Para cientista político, superestimação dos riscos à democracia é subproduto da polarização
Fernando Canzian / Folha de S. Paulo
SÃO PAULO
- O
Brasil não apresentaria "comorbidades institucionais" como outros
países que sucumbiram ao avanço de presidentes autoritários que minaram o
funcionamento de suas democracias.
Na opinião do cientista político e
colunista da Folha, Marcus André Melo, é
"descabido, para cenários à esquerda ou à direita", o risco de
"venezuelização" do Brasil, em que as instituições perderiam espaço
para o autoritarismo.
"A superestimação dos riscos à democracia é mais um subproduto da polarização. O fantasma da 'venezualização' interessa aos principais contendores, pois esvazia a discussão em torno de políticas econonômica e ambiental, entre outras", afirma em entrevista.
Chegamos
ao segundo turno radicalmente polarizados e com alta imprevisibilidade sobre
quem vencerá. O que explica a divisão e o que esperar de cada um dos lados no
pós-eleição?
A polarização é que explica grande parte do
que estamos observando no pleito atual. Não se trata de algo passageiro, mas
que tem uma ancoragem mais profunda. Deve marcar a política no país por algum
tempo.
Mas ela não se expressa na forma de
conflito de opinião em torno de políticas; é afetiva, marcada pela rejeição ao
adversário. Já temos evidências, e não só no Brasil, de que as divergências
programáticas importantes se limitam a poucas questões, como posse de armas ou
o aborto.
O principal
impacto da polarização foi ter consolidado precocemente as duas
candidaturas, em um eleitorado que no início estava claramente dividido em três
grupos. E também a falta de discussão de programas.
O que é surpreendente é a competitividade
de Bolsonaro, considerando que há em vários países o que os especialistas
chamam de viés anti-incumbente, devido a choques políticos como a Covid
e a guerra da Ucrânia, que desgastam quem está no cargo.
O uso
da máquina, da caneta presidencial, tem o seu papel. Mas há algo mais
profundo que tem a ver com a tempestade perfeita de 2012-2016: a combinação de
crise na economia e mega escândalos como o mensalão e o petrolão, que produziu
uma rejeição virulenta ao PT, que ressurgiu. A derrocada da economia após uma
expansão longa produziu também uma brutal reversão de expectativas, que
irrompeu em 2013.
Deslocamentos tectônicos na política não se
equilibram após um mandato. Já provocaram realinhamento partidário importante
agora, com o núcleo duro do bolsonarismo obtendo 36% das cadeiras, o
encolhimento do PSDB e do PSB, entre outros. Eles refletem também
transformações sociais mais amplas.
Setores da
sociedade civil apoiam Lula temendo a erosão do arcabouço institucional com
Bolsonaro. Vê esse risco, numa espécie de "chavismo de direita", em
que o presidente mine a democracia com apoio de parcelas radicais do
empresariado e dos militares?
A 'venezualizacão' parece-me inteiramente
descabida, para cenários à esquerda ou à direita. Os dois países são
inteiramente distintos em termos de experiência pregressa com a democracia.
Desde 1900, são quase 60 anos de democracia no Brasil, contra com 46 anos na Venezuela.
Se somarmos o sistema semi-competitivo da República Velha, teríamos um século
de democracia e regimes mais abertos
A Venezuela sofre da maldição de recursos
naturais. A riqueza petrolífera afetou a governança fortemente. A economia é
rentista e inteiramente dependente do Estado, com 90% da receita pública gerada
pelo petróleo. A sociedade civil, mídia e empresariado são débeis.
A superestimação dos riscos à democracia é
mais um subproduto da polarização. O fantasma da 'venezualização' interessa aos
principais contendores, pois esvazia a discussão em torno de política
econômica, da crise ambiental, entre outras. Em 2018, o diagnóstico era
semelhante, senão ainda mais hiperbólico. Eu concordo com o cientista
político Adam
Przeworski quando afirmou à Folha que
"a morte da democracia virou bordão para vender jornais".
Uma nova onda de pesquisas na área da
ciência política tem chamado atenção para o fato de que a ascensão de
populistas gerou ameaças em vários países, mas a autocracia só se materializou
em poucos. Jason Brownlee, por exemplo, mostrou que, entre 2000 e 2019, dois
terços dos países que sofreram algum "democratic backsliding"
[retrocesso democrático] reverteram o processo.
Por que a democracia sobreviveu após uma
década de abusos de Rafael Correa [Equador], Evo Morales [Bolívia] e tantos
outros, mas, na Venezuela, sucumbiu? Os raros retrocessos só ocorrem onde há
fatores de risco claros, como curta experiência democrática, petróleo, renda
baixa, entre outros.
Gosto da metáfora utilizada por Tom
Ginsburg [Universidade de Chicago] em sua análise sobre como a pandemia havia
afetado os regimes políticos de dezenas de países. Só houve abuso de poder onde
havia "comorbidades institucionais". Não foi o caso do Brasil, na sua
avaliação.
Eu diria que o mesmo vale para os riscos de
erosão grave da democracia. O Brasil não tem "comorbidades
institucionais", nem fatores de risco importantes. É claro que se pode
prever maior instabilidade institucional e cacofonia em alguns cenários. Mas
estamos falando de outro tema, não de crise constitucional aberta e
autocratização.
Ventila-se
especificamente a possibilidade, vencendo Bolsonaro, de procurarem aumentar o
número de ministros no STF. Haveria espaço para isso, ou de uma Proposta de
Emenda Constitucional alterando as regras da reeleição?
