Valor Econômico
Em poucos meses, pressões inflacionárias
disseminadas e crescentes incertezas fiscais mudaram totalmente o cenário
projetado para a Selic
A avaliação de que os ciclos de alta dos
juros no Brasil seriam moderados ficou para trás. Em poucos meses, pressões
inflacionárias disseminadas e crescentes incertezas fiscais mudaram totalmente
o cenário projetado para a Selic. A ideia de que a taxa não voltaria a rondar
os dois dígitos foi substituída pela percepção de que os juros terão de ficar
mais altos por mais tempo, para domar uma inflação que deve ficar na casa de 9%
neste ano, com aumentos fortes dos preços de alimentos, combustíveis, energia
elétrica, bens industriais e serviços.
O drible no teto de gastos, marcando o abandono da âncora para as contas públicas, deteriorou uma perspectiva que já era negativa. A manobra do governo para elevar os gastos públicos no ano eleitoral de 2022 elevou o risco país, desvalorizou ainda mais o câmbio e jogou nas alturas as taxas dos contratos futuros de juros. Ainda que possa haver um exagero nos movimentos recentes dos preços dos ativos brasileiros, o quadro que se desenha até o fim do ano que vem é complicado, dificultando a tarefa de quem vencer as próximas eleições presidenciais. A alta mais forte da Selic vai minar o crescimento, afetar a disposição das empresas em investir, encarecer empréstimos e aumentar o custo da dívida pública. O mercado imobiliário e o mercado de capitais, que viviam um bom momento devido aos juros baixos, também serão prejudicados.
Para ter uma ideia da piora das
expectativas em relação aos juros, vale lembrar a evolução das projeções para a
Selic do Itaú Unibanco. Em dezembro do ano passado, os economistas do banco
estimavam que a taxa, então em 2% ao ano, terminaria 2021 em 3,5%, nível em que
permaneceria até o fim de 2022. Na semana passada, a instituição revisou o seu
cenário econômico, que passou a contemplar uma Selic de 9,25% no fim deste ano
e de 11,25% no fim do ano que vem - para o Itaú Unibanco, a taxa deve atingir
esse patamar já no primeiro trimestre de 2022. Esses juros mais altos levarão a
uma deterioração significativa da atividade econômica, na visão do banco: em
vez de um crescimento de 2,5% em 2022, como o projetado no fim de 2020, a
previsão atual é de uma retração do PIB de 0,5%. Hoje, a Selic está em 7,75% ao
ano.
O quadro para a inflação piorou muito. Em
dezembro do ano passado, o Itaú Unibanco projetava um Índice Nacional de Preços
ao Consumidor Amplo (IPCA) de 3,3% em 2021 e 2022; agora, espera que o
indicador oficial do regime de metas fique em 9% neste ano e em 4,3% no ano que
vem.
A inflação em 2021 se mostrou muito mais
resistente do que se apostava na virada do ano. Preços de alimentos seguiram
pressionados, com commodities agropecuárias em níveis elevados. A energia
elétrica também surpreendeu para cima, num cenário de piora da crise hídrica,
que jogou as tarifas nas alturas. O petróleo em alta, combinado ao câmbio mais
fraco, tem levado a reajustes expressivos dos preços dos combustíveis. Há ainda
o efeito inflacionário dos gargalos nas cadeias produtivas decorrentes dos
efeitos da pandemia da covid-19, um problema global.
A esse ambiente em si já complicado,
somam-se os impactos das incertezas fiscais e políticas provocadas pelo governo
de Jair Bolsonaro. Essas indefinições pressionam o câmbio, impedindo que o real
fique num nível mais valorizado, que seria compatível com a solidez das contas
externas. O Itaú Unibanco, por exemplo, projetava em dezembro do ano passado
que o dólar fecharia 2021 e 2022 em R$ 4,75; hoje, prevê uma moeda americana em
R$ 5,50 no fim deste ano e do próximo. Um câmbio mais apreciado amorteceria
parte do efeito da alta das commodities agropecuárias e do petróleo. Em resumo,
as incertezas causadas pelo governo Bolsonaro alimentam a inflação, por manter
o câmbio muito mais desvalorizado do que o sugerido pelas contas externas.
Sócio da BRCG Consultoria, Livio Ribeiro
estima uma Selic de 9,25% no fim deste ano, que sobe a 11,25% no primeiro
trimestre de 2022, nível em que ficar até o fim de 2023. Com essa trajetória
dos juros básicos, prevê ele, o IPCA fica em 9,5% neste ano, em 4,9% no ano que
vem e em 3,3% no ano seguinte, apenas então próximo da meta perseguida pelo
Banco Central, que cai de 3,75% em 2021 para 3,5% em 2022 e 3,25% em 2023.
Também pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação
Getulio Vargas (FGV Ibre), Ribeiro diz que a sua projeção para a Selic tem viés
de alta. Ele destaca que, conjunturalmente, o nível de juros necessário para
controlar a inflação subiu muito. Além disso, há a dúvida se o juro neutro
aumentou, afirma Ribeiro, referindo-se à taxa que não acelera nem desacelera a
inflação, com a economia sem capacidade ociosa. Nas contas do BC, essa taxa é
de 3% em termos reais (descontada a inflação); para Ribeiro, está na casa de
3,75%. O drible no teto de gastos, vistos por grande parte dos analistas como o
abandono da âncora fiscal, tende a levar a reestimativas do juro neutro, o que
implica a necessidade de taxas estruturalmente mais altas.
A decisão do governo de elevar o valor
médio do Auxílio Brasil para R$ 400 até o fim do ano que vem, com parte dos
gastos fora do teto, provocou uma forte deterioração de expectativas. A medida
indica a disposição da administração de Bolsonaro em elevar gastos no ano
eleitoral, num cenário em que o Centrão pretende arrumar espaço no orçamento
para aumentar o fundo eleitoral de R$ 2 bilhões para R$ 5 bilhões e para bancar
R$ 16 bilhões em emendas do relator. Além disso, a proposta de adiar cerca de
R$ 50 bilhões dos R$ 89 bilhões de pagamento de precatórios previstos para
20022 já havia causado danos à credibilidade fiscal do governo, considerada um
calote por vários especialistas em contas públicas.
Para Ribeiro, o conjunto de iniciativas do
governo nessa área são um “um gigantesco e casuístico drible nas regras
fiscais”, abrindo um espaço para gastos extras entre R$ 85 bilhões e R$ 100
bilhões em 2022. Ele lembra ainda que a diferença entre o custo da dívida pública
e o crescimento da economia será bastante desfavorável no biênio 2022 e 2023,
um cenário obviamente negativo para o endividamento bruto como proporção do
PIB.
Nesse ambiente, o Brasil voltará a conviver
com uma Selic mais elevada por um tempo considerável, especialmente se forem
mantidas as incertezas sobre as contas públicas. Com um presidente refém do
Centrão, que pensa apenas em se reeleger, esse quadro de indefinição não deve
mudar. O país, desse modo, desperdiça o trunfo de ter juros mais baixos, um
fator que impulsionaria o investimento, estimularia o crédito e reduziria os
gastos com a dívida pública.
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