• Ajuntamento de corporações e nepotismo sucessor
- Valor Econômico
Uma visita a arquivos sobre o Parlamento de outros tempos, esporte de fim de férias e começo de campanha eleitoral, conduz à reflexão: o cenário das candidaturas de hoje não autoriza a esperança no resgate do conceito real de representação. O povo continuará sem pai nem mãe na Câmara e no Senado, que permanecerão no velho modelo da defesa dos interesses corporativos, no privilégio ao nepotismo, no descaso à ideologia, na ausência do exercício da política pelos princípios, pelos conceitos, pelos critérios.
O Senado Federal editou, há cerca de 15 anos, em disco e em livro, o que chamou de Grandes Momentos do Parlamento Brasileiro. Folheando aleatoriamente o volume II, encontram-se sessões plenárias de defesa candente do parlamentarismo por José Maria Alckmin, de análise política e econômica do Brasil por Almino Afonso, um protesto formal contra as reformas de João Goulart, o aprofundamento da situação do Legislativo diante das evoluções mundiais por Petronio Portella, a insatisfação de Paulo Brossard com o projeto de anistia, considerações sobre o problema demográfico do Brasil e da até hoje atual imprevidência das autoridades no tocante às questões energéticas feita por Roberto Campos.
No mesmo volume, temos ainda Afonso Arinos falando em nome dos seus pares para encerrar a Constituinte, Fernando Henrique Cardoso despedindo-se do Senado em grande estilo para assumir a Presidência da República, Antonio Carlos Magalhães externando preocupações com o funcionamento precário da Justiça e Darcy Ribeiro em exaustivo trabalho de relatar o projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o alicerce da modernização do sistema brasileiro de ensino. E muito mais entre essas escolhas aleatórias.
Não se trata de saudosismo extemporâneo do grande tribuno de antigamente, ou de nostalgia da retórica, do discurso que honrava a língua portuguesa. Provavelmente, se houvesse orador, hoje, ele enviaria seu emocionante pronunciamento pela rede.
Trata-se de saudade das teses e do método. Trata-se da representatividade. De lembrar que o Congresso já teve esses políticos, esses assuntos, essas preocupações. Havia concessões à demagogia, ao coronelismo da política regional, mas o Parlamento era integrado por políticos que nutriam outros políticos, líderes da vida brasileira passaram por ali atuantes. Registre-se a história, não é só de Joaquim Nabuco ou Rui Barbosa de quem se sente falta, mas de seus sucessores no pensamento sobre o Brasil.
Pode ter sido em nome da democracia ou seja lá do que for, pode ser porque o Congresso se abriu a todas as camadas ou porque houve um momento de mudança abrangente da política no sentido de esfacelar os partidos. Sem contar que o Executivo tomou de assalto o Legislativo ao governar por Medidas Provisórias e fugir do debate parlamentar conclamando plebiscitos e conselhos populares em seu lugar, o Congresso passou a ser um ajuntamento de corporações, uma soma dos netos, dos filhos dos pais, o nepotismo sucessor que dispensa vocação, competência ou ideologia.
O sindicalista elege-se para pessoalmente defender seus interesses; o empresário conduz as reivindicações da classe; o dirigente do sindicato dos trabalhadores na área faz as leis da Educação. As questões são sérias, exigem técnica e conhecimento na sua elaboração, mas no Parlamento se consomem no amadorismo.
Não pode haver eficácia em um sistema em que cada um vai lá advogar sua causa, quando é preciso encontrar quem a vocalize. Corrigir a deformação da representação, tarefa impossível no modelo corporativo, onde brigam por seu naco o delegado, o religioso, o empresário, o sindicalista, o que defende seu culto e não os princípios. A Lei de Diretrizes e Bases foi motivo de grandes debates da Educação, sob a liderança de Darcy Ribeiro, mas nunca mais se fizeram ouvir os filósofos, os pensadores da Educação. Não é com a fixação de um percentual de gastos obrigatórios que o país resolverá seus problemas de identidade.
Nas nações que ainda preservam sua representação verdadeira, a discussão parlamentar se dá em torno de princípios, de grandes teses. Um tema como o pacto federativo, por exemplo, um dos maiores problemas insolúveis brasileiros, técnica e politicamente desconhecido de parlamentares em geral, tem que incluir desde o conceito de município à definição de responsabilidades, aos fundamentos da Constituição. Ninguém liga para isso.
O atual começo oficial de campanha, que pode ser assim considerado dada a situação imutável dos candidatos durante todo o primeiro semestre de campanha de fato, deve ser um bom momento para pensar o assunto. Campanha morna, candidatos procurando sensibilizar a opinião pública. Mas é preciso desentortar a inversão feita: eles vão perscrutar as pesquisas de opinião para ver o que o povo quer, onde está sua questão fundamental.
Não é o eleitor quem deve dar o caminho para a Saúde, ele não sabe. É o líder político, depois de definir os princípios. Quem quiser que o siga.
Enquanto isso, na tarde de ontem, no Congresso, seu presidente, Renan Calheiros, coveiro da CPI do Senado, que embromou o quanto pode para tudo ficar ao gosto do governo, maior cabo eleitoral da candidatura de seu filho ao governo de Alagoas, que acochambrou-se com o partido protagonista do teatrão montado para apurar prejuízos na compra de refinaria pela Petrobras, anunciava outra comissão. Desta vez de sindicância para investigar responsabilidades pelas aulas dadas a testemunhas que iriam depor. Logo naquela, da marca fantasia, criada mesmo como palco para apresentação do governo. Como se fosse a estreia do treinamento para entrevistas e inquirições.
Condenar essa prática, diante da forma como foi montada a comissão e o que ela deveria apurar, é piada. Cujo desfecho está na expressão originalíssima de Calheiros: a CPI é um instrumento de fiscalização e cumprimento do papel do Legislativo, que não pode sair arranhado.
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