terça-feira, 5 de maio de 2020

Dina Lida Kinoshita* - Lições históricas que a esquerda dogmática insiste em ignorar

Nos últimos 30 anos a politização e partidarização nas universidades brasileiras chegou a um extremo, sobretudo na área de ciências humanas. Com raras exceções, a posição do militante sobrepujou os fatos históricos e sociológicos que presumidamente os cientistas sociais deveriam conhecer.

Durante a curta campanha eleitoral recém encerrada escutei, na lógica maniqueísta e hegemônica que “os candidatos Geraldo Alckmin e Jair Bolsonaro representam a mesma coisa”.

Imediatamente me veio à lembrança a eleição alemã de 1932. No VI Congresso da Internacional Comunista (IC) realizado em 1928, alegando uma suposta Terceira Onda Revolucionária, foi aprovada a política de “classe contra classe” e, nesta lógica, os social democratas alemães foram tachados de social fascistas. Como resultado desta política Hitler assumiu o poder pela via democrática, não revogou a Constituição de Weimar, transformando a Alemanha, por meio de decretos, na ditadura mais hedionda que o mundo conheceu.

Após esse episódio, no VII Congresso da IC realizado em julho de 1935, foi aprovada a proposta de Dimitrov da construção das “Frentes Populares” para barrar o nazi-fascismo. No ano seguinte foram eleitos governos desse tipo na França e na Espanha. A monarquia espanhola foi derrubada e o governo republicano propôs reformas modestas já realizadas nos países europeus mais avançados ao longo do século XIX. Monarquistas, a Igreja Católica e conservadores em geral, indignados, deram ensejo a parte do exército liderada por Francisco Franco, a dar um golpe. Os golpistas utilizaram uma estratégia que isolou a República e teve início uma guerra fratricida selvagem com quase três anos de duração. Enquanto socialistas e comunistas entendiam que era preciso defender a República, anarquistas e trotskistas pensavam que havia chegado o tempo de uma revolução profunda. 

A divisão entre essas forças foi uma das causas da derrota republicana. Essa guerra civil se internacionalizou; a Alemanha nazista e a Itália fascista apoiaram os golpístas, a URSS enviou assessores militares e armamentos e mobilizou as Brigadas Internacionais através da IC. Grã Bretanha e França optaram pela “não intervenção”. Esta guerra foi um prelúdio da II Guerra Mundial onde se testaram vários armamentos e, pela primeira vez, populações civis foram deliberadamente atingidas. Esse episódio foi magnificamente retratado por Pablo Picasso, no quadro Guernica. Depois de tudo isso os espanhóis sofreram quase 40 anos de uma ditadura feroz.

No Brasil, o Presidente Jânio da Silva Quadros renuncia poucos meses após a sua posse. As forças conservadoras se opuseram à posse do seu vice, João Goulart (Jango) considerado um homem de esquerda. Houve pressão popular “pela legalidade” e uma negociação complexa em que Jango tomou posse como Presidente sob um regime parlamentarista. Contudo no ano seguinte ocorreu uma eleição para governadores e parlamentares bem como um plebiscito para definir se o País continuaria parlamentarista ou voltaria a ser presidencialista. O resultado das urnas definiu o presidencialismo. O PTB, partido do Presidente, elegeu uma grande bancada de deputados porém as forças da direita se rearticularam e elegeram os governadores dos estados mais importantes da Federação. Jango, um reformista moderado, propôs um Plano Trienal de Reformas de Base, algumas delas ainda sem solução até os dias atuais. A que mais incomodava os latifundiários era a Reforma Agrária.

A despeito de um contexto nacional complexo e internacional totalmente adverso uma vez que a Guerra Fria havia se agravado depois da “crise dos mísseis” e os Estados Unidos não permitiriam outra Cuba no Hemisfério Ocidental, setores da esquerda brasileira já começaram a pensar em repetir a experiência de Sierra Maestra no Brasil e, Julião repetia o slogan “Reforma Agrária na Lei ou na Marra”. Foram anos conturbados com manifestações e greves cotidianas que não davam trégua e poucos ouviram o conselho de “pôr o pé no freio” pois a corda pode arrebentar do lado mais fraco”. No início de março de 1964 cabos e sargentos começaram a quebrar a hierarquia militar e a classe média amedrontada iniciou as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. No dia 31 de março ocorreu o golpe cívico-militar que derrubou o governo de Jango e instaurou uma ditadura. Não obstante o novo contexto criado pela derrota, a esquerda dogmática insistiu numa escalada de confronto acreditando que derrubaria a ditadura pela via militar. O resultado foi um endurecimento do regime militar que perdurou por 21 anos.

