- Folha de S. Paulo
Conheça composições do artista doce e recluso que morreu por coronavírus nesta segunda
Em março de 2010, Aldir Blanc desceu de um táxi na porta do teatro João Caetano, na praça Tiradentes. Venceu a multidão no foyer sem dar tempo a que o reconhecessem, subiu as escadas até o balcão e se escondeu numa poltrona atrás de uma pilastra. Era a primeira vez que escapava de casa em muito tempo.
E só fez isto porque se tratava da estreia de um musical, “Era no Tempo do Rei”, cujo score continha 19 canções feitas especialmente para a peça –música de Carlos Lyra e letras dele, Blanc, tão ricas e sofisticadas que a plateia, ainda desabituada a musicais com material inédito, não captou nem metade da beleza. Ao fim do espetáculo, Blanc não subiu ao palco com os autores para os aplausos. Já tinha se mandado sem ninguém perceber, de volta a seu apartamento, na rua Garibaldi.
Morto nesta segunda-feira (4), ele morava –ou se escondia– num dos pontos mais charmosos da zona norte do Rio de Janeiro, na confluência entre a Muda da Tijuca e Vila Isabel, ao lado do Bar da Dona Maria, que ajudara a tornar famoso, e de uma feira livre semanal, ambos com rodas de samba criadas por ele no tempo em que ainda exercia fisicamente a boemia. E nem assim saía de casa e atravessava a rua. Mas, à noite, os boêmios podiam ver a sua silhueta na janela e sabiam que Blanc estava velando por eles.
Era recluso, mas não antissocial nem rabugento. Ao contrário, ninguém mais doce ao telefone ou ao email, seus meios de comunicação com o mundo –dos zaps, de que nem chegava perto, cuidava Mari, sua mulher.
Blanc não saía à rua porque já tinha em casa tudo de que precisava: os livros, que lhe chegavam pelo correio; os filhos e netos, que moravam com ele ou nas proximidades e ele via todos os dias; e a si próprio, com tudo que trazia na cabeça e usava em suas letras –gírias e palavras fora de moda, marcas de produtos extintos, receitas de comida heavy metal, nomes de sambistas, o Rio da zona norte e uma mina de imagens, críticas, poéticas ou hilárias, impossível de esgotar. Ninguém mais leitor, ninguém mais família, ninguém mais poeta –ninguém mais Aldir.
Os livros e os discos transbordavam das estantes, subiam em pilhas pelas paredes e chegavam quase ao teto, em vários aposentos. Iam dos últimos lançamentos –que ele era o primeiro a ler ou escutar e a dar sua generosa impressão para os autores seus amigos– até os clássicos do passado, de que se lembrava de repente que não havia lido e precisava suprir urgentemente essa lacuna. Em jovem, mergulhou na obra de poetas como Pound, Lorca e Maiakóvski, ele disse. “Mas a influência da sinuca foi maior”, corrigiu.
Blanc se formou em medicina e exerceu por algum tempo a psiquiatria, mas as deixou de lado ao descobrir que sofria a dor de seus clientes e que seus problemas eram iguais aos deles, e nem estes ele conseguia resolver. Blanc abandonou tudo isso pela boemia, que exerceu como uma religião e marcou época nos botequins mais gloriosos e vagabundos e, finalmente, a trocou pela reflexão e revolta domésticas.
Com isso ganhou a música popular, ganharam os compositores que ele transformou em parceiros e ganhou o Brasil, com seus motes que ajudaram a nos guiar: o Brasil “que sonhava com a volta do irmão do Henfil”, que precisava “tirar as flechas do peito de seu padroeiro”, o “Brazil que não conhecia o Brasil”.
Como diria o próprio Blanc –senhor como ninguém dos clichês da língua–, que cruel ironia que, ao sair de casa pela primeira vez em anos, fosse para sempre.
PEDRAS-DE-TOQUE DE ALDIR BLANC
Na maioria de suas 600 composições, sozinho ou com parceiros, Blanc produziu versos que, mesmo sem as melodias que os vestiram ou a voz dos cantores que os consagraram, poderiam fazer parte de qualquer antologia da poesia brasileira.
Eis alguns.
Caía
A tarde feito um viaduto
“O Bêbado e a Equilibrista”, com João Bosco
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Eu beijo na boca de hoje
As lágrimas de outra mulher
“50 Anos”, com Cristóvão Bastos
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Eu sei que o meu peito é uma lona armada,
Nostalgia não paga entrada
“Saudades do Brasil”, com Moacyr Luz e Paulo César Pinheiro
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O olho claro no cabelo cor da noite
Riso branco feito açoite no olhar da paranoia
Aqui é cúmplice o que é simples e absurdo
Esmeralda no veludo, onça negra com jiboia
“Simples e Absurdo”
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Meu catavento tem dentro
O que há do lado de fora do teu girassol
Entre o escancaro e o contido
Eu te pedi sustenido e você riu bemol
“Catavento e Girassol”, com Guinga
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Tu me esfumarás
Me neblinarei
Sobre os telhados, galáxias azuis
Sonambularás
Te voltearei
“Valsa pra Leila”, com Guinga
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Ah, sou rolimã numa ladeira
Não tenho o vício da ilusão
Hoje eu vejo as coisas como são:
Estrela é só um incêndio na solidão
“Pra que Pedir perdão”, com Moacyr Luz
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Entre as pernas, nos teus pelos,
Um rubor de flamboyant
Faz tua ilha Paquetá de manhã
“Choro das Ondas”, com Moacyr Luz
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Quando ele me invade
Num desejo calmo e frio
Eu que delirava
Com a brutalidade e o cio
Ofereço a face
E adoto um disfarce
De rancor e pena:
No quarto, Maria
Na calçada, Madalena
“Aquário”, com Moacyr Luz
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Quem me vê sentado
Atrás dessa mesa
De escriturário
Não vê o tarado,
Louco e sanguinário,
O bárbaro sem véu.
O estripador cruel...
“Retrato Cantado”, com Marcio Proença
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No dedo um falso brilhante
Brincos iguais ao colar
E a ponta de um torturante
Band-aid no calcanhar.
Eu hoje me embriagando
De uísque com guaraná
Ouvi tua voz murmurando
São dois pra lá, dois pra cá
“Dois pra Lá, Dois pra Cá”, com João Bosco
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O Brazil não conhece o Brasil
O Brasil nunca foi ao Brazil
Tapir, jabuti iliana alamanda alialaúde
Piau, ururau akiataúde
“Querelas do Brasil”, com Mauricio Tapajós
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Ai, no oceano sofri essa vertigem
Que causa essa paisagem puta e virgem
Rainha alguma rege tanto viço
O Rio de Janeiro é um feitiço!”
“Fado de D. Maria, a Rainha Louca”, com Carlos Lyra
*Ruy Castro, Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
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