Há método nesta loucura. Por trás dessas intempestivas iniciativas presidenciais que aturdem o observador da cena pública brasileira com a marca da gratuidade e da irrelevância tais como a cadeira para o transporte de crianças nos automóveis, entre tantas outras sobre temas comezinhos, longe de serem manifestações de insanidade se comportam como peças estratégicas nas artes da manipulação da opinião pública no sentido de ocultar a intenção real do governo. Os truques de prestigitação a que assistimos bestificados visam chamar a atenção para os faits divers, concedendo ao governo tempo e liberdade para operar no campo da sua política de estado-maior, qual seja no de intervir no DNA da nossa sociedade desprendendo-a da sua história, valores e tradições. Trata-se de um plano de larga envergadura em que a ação presidencial não se encontra desamparada pois está ancorada nas elites econômicas do país desavindas com o tipo de cultura e de instituições que o país foi sedimentando ao longo do seu processo de modernização, refratário desde sempre a um capitalismo vitoriano avesso à regulamentação.
Concisamente, em nossa formação capitalista as concepções do ultraliberal Spencer não foram recepcionadas, pois foi mais sob a inspiração de Durkheim, um opositor ferrenho da obra desse autor, que a modernização capitalista brasileira encontrou régua e compasso para abrir caminho à sua trajetória afirmativa. A fórmula corporativa, com as claras ressonâncias de Durkheim na obra e na ação de um Oliveira Vianna, ideólogo largamente influente na revolução de 1930, especialmente no Estado Novo, quando presidiu a comissão que elaborou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que foi, como se sabe, a opção institucional implementada para reger as relações capitalistas num momento de emergência da industrialização no país. O corporativismo que veio a tutelar a vida associativa dos trabalhadores legitimou-se entre eles por meio de sua política social. O moderno capitalismo brasileiro nasce, assim, sob o signo da regulamentação.
A presença do Estado sob a ação modernizadora das novas elites políticas não se vai limitar ao controle do mundo do trabalho, incidindo com força no domínio econômico a fim de acelerar o processo da expansão capitalista por meio de empresas estatais nas frentes estratégicas da siderurgia, de início, e depois na do petróleo, da energia e outras atividades essenciais ao suporte do ambicioso projeto de internalizar no país as bases para a edificação de um capitalismo moderno.
O longo ciclo da modernização autoritária vai percorrer distintos regimes, tanto os mais repressivos como aqueles próximos ao liberalismo político, como no governo JK, inclusive o recente regime militar com sua versão de nacional-desenvolvimentismo embalado pela ideologia de país potência, quando toma forma o capitalismo de Estado e se reforça a estatalização da economia. Fora a frustração sentida com o insucesso da tentativa de incluir o país no seleto grupo de países detentores da capacidade de produção de bombas atômicas, um dos grandes feitos do regime militar consistiu na conquista do Oeste como nova fronteira para a expansão capitalista, iniciativa de estado-maior que se iniciou com a construção da estrada transamazônica, sucedida por uma bem cuidada política de colonização. O agronegócio é filho dileto dessa política que alterou drasticamente a paisagem política e social do nosso mundo agrário.
A experiência da modernização autoritária do capitalismo brasileiro vai ser interrompida, quer pela exaustão das forças que o animavam, quer pela resistência em escala crescente dos movimentos sociais e das forças políticas de inclinação liberal que em aliança a ele se opunham. Derrotado politicamente o regime militar, mas não derrubado, abriu-se um difícil processo de negociação entre ele e a oposição, que conduziu a convocação de uma assembleia nacional constituinte, consagrando a Carta de 88 uma modelagem de país que o comprometia com ideais de solidariedade social e da representação política democrática. A rigor, o constituinte procedeu a partir de uma interpretação do nosso processo de modernização, expurgando-o dos elementos autoritários que nele se fizeram presentes. Fixou também procedimentos que viessem a garantir sua eficácia, criando para tanto novos institutos, entre os quais um Ministério Público com o papel de defender as suas disposições. Com essas inovações, a Carta confirmava e protegia o DNA que se plasmou no curso da nossa história de modernização, afirmando a dimensão do público como relevante no capitalismo brasileiro.
Nesse sentido, a Constituição fixou princípios e valores constantes da tradição da nossa formação não homólogos aos desejados pelas forças do mercado, infensas à política e ao social como presenças estranhas à lógica que lhe é própria. Tais forças, dominantes no governo atual, embora camufladas pelo alarido que ele produz em torno de questões comportamentais, atuam no sentido de uma drástica remoção dos obstáculos institucionais que imponham limites à sua ação, o principal deles a Constituição. Esse objetivo não é de fácil realização, como o próprio governo admite, daí sua estratégia de sitiá-la, minando aos poucos sua autoridade como em sua política de agir por decretos claramente inconstitucionais, como na questão indígena, entre outras, movimento que procura se reforçar pelos ataques pessoais a integrantes do STF. Delenda Constituição, essa a palavra chave que preside o governo Bolsonaro.
O governo está empenhado em uma guerra de posição para a qual precisa de tempo, como evidente no lançamento, mal cumpridos sete meses de governo, da candidatura do atual presidente à reeleição. Se o front interno não se apresenta como aprazível para seu projeto maior de extrair o país da sua história de formação, o externo, ao contrário lhe aparece como mais promissor a fim de atrelar o país aos rumos neoliberais do governo Donald Trump, com o que desde logo aplicaria um forte golpe na tradição diplomática brasileira, uma das bases de sustentação das forças históricas que presidiram nossa formação.
Resistir a essa mutação que se quer nos impor a partir de cima consiste na aplicação das lições que aprendemos à época do regime militar, como, aliás, já vem ocorrendo com a reanimação das entidades da sociedade civil, sobretudo fazendo do processo eleitoral e da ativação de partidos políticos e sindicatos o foco principal de atuação das oposições ao que aí está. Esse pesadelo que nos aflige, que de certa forma merecemos pela enormidade dos erros cometidos, pode ter um fim se soubermos aprender com a experiência acumulada dos poucos momentos em que fomos vitoriosos.
*Luiz Werneck Vianna é sociólogo, PUC-Rio
Um comentário:
Werneck, mais uma vez, se mostra de uma lucidez fantástica.
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