Pesquisador
vê o surgimento de novos pobres, egressos da classe média, que, sem emprego ou
vacina, pressionam pela retomada do benefício governamental
Em
dois domingos consecutivos de janeiro, o historiador Raphael Ruvenal, de 31
anos, saiu de casa, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, às 5h45 para, depois
de três horas de trem, ônibus e barca, chegar a um colégio estadual em Niterói,
a mais de 50 km dali, onde foi fiscal do Enem. Apesar de as provas só terem
início às 13h30, todos os fiscais deveriam se apresentar às 8h45. Liberado às
19h, Raphael chegou em casa às 22h.
Por
cada um dos dias do Enem, recebeu R$ 90. Descontado o transporte, sobraram R$
73. Se as provas tivessem acontecido dez dias depois, seus vencimentos teriam
sido 25,5% menores por causa do reajuste no transporte metropolitano já
confirmado para o início de fevereiro. O ganho líquido só não foi mais reduzido
porque a direção da escola ofereceu lanche para a jornada de 16 horas.
Para
ser selecionado como fiscal, ele teve que se submeter a um curso on-line de 20
horas e a uma avaliação. Formado, com a ajuda do Prouni, e pós-graduado em
história, roteirista e escritor, Raphael está desempregado há mais de um ano e
tem penado para dar aulas particulares remotamente. Os R$ 146 que lhe renderam
o Enem foram sua única renda ao longo de janeiro.
Falante,
articulado e lido, Raphael resume numa frase a pedreira que enfrentou como
fiscal do Enem: “Recusa trabalho quem pode”. Filho de uma diarista e de um
agente administrativo do Ministério da Saúde, com renda de R$ 3,5 mil, Raphael
não entrou para a fila da miséria porque vive com os pais. Beneficiário do
auxílio emergencial até dezembro, o historiador da Baixada Fluminense é parte
das mudanças no perfil da pobreza que emergiram com o fim do benefício.
Pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole na USP e estudioso de desigualdade social, Rogério Barbosa apenas começou a mapeá-los, mas já descobriu que os novos empobrecidos pelo fim do auxílio estão no meio da distribuição de renda. Em sua maioria, são egressos do mercado formal que ainda não se recuperou e tinham, antes da pandemia, uma renda domiciliar per capita média de R$ 859. O pesquisador vê os pobres apenas de volta ao assento de baixo de uma gangorra da qual não saem desde 2015. Quem grudou no chão com o fim do auxílio, e não sabem como nem quando poderão sair, foram os mais remediados.
Morador
do Chapéu Mangueira, comunidade da zona sul do Rio, Eduardo Henrique Baptista
levava uma vida de classe média até o início do ano passado. Tocava, junto com
a mulher, o bar do sogro, de onde a família tirava, por mês, uma renda de até
R$ 4 mil. Com a pandemia, resolveu fechá-lo. Quem se manteve aberto continua
faturando na comunidade, mas ele não quis ter o vírus por sócio.
Eduardo
só continuou a vender água para dar conta do aluguel do imóvel de R$ 600. Para
pagar o da casa em que mora, de R$ 800, se valeu mesmo foi do auxílio
emergencial que ele e a mulher receberam. Em janeiro, não entrou mais nada.
Para dar conta dos três filhos de 16, 11 e 8 anos, faz bicos no gerenciamento
de redes sociais e na produção de eventos da pandemia, como “lives” e
“streamings”, enquanto a mulher vende produtos de bronzeamento e faz
sobrancelhas no Chapéu Mangueira. Mesmo com os bicos, o casal não consegue
chegar na renda de R$ 1,2 mil que lhes garantia o auxílio.
Nas
planilhas de Rogério Barbosa, o ano de 2020, sem auxílio emergencial, poderia
ter deixado 28% das famílias com um rendimento aquém de um terço do salário
mínimo per capita, que é a linha de pobreza no Brasil. E é a este patamar de
miséria que o Brasil pode chegar sem a renovação do benefício, o que é mais do
que o dobro da média de famílias abaixo da linha de pobreza registrada ao longo
de 2020.
Como
nas crises brasileiras sempre se descobre que dá para cavar mais o fundo o
poço, Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, foi
atrás e encontrou um alçapão: a perda dupla do auxílio e do Bolsa Família. Com
a calamidade pública foi suspensa a exigência da atualização cadastral do BF
para a renovação bienal do benefício. Finda a calamidade, o bloqueio de
beneficiários que não se recadastrarem passará a ser automático. A exclusão de
dezenas de milhares de famílias do cadastro do Bolsa Família engordaria ainda
mais a fila do programa, que já passa de 1,5 milhão.
No
auge do auxílio emergencial, quando o programa incluía 68 milhões de pessoas, o
valor injetado diretamente na veia dos consumidores passou de R$ 50 bilhões
mensais. Em janeiro, ainda há beneficiários de parcelas em atraso. A partir de
fevereiro, porém, essa transferência de renda mensal totalizará apenas R$ 2,7
bilhões. Por esse despenhadeiro, rola muito mais gente do que os beneficiários
do auxílio. Foi na sua vigência, por exemplo, que a indústria de alimentos,
construção civil e varejo tiveram o melhor ano da história.
