terça-feira, 5 de maio de 2020

Aldir Blanc cantou a aldeia e, por isso, falou do mundo

Compositor é um poeta da Brasilidade, que vem a ser um canto desesperado de amor e liberdade

Luiz Antonio Simas | O Globo

Aldir Blanc é um poeta da Brasilidade, palavra com que defino uma comunidade de sentidos, afetos, sonoridades, rasuras, contradições, naufrágios, ilhas fugidias, identidades inviáveis, subversões cotidianas, voo de arara e picada de maribondo, saravá e samba. Coisas que o Brasil oficial, o estado brasileiro delimitado em marcos territoriais, odeia. O Brasil é, vez por outra, como nos nossos dias, um empreendimento de ódio; a Brasilidade é um canto desesperado de amor e liberdade.

Letrista excepcional, daqueles raros capazes de letrar nota por nota de uma melodia, fugindo das soluções fáceis brincando com as palavras na beira de um precipício, Aldir fez o mergulho mais profundo que um poeta da canção brasileira ousou. Foi capaz de descrever nossas vertigens a partir do cume das montanhas e do rasteiro das sarjetas; navegou oceanos com os corsários, cruzou a Baía da Guanabara na embarcação do Almirante Negro, cantou os mistérios do tempo entre a condenação da eternidade e o amor pelo residual. Conquistou a fama do Olimpo da música almejando o anonimato nos botequins mais vagabundos.

Aldir celebrou a vida porque sempre olhou a cara da morte. Cria das encruzilhadas em que a Vila Isabel, o Estácio, a Muda, o velho Maracanã e o Salgueiro se abraçam, consagrou-se como o cronista da Zona Norte carioca. Cantou a aldeia e, apenas por cantar a aldeia, falou o tempo todo do mundo. As letras de Blanc, mesmo quando falam dos bêbados do subúrbio carioca, são capazes de sondar com a profundidade dos escafandristas as obsessões de um esquimó.

Irmão siamês de João Bosco, parceiro dos abismos delirantes da música de Guinga, um Pelé para o Coutinho Moacyr Luz, furioso como os cavalos de Ogum, caudaloso como as hemoptises de um Canal do Mangue virado em assentamento de Oxumarê, o vascaíno Aldir permanecerá. Ao lado dele, como totens, encantados, orixás, Villa-Lobos, Pixinguinha, Tom Jobim, Aracy de Almeida, Noel Rosa, Luiz Gonzaga, Elizeth, Clara, Capiba, Ary e tantos gigantes da nossa cultura.

A Brasilidade está na arte de viver na síncope, no drible, na dobra do tambor, na oração dos romeiros, na dança de Oxalufan, nas serestas suburbanas, nos namoros em Paquetá, na suavidade dos sons bonitos, no esporro dos tambores das matas e cidades, no grito de gol e na imponência calada das imensas gameleiras, nas salas de aula, recreios, terreiros, lupanares, valas, sarjetas e jardins. E está em cada verso de Aldir Blanc.

O Brasil tem verdadeiro horror da Brasilidade, essa bruma incerta que une os marujos da nau sem rumo, a filha dos lanhados, ferrados, exterminados, encantados, contra o vento, contra o rei, contra a lei, contra o altíssimo, contra a foice, o facão, o canhão e o arado. Aldir Blanc carregou a Brasilidade no colo, deu nela petelecos e fez cafunés em seus caracóis. Que a Brasilidade possa agora embalar Aldir em sua longa jornada pelo tempo, aquela reservada aos que hoje, como ele, viraram memória e incêndio na solidão de cada um de nós.

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