terça-feira, 5 de maio de 2020

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Emissão monetária, dívida e crise

- Valor Econômico

Se a derrocada seguir incontida, até mesmo o fluxo de renda dos pensadores inflacionistas vai cessar

Em um Boletim de 2014, “Money Creation in the Modern Economy”, o Banco da Inglaterra ensina que nos sistemas monetários contemporâneos, o dinheiro é administrado em primeira instância pelos bancos. Essas instituições têm o poder de avaliar o crédito de cada um dos centros privados de produção e de geração de renda e, com base nisso, emitir obrigações contra si próprios, ou seja, depósitos à vista, o meio de pagamento dominante. A criação monetária depende da avaliação dos bancos a respeito do risco de cada aposta privada.

O dinheiro ingressa na circulação com a benção do Estado, o cobrador de impostos, e a unção das relações de propriedade, isto é, decorre das relações estabelecidas entre credores e devedores, mediante a cobrança de uma taxa de juros. No circuito da renda monetária, os gastos privados e públicos precedem a coleta de impostos. As razões são óbvias. Não há como recolher impostos, se a renda não circula.

O banco credor empresta exercendo a função de agente privado do valor universal. O devedor exercita seus anseios de enriquecimento como proprietário privado, usufruindo a potência do valor universal. O dinheiro é riqueza potencial, promessa de enriquecimento, mas também algoz do fracasso. Se o devedor não servir a dívida, o banco, agente privado do valor universal, deve expropriar o inadimplente. A política monetária do Estado é incumbida, em cada momento do ciclo de crédito, de estabelecer as condições que devem regrar e disciplinar as expectativas de credores e devedores. Faz isso mediante a taxa de juros que remunera as reservas bancárias.

No livro “First Responders”, organizado por Ben Bernanke, Henry Paulson e Timothy Geithner, assessores do Federal Reserve e do Tesouro registram as características dos mercados contemporâneos: “O sistema financeiro mudou de forma fundamental nas décadas que antecederam à crise de 2008: mais crédito e precificação de risco foram intermediados nos mercados financeiros, sob os auspícios de instituições não bancárias. Muitas dessas instituições dependem de financiamento de curto prazo nos mercados monetários atacadistas, em vez de depósitos à vista garantidos e estáveis; assim, são mais vulneráveis a uma queda na confiança dos investidores, o que pode levar à queima de ativos e ao contágio do mercado”.

Nos tempos de “normalidade”, esses mercados financeiros ocupam-se de diversificar a riqueza de cada grupo, empresa ou indivíduo, distribuí-la por vários ativos na esperança de assegurar o máximo de ganhos patrimoniais. Os agentes dessas operações, bancos e demais instituições não-bancárias, procuram antecipar movimentos de preços e administrar os instrumentos de hedge e os riscos de contraparte.

Em um clima de convenções “otimistas”, bancos e demais instituições financeiras cuidam de antecipar o “estado de confiança” e estimar as condições de liquidez dos mercados, em conformidade com a evolução dos balanços de empresas, famílias, governos e países.

Sim, países, porque, na era da finança global, a integração dos mercados submeteu o processo de “precificação” dos ativos privados e públicos denominados em moedas distintas às antecipações acerca dos rendimentos dos ativos “de última instância”, líquidos e seguros, emitidos pelo Estado gestor da moeda-reserva. Esses títulos são o fundamento do sistema de criação de moeda fiduciária à escala global, o último refúgio da confiança. Há, portanto, uma hierarquia de moedas - conversíveis e não-conversíveis - que denominam ativos de “última instância” em cada jurisdição monetária.

A crise financeira de 2008 ofereceu a oportunidade de se examinar a resposta da política econômica à desorganização e ao pânico dos mercados. O Quantitative Easing (QE) trouxe à tona o que se movia nos subterrâneos: a articulação estrutural entre o sistema de crédito, a acumulação financeira-produtiva das empresas e a gestão monetária do Estado.

O QE ressaltou, ademais, a importância da expansão da dívida pública para o saneamento e recuperação dos balanços das instituições financeiras. Salvos da desvalorização dos ativos podres que carregavam e agora empanturram o balanço dos bancos centrais, os bancos privados e outros intermediários financeiros garantiram a qualidade de suas carteiras e salvaguardaram seus patrimônios, carregando títulos públicos com rendimentos reduzidos, mas valor assegurado. Os títulos dos Tesouros com rendimentos pífios não cessavam de atrair a volúpia dos investidores apavorados.

Seria interessante observar as relações entre a dívida pública e a dívida privada ao longo dos ciclos de expansão e contração da atividade econômica. O endividamento de empresas e famílias se expande nos períodos de crescimento e “confiança”.

Os bancos, sob a supervisão dos bancos centrais, emprestam às empresas e às famílias. As instituições financeiras não-bancárias emitem títulos que, abrigados nos portfólios, próprios e de outras instituições, amparam as “poupanças” das empresas e das famílias, poupanças acumuladas ao longo dos sucessivos circuitos de gasto-emprego-renda. Títulos públicos e privados são emitidos nos mercados primários, abrigados nos portfólios das instituições e negociados nos mercados secundários. Nos bons tempos, a precificação dos ativos gerados no processo de endividamento define uma curva de juros ascendente conforme a duration.

Na pandemia econômica, os nexos monetários foram rompidos e os proprietários privados, aí incluídos os proprietários da força de trabalho, foram excluídos do circuito da renda. A propriedade perdeu sua função crucial de legitimar a apropriação da renda e a valorização da riqueza. O mercado vira uma mixórdia: não é capaz de diferenciar os ativos de grau de investimento daqueles de alto risco. Trata-se do fenômeno da indiferenciação. A precificação dos ativos só aponta para baixo, jogando os juros longos para cima. Incumbe ao Banco Central achatar a curva, comprando os longos e vendendo os curtos.

A fuga desesperada para a liquidez atesta que, na derrocada, não há ativos melhores ou piores. Todos são fâmulos desprezíveis perante o Dinheiro. A crise desvela o segredo que o sodalício dos Crentes da Sabedoria Informacional dos Mercados - uma seita poderosa - pretende abafar: em sua dimensão monetária, o capitalismo revela o indissociável contubérnio entre o Universal e o Particular, entre o Estado e o Mercado, entre a Comunidade e o Indivíduo.

No pandemônio econômico os mercados gritam: “O Dinheiro acima de Todos, o Estado acima de Tudo.” A restauração das relações de propriedade e de apropriação só pode ser efetuada pela ação discricionária do Estado - Banco Central e Tesouro Nacional. É o paradoxo da livre-iniciativa. A iniciativa é livre enquanto os empreendedores estão legitimados pelo manto protetor da moeda, instituição social administrada pelo Estado.

Um sábio das redes sociais desqualificou o manifesto de economistas que recomendava a emissão monetária para enfrentar a pandemia econômica. “Meu rico dinheirinho vai ser devorado pela inflação”, proclamou. Inflação? Gerar inflação nesse ambiente de contração dos fluxos de gasto e renda seria um prodígio digno do mágico Houdini.

Outro sábio, vaticina que a emissão monetária fatalmente irá comprometer o regime de metas de inflação. Se as relações monetárias de mercado não forem restauradas, o “rico dinheirinho” vai sumir, sim, sugado pela deflação de ativos e por violenta contração dos fluxos de renda monetária.

Caso a derrocada siga incontida, até mesmo o fluxo de renda dos pensadores inflacionistas vai cessar e os ilustres serão expulsos do mercado. Cartão vermelho.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

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