maior espaço no ambiente político.
De todo modo, pensar o espaço dos partidos, no Brasil, é pensar os dilemas da democracia e da representação política. Esse mal-estar é o resultado dos incentivos gerados pelo sistema político combinado com base social dinâmica, que busca aumentar a sua influência em instâncias decisórias.
Os atores políticos relacionam-se de forma ambígua no processo democrático. De um lado, eles são rivais no plano eleitoral e competem pelo mesmo mercado político. De outro lado, precisam cooperar no que diz respeito ao processo decisório para garantir a formulação das políticas públicas, em resposta às demandas da sociedade.
Esse paradoxo aumenta o estranhamento do eleitor quanto ao processo político, especialmente no momento de formação das coligações partidárias. Nesse aspecto, não é raro que partidos e políticos rivais se associem em função de seus interesses eleitorais. Aos olhos do eleitor, todavia, o que é resultado de um cálculo racional de políticos profissionais se torna uma composição absolutamente esdrúxula.
Pode-se dizer que a principal angústia dos eleitores com a democracia está relacionada à incapacidade da sociedade de controlar as ações dos seus representantes. Há uma enorme distância entre o exercício do voto e a produção das políticas públicas. A "vontade do eleitor" se perde entre diferentes instâncias governamentais e órgãos burocráticos. O custo de acompanhar a complexidade do funcionamento das instituições é quase proibitivo. O resultado é o enorme espaço para a perda de agência por parte dos representados.
A periodicidade dos mandatos é insuficiente para o eleitor exercer controle sobre seus representantes. O processo de representação política é complexo. Políticos emitem sinais durante a campanha de quais serão suas políticas. O passo seguinte é a execução dessas ideias ao longo do mandato. A eleição seguinte representaria o momento da prestação de contas.
O arcabouço institucional brasileiro contribui para reforçar tais dilemas. No plano eleitoral, a combinação entre voto pessoal (lista aberta) e distritos de elevada magnitude inibe a construção de identidades partidárias coletivas. Nas eleições para cargos no Executivo, a lógica do sistema majoritário tende a se aproximar bastante das mensagens dos diferentes candidatos. Os temas mais polêmicos e controversos tendem a ser evitados. No plano decisório, o presidencialismo de coalizão dificulta o monitoramento e a responsabilização dos diferentes partidos. A barganha política típica dos governos de coalizão dispersa a responsabilização política.
O modelo de representação brasileiro está apoiado numa delegação de poder bastante ampla pelo eleitorado. A troca entre eleitores e a classe política é favorável às elites políticas. Os partidos têm o monopólio da oferta de representantes e definem as regras que condicionam a representação política. A sociedade atual demanda maior participação na construção das "vontades", objeto da representação.
Benjamin Constant, em meados do século 19, já dizia que a "liberdade dos modernos" estaria na dedicação à sua vida privada e, por consequência, à delegação dos assuntos públicos. Os movimentos atuais sinalizam, contudo, um desejo, e descontentamento, de maior oxigenação da política no Brasil. O desafio para a democracia brasileira é combinar novos canais de expressão de soberania popular com a racionalização e eficiência da tomada de decisão.
Rafael Cortez é doutor em Ciência Política e analista senior da Tendências Consultoria
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