Aqui a melhor comparação é a Argentina, não
a Venezuela. Carlos Menem [1930-2021] aumentou o número de juízes da Suprema
Corte de cinco para nove. Néstor Kirchner [1950-2010] promoveu o impeachment de
dois juízes da Suprema Corte e pressionou três a se demitirem, o que acabaram
fazendo. A democracia sofreu, mas não sucumbiu.
O que viabilizou estas intervenções foi o
controle sólido e disciplinado dos peronistas no Senado. Entre nós, o
multipartidarismo freia o controle hegemônico. Não tenho bola de cristal, mas
penso que propostas como estas não prosperarão dentro da atual composição do Congresso.
Os partidos de sustentação de Bolsonaro
detêm apenas 36% da Câmara e não terá maioria do Senado [a situação é
indefinida pois cinco senadores disputam a eleição para governador]. A
aprovação de PECs exige quórum qualificado de 60%. Impeachment de juízes seguem
barreiras processuais severas. Mas muito mais importante é que, mesmo no núcleo
partidário do bolsonarismo, muitos parlamentares não apoiariam propostas neste
sentido.
Estas pautas contam com apoio minoritário
do Parlamento, que é controlado por uma maioria conservadora difusa, não
programática. Para não falar da sociedade civil, cujo apoio à democracia atinge
79% [segundo o Datafolha], e do próprio STF, que será ponto de veto.
Provavelmente tais propostas nunca serão postas em julgamento.
Em troca
de apoio, Bolsonaro ampliou o poder dos congressistas com o orçamento secreto.
Lula sinalizou querer modificar isso. Bolsonaro, ainda não. Há chance de marcha
à ré nesse ponto?
O chamado
orçamento secreto representou um processo que chamei de hiperdelegação
da autoridade orçamentária aos partidos e presidentes das casas legislativas.
Bolsonaro enfrentava um duplo dilema: como criar um escudo legislativo contra o
impeachment e como aprovar sua agenda no Congresso? A solução foi o orçamento
secreto.
A responsabilidade sobre uma fatia
considerável da parte discricionária do Orçamento [o espaço que havia sobrado
de depois da impositividade das emendas individuais e de bancada], digamos,
mais de R$ 20 bilhões, foi delegada aos partidos para que deliberassem sobre
sua alocação. O funcionamento da Comissão Mista de Orçamento é inteiramente
partidário: desde a composição até a escolha do presidente. O relator,
demissível pelo presidente a qualquer momento, é mero agente da maioria
partidária.
Importante enfatizar que o Executivo retém
o poder de contingenciamento, caso compromissos não sejam honrados. Mas a
racionalidade coletiva vai para o espaço. Recursos públicos são alocados sem
racionalidade estratégica.
Sim, o processo tornou-se mais opaco, não
se informava a autoria das emendas. No entanto, em termos estritos da
sistemática de como é exercido o controle interno, pela CGU, ou externo, pelos
TCU e TCEs, a autoria não importa: eles são atualmente exercidos através de
matriz de riscos e auditorias de conformidade. A corrupção grossa também ocorre
com maior transparência. Mas, claro, a responsabilização se enfraquece.
Os
políticos e partidos estão fortalecidos com o orçamento secreto e o fundo
partidário. Como vislumbra a relação do Executivo, seja com Lula ou Bolsonaro,
no próximo ciclo da Presidência?
São dois cenários radicalmente distintos.
Com Bolsonaro, seria business as usual. A forte ampliação da base fortalece, é
claro, o governo em suas pautas. Mas agora a situação é diferente do passado
porque o Legislativo se fortaleceu muito não só em relação ao Executivo, mas
também ao Judiciário.
Com Lula, a dinâmica muda, por que ele terá
que negociar não só fora de sua coligação [que detém 23% da Câmara], mas com a
centro direita. Sobretudo União Brasil, PSD e parte do MDB. Mudanças
constitucionais exigiriam barganhas com a oposição, o núcleo duro do
bolsonarismo.
Há uma mudança importante que é relevante
aqui: Bolsonaro agora tem um partido competitivo, o PL, e continuará no jogo. O
que significa que este partido se manterá na oposição.
Provavelmente a barganha futura poderá
envolver setores do PP e parlamentares isolados. A forte polarização atual, no
entanto, destruiu muitas pontes. Lula não terá condições de armar coalizões
altamente heterogêneas e hiperdimensionadas como no passado.
MARCUS
ANDRÉ MELO
Professor titular de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco,
ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA) e colunista da Folha.
4 comentários:
Ótima entrevista !
O papa Francisco não é tão otimista quanto o colunista, pois sua santidade rezou “a Nossa Senhora Aparecida para proteger e curar o povo brasileiro, para libertá-lo do ódio, da intolerância e da violência”. Ou seja, para nos salvar de um segundo mandato de Bolsonaro e das tentativas bolsonaristas de tumultuar a campanha eleitoral ou até atentar ainda mais contra as instituições democráticas!
"Brasil não tem problemas institucionais que possam favorecer o autoritarismo"
Tem, sim. Um deles, as forças armadas, não me deixa mentir. Cadê o relatório da
Auditoria das urnas? Aliás, q qui o exército, q deveria estar na Amazônia, tem q auditar urnas?
LULA terá um trabalhão pra resolver este e outros problemas. No caso das FA, terá q modificar fortemente o ensino das academias militares. Do jeito q tá, as FA são sempre uma incógnita e, pelo q vimos, impressionantemente manipuláveis.
Facilmente manipuláveis.
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