- Valor Econômico
Em ocasiões como esta, o setor privado não tem condições de avaliar e muito menos de bancar o risco
O presidente do Banco da Inglaterra, Andrew Bailey, escreveu no Financial Times: “O uso do financiamento monetário prejudicaria a credibilidade da política de controle da Inflação... Isso também resultaria em um balanço insustentável do Banco Central e é incompatível com a meta de inflação fixada por um banco central independente”.
Mais adiante, Bailey justifica sua posição: “A política monetária não pode aumentar a produção acima do potencial no longo prazo e qualquer tentativa sistemática de fazê-lo aumentaria as expectativas de inflação, ameaçando a meta de 2%”.
Nas catacumbas desse pensamento peregrino, descolado das condições reais, seja qual for o significado da palavra reais, rastejam os Modelos Dinâmicos Estocásticos de Equilíbrio Geral. Nessa geringonça habita o Produto Potencial, uma construção inobservável que se propõe a definir as trajetórias dessa Enteléquia, com pleno emprego dos fatores e inflação dentro da meta.
O "hiato do produto" - a diferença entre o PIB real e a Enteléquia inobservável - é o indicador da posição cíclica da economia: quando o hiato é positivo, diz-se que a economia está superaquecida; um hiato negativo assinala a subutilização de recursos econômicos.
Imagino que os ditos modelos apontem, nesse momento, para um encolhimento do Produto Potencial causado pela derrocada das estruturas da oferta nas economias: as empresas fecham, a taxa de desemprego natural dispara, a produtividade despenca.
Nesse caso, a despeito do colapso do Produto observável, o cálculo do hiato do produto poderia constatar que essa medida não observável estaria registrando um superaquecimento da economia e qualquer iniciativa anticíclica da política monetária promoveria uma disparada da inflação.
Como ensina o economista americano Robert Gordon, “para qualquer projeção de crescimento do PIB Observável, um crescimento mais lento do PIB Potencial significa que o hiato do produto vai transitar da região negativa para o território positivo, suscitando pressões sobre a taxa de inflação”. No popular: tudo pelo “lado da oferta”.
Peço permissão para reproduzir aqui trechos de artigo publicado recentemente. Argumentei que a pandemia e o afastamento social provocaram o rompimento dos nexos monetários, insisto monetários, que sustentam as relações de oferta-demanda entre bancos, empresas, trabalhadores assalariados e prestadores de serviço autônomos. Tal ruptura se manifesta no desarranjo dos nexos empresariais e trabalhistas de demanda e oferta ao longo das cadeias mercantis. Os agentes hesitam em gastar porque correm o risco de não receber.
Em uma situação como esta, os governos não podem hesitar. Os Bancos Centrais e os Tesouros Nacionais têm que abandonar as regras que ordenam suas relações em tempos de “normalidade”.
Nesses tempos de normalidade os bancos emprestam para as empresas e para os cidadãos na quase certeza de recuperação do valor emprestado, acrescido da taxa de juros. Certamente há o risco de inadimplência. Cabe aos bancos avaliar a “credibilidade” dos clientes.
O importante é compreender a natureza do circuito gasto-emprego-renda. Não adianta dizer que a crise é diferente. Ela é diferente, mas é igual, ou seja, é a crise de uma determinada estrutura de relações.
Essas crises emergem nas pequenas recessões, nas Grandes Depressões. Essa é diferente porque a vulneração veio por uma desarticulação brutal das relações de produção e dos nexos mercantis - sobretudo das relações salariais. Os trabalhadores, assalariados ou informais, são o grupo de risco da pandemia econômica.
Trata-se, assim, de sustentar e recriar os circuitos de gasto e renda, circuitos da criação e circulação do dinheiro. E isso supõe centralidade, coordenação e planejamento. A reorganização deve se concentrar, sobretudo, na recriação e sustentação dos setores que fornecem insumos e componentes estratégicos para o combate à pandemia, para não falar do abastecimento alimentar da população e, portanto, da logística destinada a garantir esse abastecimento.
Em ocasiões como esta, parecida com Estado de Guerra, o setor privado não tem condições de avaliar e muito menos de bancar o risco. Não se trata de risco, mas de incerteza radical, como nos ensinou John Maynard Keynes.
O Lorde também ensinou que o Velho Capitalismo, entre bondades e crueldades, desenvolveu o sistema de crédito privado supervisionado por uma autoridade, o Banco Central. A esse sistema privado e regulado por um agente do Estado incumbe manter a confiança na moeda e em seu processo de criação pelos bancos, assim como garantir sua circulação entre os demais agentes privados. Em tempos de normalidade, a atuação do BC se resume a controlar a liquidez dos mercados monetários, o que significa também administrar o risco e manter o funcionamento das transações diárias entre os protagonistas do sistema bancário.
Fico em dúvida se devo esclarecer que esse sistema creditício-monetário está ancorado no Estado Nação. Com a emergência do Leviatã, ou seja, com o monopólio da força e a prerrogativa de cobrar impostos, emergiram o mercado e o dinheiro como sua argamassa social. É sabido que o dinheiro existe desde as civilizações primevas, como a Mesopotâmia, mas somente nas economias de mercado capitalistas a sociabilidade é construída e articulada pelos nexos monetários.
Meu amigo José Francisco Gonçalves sentenciou: nas economias capitalistas os valores de uso que satisfazem as necessidades não saem das mãos dos produtores para circular nos “mercados” sem o carimbo monetário. Mas, isso só ocorre quando esse suporte material atende às expectativas de apropriação privada de um valor monetário acrescentado.
Se não há valor monetário criado, não há valor monetário a ser apropriado. Em tais circunstâncias, o Estado pode e deve intervir maciçamente nos circuitos de crédito e de formação da renda. E deve fazer isso rapidamente para proteger os grupos mais fragilizados, mediante a constituição de comitês de planejamento incumbidos de manter as cadeias de produção em funcionamento.
Atenção: há moedas e moedas. O dólar é a moeda reserva. Denomina mais de 70% das transações comerciais e financeiras no mundo. O real é uma moeda não conversível. Por isso, a emissão monetária (e de dívida pública) pelo Banco Central do Brasil e pelo Tesouro deve ser acompanhada por rigorosa proteção das reservas e controle da conta capital. A emissão monetária não pode financiar a saída de capitais. Não posso avaliar a firmeza da oferta de swaps em dólares prometida pelo Federal Reserve.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
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