- O Estado de S.Paulo
Que este momento trágico nos inspire a construir outro mundo ao fim da escuridão
Tal como guerras, pandemias têm o condão de espetar no solo da História marcos divisórios do tempo, do antes e do depois. Sob a nuvem virótica do novo coronavírus, estamos ainda no curso de uma travessia dramática, mas já se podem anotar aprendizados que nos ajudarão a acertar os passos e a acelerar rumo ao amanhã, que virá e, como sempre, será o que estamos fazendo hoje.
Já não se pode negar o fato há muito inconteste de que a vida precisa ser tratada em termos globais. Mas, na onda do negacionismo, o investimento populista de instalar muros físicos e ideológicos no mapa-múndi só nos fez ainda mais despreparados para lidar com a expansão multiterritorial da covid-19.
A exemplo da Organização das Nações Unidas (ONU) e suas agências, um dos legados mais importantes dos tempos de guerra da primeira metade do século 20 foi exatamente a construção de um modus operandi global para a condução multilateral da vida no planeta, em termos ambientais, políticos, econômicos e culturais.
A ciência, que já alertava para a possibilidade de uma pandemia, mas não foi ouvida, tornou-se outro alvo do cruzamento que se deu entre o populismo e o medievalismo assombroso que recrudesceu ultimamente.
Com um método próprio, a ciência, e, num lugar específico, as universidades, a humanidade vem construindo um patrimônio crucial de conhecimento para lidar com os desafios e as incertezas do existir. Mas da negação das mudanças climáticas à boataria contra as vacinas, passando pela louvação do senso comum como ataque sorrateiro ao saber intelectual, o mundo desidratou sua racionalidade científica.
Outra questão é que, com raríssimas exceções, o planeta tateia, ziguezagueando sob os efeitos de um vazio de lideranças nacionais e globais. Poucos fazem jus à efetiva acepção do termo líder como quem torna viáveis soluções, concilia forças, indica caminhos, explica decisões, mobiliza a união, promove o diálogo, galvaniza a convergência, tudo isso em torno do bem comum.
De outra sorte, esta travessia está a consolidar novos comportamentos. O mundo do trabalho, por exemplo, será confrontado com mais uma revolução na pós-pandemia, com o paradigma do home office. O comércio eletrônico é outro caminho sem volta que se fortalece. Esse cenário implicará desafios à inclusão produtiva e aos processos econômicos, mas trará impactos positivos em áreas como infraestrutura, mobilidade e combate à poluição.
Das práticas que também estão migrando da vanguarda para o movimento cotidiano das rotinas, temos ainda as diversas modalidades de ensino à distância e a telemedicina. Sem falar que o debate e a difusão de notícias sobre a covid-19 acabaram redirecionando o olhar do público do reino das fake news que se tornou a rede social para as multitelas do jornalismo profissional de credibilidade.
A análise aqui é panorâmica, mas registremos duas significativas notas locais: a pandemia acabou por escancarar a inaceitável desigualdade socioeconômica que corrói nossas potencialidades de nação desenvolvida e cidadã. O cotidiano massacrante e desumano das favelas, por exemplo, perdeu a “invisibilidade” que lhe era conferida pela infame “normalidade” nacional da vida fundada na segregação de semelhantes.
Além disso, a máquina pública brasileira, ainda em lentíssima transição para a digitalidade, arrasta-se a passos analógicos para tentar se conectar institucionalmente com a população, com especial incapacidade relativa ao imenso contingente de vulneráveis do nosso País. A atualização tecnológica dos governos se impõe. Na paz, é fator de eficiência e cidadania. Em tempos de guerra, é questão de amparo ou abandono, de vida ou morte.
Como vemos, toda crise tem três “forças”: aprendizados, oportunidades, finitude. Ou seja, não há crise que dure para sempre, e ela será tanto menos danosa, e a mais breve possível, quanto maior for nossa capacidade de identificar as oportunidades que dela emergem e de aprender com seus desafios – não sem dolorosos custos e enormes sacrifícios.
Assim, além de recuperar o lugar indispensável do multilateralismo e de iluminar o valor inquestionável da ciência e da liderança, que este trágico momento nos inspire à construção de um outro tempo ao fim desta jornada na escuridão. Que este novo mundo seja lugar de cooperação, solidariedade, sustentabilidade. Ecoando Milton Santos, que sejamos capazes “de atribuir um novo sentido à existência de cada um e, também, do planeta”.
Que possamos desviar-nos dessa “marcha da insensatez” que ignora a realidade e sigamos Winston Churchill, uma das mais arrojadas e fundamentais lideranças do século 20: “Vocês perguntam qual é nosso objetivo. Posso responder em uma palavra, a vitória. A vitória a qualquer preço, a vitória apesar de todo o terror, a vitória por mais longo e duro que seja o caminho, pois sem vitória não há sobrevivência. (...) Então, venham, vamos juntos em frente com nossa força unida”. E nessa travessia “é inútil dizer ‘estamos fazendo o possível’. Precisamos fazer o que é necessário”.
*Economista, presidente executivo da Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)
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