sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

José de Souza Martins* - Nossa cultura genocida

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A morte equilibra as contas: esse tem sido um cálculo cruel subjacente a falas e decisões de responsáveis por nossos dilemas políticos

Em menos de um ano, mais de 200 mil mortos no Brasil, em decorrência da covid-19, são mais do que os mortos de Hiroshima em decorrência da bomba atômica que os americanos explodiram sobre a cidade.

Ao colocar o presidente da República um general da ativa, especialista em logística, como ministro da Saúde, está ele dando status militar ao combate à pandemia. Justifica-se, pois, a comparação que faço.

Estamos diante de uma guerra - e guerra que, em consequência de seus efeitos socialmente colaterais, estamos perdendo. E o estamos porque até aqui fizemos e conseguimos menos do que teríamos feito e conseguido se tivessem prevalecido a ciência e os critérios e recomendações científicos na administração do problema sanitário.

Em alguma medida, o número das mortes decorrentes da pandemia reflete efeitos das recomendações de medicação sabidamente equivocada e dos maus exemplos do próprio governante nas atitudes em relação à doença.

Os que se sentiram estimulados, pelos maus exemplos vindos de cima, a violar os critérios de segurança pessoal e coletiva e preferiram peitar o vírus amontoando-se em praias, ruas e restaurantes, tornaram-se elos na cadeia de disseminação do agente da pandemia.

Os desvios de conduta têm sua raiz na contraditória concepção de genocídio subjacente ao cálculo político que aqui se pratica desde as origens do Brasil. País formado pela junção à força, própria da conquista, de etnias e raças culturalmente diferentes, acabou marcado pelo pressuposto de que o conquistador era gente e o conquistado não.

Nos tempos coloniais, nas estatísticas oficiais e nas definições da diversidade dos habitantes da época, se vê claramente a dúvida dos escrivães, na classificação da população da colônia, em relação a quem era gente ou não era. Seres de servidão ou de escravidão, suas vidas eram consideradas provisórias, limitadas à utilidade do servir e a no servir esgotar-se. As diferenças sociais indicavam diferenças na possibilidade de viver: os que viveriam tudo que tinham direito e os que viveriam apenas o que as condições lhes permitissem.

O fato de que quase tudo no país, até hoje, é insuficiente para todos decorre de que tudo está distribuído desigualmente: a suficiência para a minoria e a insuficiência para a maioria. Aqui, nem as suficiências nem as insuficiências estão democraticamente distribuídas. Nesse sentido, a própria vida não está democraticamente distribuída. De certo modo, socialmente, a economia brasileira é a economia dos restos. Gente sobrante vivendo do que sobra.

Essa cultura limitante e genocida de referência formativa do nosso comportamento se nutre de uma dificuldade estrutural própria do nosso modelo de acumulação. Para se equiparar aos países ricos, atenua os benefícios do desenvolvimento econômico ao reduzi-los ao menos do que o necessário ao nosso desenvolvimento social.

Na cultura do menos, a morte equilibra as contas. Esse tem sido um cálculo cruel subjacente a falas e decisões de responsáveis por nossos dilemas políticos. Especialmente agora. Falar, hoje, em fatalidade da morte, em face justamente de ser ela uma fatalidade administrável, mas não controlada aqui, mostra-nos o quanto está situado nas profundezas de nossa consciência o conformismo brasileiro com essa modalidade de morte.

Cultura disseminada na população, acabou se caracterizando, quando muito, pela preocupação com a vida dos próximos e apenas vaga preocupação com a vida dos distantes. Em tese, porque a deformação abrange a crença descabida de que em casa e entre parentes próximos a doença não se espalha.

Na verdade, as informações mais recentes mostram que essa imprudência é responsável pela maior incidência de contaminação no interior das famílias, devido à falta dos cuidados recomendados: distanciamento, máscara e higienização das mãos.

O caos que tomou conta do país e vai se tornando tragédia nas mortes decorrentes da covid e das públicas manifestações de competente produção da circunstância da desordem. A falta de previsão e planejamento logístico, como no caso doloroso das mortes de pacientes por falta de ar em Manaus, é fruto da omissão que tem sentido nessa mentalidade.

Na perspectiva da igualdade jurídica, dos direitos sociais e da cidadania, é incômodo, porque é muito revelador, ouvir um presidente da República dizer, em relação à peste: “Fiz a minha parte”. É afirmação de quem a boca fala apenas a língua limitada de uma sociedade de alguns, e não de uma sociedade de todos. É a língua de um burocrata, e não a língua de um governante. Não é língua de estadista, de quem vê, compreende e personifica o todo. Coisa de quem concebe o mandato como aquilo que o mandato não é.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).

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