Folha de S. Paulo
Uma geração de órfãos crescerá sob o
estigma do luto
"Amanhã que é dia dos mortos/ Vai ao
cemitério/ Vai/ E procura entre as sepulturas/ A sepultura de meu pai/ Leva
três rosas bem bonitas/ Ajoelha e reza uma oração/ Não pelo pai, mas pelo
filho:/ O filho tem mais precisão/ O que resta de mim na vida/ É a amargura do
que sofri/ Pois nada quero, nada espero/ Em verdade estou morto ali."
Os versos do "Poema de Finados",
de Manuel Bandeira, têm mais de meio século, porém são de uma atualidade que
reflete a trágica realidade que se instalou em mais de meio milhão de lares de
brasileiros que viram seus afetos, vítimas da Covid-19, morrer nos últimos
meses.
Ainda não se tem clareza do impacto social das mais de 607 mil vidas perdidas no país, muitas delas em decorrência da negligência no trato da crise sanitária, segundo os indícios. Mas já se sabe que uma geração de órfãos crescerá sob o estigma do luto.
Estudo publicado pela revista científica
Lancet apontou que entre março de 2020 e abril deste ano, pelo menos 130 mil
crianças e adolescentes de até 17 anos perderam algum dos pais ou responsáveis
no Brasil. Considerando que a Covid afeta de maneira mais letal as pessoas
negras, é possível inferir que a maioria desses órfãos seja preta e parda.
Independentemente da cor da pele, como diz
o poema, tratam-se de "filhos com muita precisão". Não só de oração,
mas de ação, pois estão carentes de atitudes que possam contribuir efetivamente
com seu desenvolvimento humano.
Além deles, milhares de mães, pais, avós,
companheiros, sobrinhos, netos, amigos choram a perda de seus entes para um
vírus que pode ser controlado com medidas como vacinação em massa e uso de
máscara. Mas a negação e a mentira adubaram terreno fértil para a morte.
Revolta saber que a falta de ar que asfixiou milhares foi causada por um joelho imaginário que impediu a respiração sem precisar tocar no pescoço de ninguém. O luto é doído, sofrido, intenso. Restam o amor, a saudade e a crença na ciência, em memória e em respeito aos que partiram.
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