Em
meio à renda que despenca, o secretário de Fazenda de Alagoas, George Santoro,
encontrou uma caverna. O fisco alagoano já foi impactado negativamente pela
arrecadação do ICMS, mas o baque definitivo só é esperado para abril. Santoro
calcula que, do saldo positivo de mais de R$ 166 bilhões em contas de poupança,
R$ 100 bilhões tenham vindo da poupança digital aberta pela Caixa Econômica
Federal, ao longo de 2020, para cada beneficiário do auxílio emergencial. Até
abril os beneficiários que tiverem feito poupança vão queimá-la. Depois disso,
acabou.
Gestores
públicos, parlamentares, acadêmicos e os próprios beneficiários tendem a
concordar, reservadamente, que teria sido preferível um auxílio de valor mais
baixo e duração mais alargada. Santoro lamenta que tenha sido perdida a
oportunidade de se aproveitar esse momento da pandemia para oferecer
treinamento em larga escala para melhorar a empregabilidade dos beneficiários
do auxílio para o pós-pandemia.
A
volta do emprego sempre foi o maior escudo do Ministério da Economia contra a
renovação do auxílio emergencial. As evidências de que essas expectativas não
se confirmarão, no entanto, já arrefece a rejeição ao benefício. Ao longo da
pandemia Rogério Barbosa passou a confiar tanto nos dados do Caged, cadastro
informado pelos empregadores, quanto numa nota de 30. Prefere se guiar pelos
dados da Pnad Contínua. E aposta até um lobo-guará numa onda de demissões em
massa com o fim dos acordos de redução de jornada e salário a partir da
caducidade da regra no fim de 2020. O que suas planilhas mostram é desolador:
uma pobreza que caminha para repetir a da crise dos anos 1980.
No
Congresso, dos quatro principais postulantes, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Simone
Tebet (MDB-MS), no Senado, e Baleia Rossi (MDB-SP) e Arthur Lira (PP-AL), na
Câmara, apenas este último se mostrava resistente ao auxílio. Temia afugentar,
precocemente, o apoio que tem hoje no mercado financeiro, mas passou a
aceitá-lo e a catequizar suas plateias bem postas a fazer o mesmo.
A
chave virou depois que cresceu a ameaça do impeachment. É uma conta de padaria.
Sem o auxílio, cresce a insatisfação e a chance de ter povo na rua. O Datafolha
(22/01) registrou queda de dez pontos percentuais entre aqueles que deixaram de
receber o benefício. Com 40% de rejeição na primeira grande pesquisa de 2021,
Bolsonaro só perde para Fernando Collor de Mello como o presidente de pior
avaliação, desde a redemocratização, no início do segundo biênio do mandato. A
mesma pesquisa mostrou que sete em cada dez brasileiros não têm uma renda alternativa
ao auxílio.
O
impeachment, que ainda não tem apoio majoritário entre os entrevistados, passa
a ser um desfecho provável se a imagem do governo Bolsonaro continuar a se
deteriorar pelo duplo desgaste do fim do auxílio e da demora na vacina. É tudo
o que Lira não quer. Os dois impeachments de presidente da República
registrados na história nacional, o de Fernando Collor de Mello (1992) e de
Dilma Rousseff (2016), foram seguidos da cassação dos presidentes da Câmara,
Ibsen Pinheiro (1994) e Eduardo Cunha (2016), que comandaram a degola dos
chefes da nação. Para não ser o próximo da lista, corre para evitar a todo
custo o impeachment. Nem que, para isso, Arthur Lira tenha que dar um cavalo de
pau no ministro da Economia, Paulo Guedes. É este o cálculo político que faz
com que a chance de renovação do auxílio emergencial já estivesse mais longe.
No
outro lado do balcão, de quem vive sob o cerco das planilhas fiscais, a conta
não fecha. O país hoje tem um perfil de dívida mais alongado a taxas mais
baixas, mas o endividamento causado pela renovação do auxílio apavora as
expectativas de aceleração da espiral de juro, inflação e (mais) desemprego. O
resto do discurso já se conhece. O de que se dá com uma mão e se tira com a
outra, embora beneficiários e prejudicados não sejam necessariamente os mesmos.
A
renovação do auxílio também mantém de prontidão a guarda sobre os deslizes
fiscais do governo. Uma nova calamidade pública autorizaria a abertura de novos
créditos extraordinários, mas a gestão do “Orçamento de Guerra” em 2020 mostrou
que as brechas fiscais dependem do tamanho da lupa que se use - e da chuva que
caia sobre o teto. No limite, a despeito dos pavores do mercado e dos riscos
fiscais, o auxílio é a alternativa que resta para o presidente ganhar tempo.
A PEC Emergencial, que corta gastos do governo, volta ao noticiário como tábua de salvação para possibilitar a adoção do auxílio sem apavorar os fiscalistas. Pouco têm importado as evidências de que, quanto mais enrolado fica o presidente, mais difícil é cortar gasto público. É neste pandemônio que o auxílio emergencial ensaia sua volta. Não pela consciência de que a fome não pode ganhar a macabra corrida contra o vírus, mas pela sobrevivência política de quem está no comando do espetáculo.
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