Alta de preços de produtos essenciais, como alimentos, prejudica os mais pobres
Cássia Almeida* / O Globo
RIO - A inflação está deixando o mercado de trabalho cada vez
mais desigual: 70% dos trabalhadores ganham hoje menos do que recebiam em 2019,
antes da pandemia. E o peso da alta de preços na desigualdade, que tem sido
recorde nos últimos tempos, triplicou desde o terceiro trimestre do ano
passado.
Essas são as conclusões de um cruzamento de
dados inédito feito pelo economista Daniel Duque, da Fundação Getulio Vargas
(FGV), ao medir o efeito da inflação na massa de trabalhadores.
— Os mais ricos consomem mais serviços e
menos alimentos e acabam tendo uma inflação menor. Infelizmente, a tendência é
só piorar com a aceleração da inflação, com grande perda de consumo das camadas
mais vulneráveis — prevê o economista.
Ele fez os cálculos com o Índice de Preços
ao Consumidor Amplo (IPCA, a inflação oficial) de junho, que ainda estava em
8,35%, considerando o acumulado em 12 meses. Hoje, está em 10,25%.
Portanto, os efeitos devem ficar mais
intensos com o avanço dos preços. O IBGE mostrou que o rendimento do trabalho
teve queda histórica de 10,2% em agosto.
A conta de Duque é baseada no redimento do
trabalho domicilar per capita, ou seja, dividido pelo número de pessoas da
família. Os 30% que conseguiram chegar a 2021 ganhando mais que há dois anos
pertencem ao topo da pirâmide social.
Quanto mais perto da ponta, maior o ganho.
Entre os 10% mais ricos, o ganho real chegou a 8%. Já entre os que estão nas
camadas médias de renda, na faixa entre os 30% e 40% mais pobres, o recuo
chegou a 28%.
Duque lembra que a inflação mais alta no
terceiro trimestre deste ano fez a situação ficar ainda mais dramática, sem
contar os que ficarão sem qualquer transferência do governo, com o fim do
auxílio emergencial. O benefício deixou de ser pago no mês passado. O Auxílio
Brasil, o substituto do Bolsa Família, não será distribuído a milhões que
estavam recebendo o auxílio emergencial:
— Certamente o poder de compra pós-auxílio teve forte queda, não só pela inflação ser pior para os mais pobres. Houve redução nominal nas transferências (frente ao ano passado, quando o auxílio emergencial era de R$ 600).
Outros números corroboram o efeito danoso
da inflação na vida dos trabalhadores. Bruno Imaizumi, economista da LCA
Consultores, constatou que o Índice de Miséria, que une inflação e desemprego,
bateu recorde em agosto, chegando a 23,51, o maior nível desde 2012, início da
série.
— A inflação está muito concentrada em
itens essenciais, alimentos, combustíveis, energia elétrica. E depois de uma
perda de 12 milhões de empregos, ainda estamos com 5 milhões a menos que antes
da pandemia. Estamos vendo uma recuperação, mas a qualidade do emprego que está
voltando é pior que antes da pandemia — diz o economista.
No início da pandemia, a pedagoga Raiane Sá
viu seu salário de professora de História e Português cair quase 40%. Perdeu
mil reais do salário de R$ 2.600. Deu uma guinada na carreira. Investiu em um
salão de beleza no quintal de casa e consegue ganhar R$ 2.800 agora. Mas a
inflação já comeu parte desse aparente ganho de renda. Levou 4,3% do seu poder
de compra.
— Eu amo lecionar, mas na escola a gente
trabalha muito mais, levamos trabalho para casa. Aqui no meu espaço, na hora
que eu fecho o meu salão, acabou e vou descansar. E está sendo dentro de casa,
eu não preciso mais pagar ninguém para ficar com as minhas duas filhas enquanto
vou trabalhar.
Desemprego alto
Para Imaizumi, as perspectivas para o ano
que vem não são as mais favoráveis para o emprego e a renda. Crise hídrica,
sanitária, fiscal, política, falta até fertilizante. Tudo isso, segundo ele,
impedirá uma queda mais forte da taxa de desemprego.
Em 2020, ficou em 13,5% na média do ano.
Cairá para 13,2% se forem confirmadas as previsões da LCA. E, em 2022, para
12,5%, o que ainda representará mais de 12 milhões de desempregados.
Mesmo os que mantiveram o emprego com
carteira assinada na pandemia não conseguiram proteger o salário da inflação.
Quando as taxas estão altas, a negociação para reposição fica mais difícil nos
acordos e convenções coletivas.
Segundo o Salariômetro, da USP, coordenado
pelo professor Helio Zylberstajn, os reajustes ficaram 1,9 ponto percentual
abaixo do INPC dos últimos 12 meses, em setembro. Foi a maior perda no
intervalo de um ano. Em nenhum mês desde outubro do ano passado, houve ganho
real de renda. Alternaram-se estabilidade ou perda.
— É a combinação de duas coisas ruins do
ponto de vista do trabalhador. Com inflação alta é muito difícil repor. Quando
está em 2%, 3% é mais fácil, mesmo que a economia não esteja lá essas coisas.
Mas qual empresa pode dar 10% de aumento na sua folha?
O outro ponto é a taxa de desocupação muito
alta que tira poder de barganha dos trabalhadores, diz o professor da USP.
— Os sindicatos não têm força para negociar
reajustes maiores. O resultado é esse que 67% das negociações não recompuseram
a inflação.
Se a inflação não tivesse disparado neste ano, o trabalhador poderia ter visto alguma recuperação salarial. Pelas contas de Duque, o rendimento efetivo teria subido 1,1% em agosto, se o IPCA fosse o mesmo de dezembro de 2020, quando o índice anual ficou em 3,8%.
Desigualdade estrutural
Para o pesquisador, o novo programa Auxílio
Brasil tem um desenho pior que o do Bolsa Família, centralizando as decisões no
governo federal, com previsão de bônus para participantes de olimpíadas que
“não fazem muito sentido num programa de combate à pobreza”.
Outro problema é a fonte de custeio do
programa. O governo não tem certa a receita para prosseguir com o auxílio no
ano que vem, se a proposta de emenda constitucional (PEC) dos Precatórios não
passar no Congresso. O projeto adia o pagamento das dívidas judiciais contra a
União, abrindo espaço no Orçamento para o novo programa.
A PEC foi aprovada em comissão especial na
Câmara dos Deputados, mas enfrenta resistência para ser apreciada em plenário.
Um dos empecilhos é a inclusão no seu texto da mudança no cálculo do teto de
gastos, que aumentaria ainda mais o espaço fiscal. Na prática, o limite para o
crescimento das despesas, vinculado à inflação, será flexibilizado.
O economista diz que, quando o mercado de
trabalho entrar na normalidade, haverá “uma desigualdade estruturalmente maior
em relação ao período pré-pandemia”.
*Colaborou Julia Noia
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