No Chile cercado por várias ditaduras militares, a Unidad Popular elegeu Salvador Allende, um socialista marxista, para Presidente. Allende acreditava na possibilidade de uma experiência de socialismo democrático neste país apesar da derrota do “socialismo de face humana” de Dubcek, na Checoslováquia. dois anos antes. A soma de votos da Democracia Crietâ e da direita foi superior a 50% enquanto Allende obteve cerca de 35%. A direita se opôs à sua posse e a bancada da Unidad Popular no Parlamento tambèm era minoritária. No plano internacional, Nixon enfrentava o auge da Guerra do Vietnã e os Estados Unidos não permitriam um Chile socialista. A CIA realizava provocações constantes. Numa democracia frágil, as dificuldades do Governo eram imensas. 

Mas o governo também era torpedeado pelo Movimiento de Izquierda Revolucionária (MIR). Este movimento criado em 1965, preconizava a luta armada e era muito ligado a Cuba. Durante o governo do Presidente Eduardo Frei era ilegal. Quando Allende tomou posse o MIR decidiu por “um apoio crítico” e foi legalizado. Aproveitou a legalidade para criar os “movimentos revolucionários” dos camponeses, estudantes secundaristas e universitários e dos operários entre outros. Quanto mais as dificuldades aumentavam, mais o MIR tensionava o governo pela tomada do poder pela força sem medir as reais condiçôes para isso nem as consequências decorrentes para a democracia. No dia 11 de setembro de 1973, o Exército liderado pelo General Augusto Pinochet, deu um golpe do qual resultou uma ditadura sanguinária que perdurou por quinze anos.

Retomando a crônica de nosso país, ainda antes da fundação do Partido dos Trabalhadores, as forças que o comporiam no ano seguinte (1980), não aceitaram a anistia conquistada que apesar de não ser ampla e irrestrita, propiciou um novo ambiente político. Quando a proposta encaminhada pelo Deputado Dante de Oliveira de Eleições Diretas para Presidente da República foi derrotada, se recusaram a participar do Colégio Eleitoral e expulsaram os três deputados que participaram dele. Também se recusaram a firmar a nova constituição democrática que enterrou o “entulho autoritário”. Foram os primeiros a denunciar os “malfeitos de Collor” e, quando este finalmente foi impedido, e, Iramar Franco assumiu a presidência, se recusaram a participar de um governo de Unidade Nacional. Luiza Erundina que aceitou um ministério, na prática, foi expulsa do partido. Não aprovaram o Plano Real proposto no governo Itamar e demonizaram o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso durante os oito anos de seu mandato. Lula só foi eleito, em segundo turno, quando se candidatou à presidência pela quarta vez. 

Embora tenha logrado uma votaão muito expressiva, o PT só elegeu 14% dos senadores e 18% dos deputados federais. Dessa forma não teria condições de aprovar nem uma lei ordinária. Mas o PT continuava com o discurso da “herança maldita” de FHC”. Para governar aliou-se às forças mais conservadoras e corruptas do país. O projeto de poder era de vinte anos. Na lógica de “os fins justificamos meios”, dilapidam junto com os sócios as grandes estatais e os fundos de pensão dos funcionários delas. Junto com isso vem o enriquecimento ilícito pessoal dos participantes dos mais diversos esquemas dos quais o governador Sérgio Cabral é emblemático. A descoberta destes crimes se dá aos poucos graças à “lava jato” que não para de ampliar suas investigações. O povo já vinha demonstrando sua indignação desde as grandes manifestações de 2013.

Mas mesmo depois do impeachment da Presidente Dilma Rousseff, instituto previsto na Constituição, não fazem auutocrítica, mantendo um discurso de que a direita deu um golpe. Mesmo com Lula preso, comandando a campanha eleitoral, continuaram a malhar os candidatos de centro e centro-esquerda. E o antipetismo vai num crescendo vertiginoso. Na lógica hegemonista, no segundo turno, querem o apoio de todos os que sempre satanizaram. Utilizam a técnica de apavorar as pessoas com a chegada de dura ditadura e nesse processo de 16 anos de poder não cogitam a alternância de poder como algo democrático. Se tivessem ao longo dos quase 40 anos de existência outra atitude, talvez o resultado fosse outro. Será que chegando à maturidade terão atitudes mais maduras?

*Professora aposentada da USP

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