- O Globo
Foi Bolsonaro quem converteu a normalidade de Mandetta em algo notável
Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro em atividade, não é um técnico; mas um agente político de passado modesto, médico de formação, com alguma experiência regional de gestão na área da Saúde, que, desafiado pela peste (o novo coronavírus, para que não haja dúvida), de súbito se destacaria — alçado mesmo à condição de estadista —pela oposição pública que lhe fez o chefe, um populista autoritário cujo comportamento sociopata transforma equilíbrio e razoabilidade em brilhantismo, talvez mesmo em atributos da coragem.
Para que reste claro: o ministro, demitido no mercado futuro, só virou estrela, um herói, por motivo de contraste — do outro lado estando o presidente da República, vulgo conflito ambulante, aquele que jura um colaborador e depois vai orar.
Um pouco de história — porque tenho memória. Mandetta só se tornou ministro como consequência de uma indicação política (algo legítimo, mas criminalizado pelo bolsonarismo) que o então presidente eleito aceitara no escuro (uma temeridade); e que — eis o ponto — passaria a ser vendida, por Bolsonaro, como de natureza técnica. Nunca foi. Estava longe de ser nomeação que justificasse a propaganda de uma equipe de notáveis. Mandetta não é um Oswaldo Cruz. Faz, porém, trabalho correto e seguro. Era o presidente quem o apregoava como técnico. Esse mesmo técnico que o presidente fulminaria à primeira demonstração de alguma... técnica.
Foi Bolsonaro quem converteu a normalidade de Mandetta em algo notável. Sua comunicação irresponsável, expressão da incapacidade de liderar o país na empreitada contra a Covid-19, faria do auxiliar uma espécie de oásis da tarde — aquele cuja fala, ao fim do dia, programa de confinado, vem para trazer temperança, manifestação percebida e esperada pela sociedade como a palavra que desembaraçará o emaranhado de estímulos conflitantes disparados pelo presidente, com método, para fins de desinformação e desordem.
Algo subiu, sim, à cabeça de Mandetta. Bolsonaro tem razão. Insisto: o ministro é um agente político e tem pretensões. Frente à incompetência do chefe, vendo o presidente da República encarnar a crise — fator de instabilidade adicional — dentro da crise, percebeu que, insubordinando-se, poderia ser o que jamais seria em circunstâncias normais ou sob comando respeitável: um líder.
O insubordinado Luiz Henrique Mandetta hoje é uma nova liderança como as que — governadores em primeiro plano —começam a emergir ante a radicalização do golpista potencial que Bolsonaro é; movimento que o ceticismo convida a observar sob a seguinte pergunta: estarão mesmo a se elevar ou, parados, parecem crescer porque afunda, rebaixa-se, o chão?
O ministro não é um gênio e seu desempenho tem problemas. (Um deles não sendo a maneira prudente como reagiu ao faminto assédio do lobby econômico por um medicamento de eficácia ainda não cientificamente comprovada.) O maior deles: a testagem em massa para Covid-19 não ser política de Estado — o que nos lança a um voo no escuro.
Navegaremos mesmo às cegas, dirigidos pelo nevoeiro, enquanto não houver respostas para as seguintes questões: quantos testes o país realiza diariamente?; quantos já foram feitos?; qual a metodologia para sua aplicação?; quantos kits o Brasil tem disponíveis?; e por que tanta demora no processamento dos resultados? Penso na realidade das favelas brasileiras — com altos índices, por exemplo, de tuberculose — e nas covas que já excluem das estatísticas mortos por causa indeterminada.
Como falar em achatar a curva de disseminação do vírus entre nós — razão de estarmos, corretamente, em isolamento social — se a subnotificação parece ser a realidade e se nem sequer a sombra do crescimento da epidemia conseguimos mapear?
Essa coordenação — esse esforço para dar corpo ao touro que se quer domar — o Ministério da Saúde não faz. Só ouço promessas. É um erro grave. Diante, porém, do que prega Bolsonaro e diz gente como Osmar Terra, Mandetta logo se transmuta, sim, num Oswaldo Cruz.
Eis onde estamos — por sábia prevenção: o ministro tem o apoio da sociedade menos pelo que é e faz do que pelo que outros poderiam ser e fazer em seu lugar. Medo.
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Este jornal, em sua capa da edição de domingo, deu destaque às faces das vítimas da peste. Isso é necessário. A Covid-19 mata e, tudo indica, já vai descontrolada entre nós. Exibir as vidas perdidas — de idades diferentes e condições diversas — educa para a gravidade sem precedentes desta pandemia. É o certo a fazer. E não para lhes colar a tragédia à irresponsabilidade do presidente. Mas para que, informadas, possíveis vítimas da planície — sem plano de saúde e sem a proteção sanitária da Presidência — compreendam a seriedade da situação e tenham meios de se imunizar contra a inconsequência alheia.
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