Especialista em governabilidade, professora do Iesp-Uerj considera que siglas precisarão se recompor
Por Caio Sartori e Paula Martini /
Valor Econômico
RIO - Referência nos estudos de governabilidade, a cientista política Argelina Figueiredo refuta a ideia de que o perfil do Congresso eleito possa ser empecilho para um eventual governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Por defender bandeiras como o combate à fome, Lula teria mais facilidade que Jair Bolsonaro (PL) na relação com o Legislativo. “Políticas de combate à pobreza são bem mais fáceis de congregar, porque é difícil o Congresso se negar a votá-las.” O atual mandatário, avalia a professora do Iesp-Uerj, representa uma forma distinta de encarar a política, concentrada em temas fragmentados e sem apelo a convergências, o que causa divisões nas instâncias partidárias. Ao Valor, Argelina analisa ainda o processo eleitoral, a futura configuração partidária e a força do bolsonarismo.
A seguir, os principais pontos da entrevista.
Valor: Com o Congresso eleito, como tende a ficar a
governabilidade do novo governo?
Argelina Figueiredo: Governabilidade
passa pelo presidente eleito ter um programa que seja reconhecido, um partido
de verdade e capacidade de negociação e de liderança. O acordo com os partidos
tem que ser com base nesses itens.
Valor: Estamos vendo o Centrão fortalecido, Congresso
conservador, o orçamento secreto. Que programa unificador poderia ser esse?
Argelina: Da parte do
ex-presidente Lula, conhecemos um programa. Aspectos voltados para o salário
mínimo, responsabilidade fiscal, combate à pobreza, diminuição das
desigualdades. Um programa de natureza de políticas públicas, sociais. O de
Bolsonaro também congrega boa parte da população, como temos visto, mas não são
políticas que vão abarcar a maioria dos brasileiros. São valores, sendo os
principais voltados para costumes conservadores, religiosos e em relação a
armas. A pauta de Bolsonaro não é direcionada para a sociedade toda.
Valor: O Congresso não parece alinhado com essas
pautas dele?
Argelina: Não vejo os
partidos tendo opinião coesa sobre esses programas de Bolsonaro. Políticas de
combate à pobreza são bem mais fáceis de congregar, porque é difícil o
Congresso se negar a votá-las. Já políticas que vão contra determinados grupos
são muito problemáticas. Afetam interesses e têm uma incerteza muito grande.
Valor: Muitas análises dizem que Lula não precisou ser
tão claro durante a campanha sobre como seria seu governo. Concorda?
Argelina: Nenhuma
campanha coloca, além do programa que é obrigatório, todos os detalhes. Mas há
diretrizes claras, pontos programáticos que têm a ver com a população como um
todo. Essa crítica foi muito mais uma demanda de grupos específicos.
Valor: Qual é a leitura da senhora sobre a eleição
deste ano?
Argelina: A de país
rachado, e está assim em função das visões distintas do que é governar e do que
é política. O centro ficou esvaziado, vide os resultados. Do lado do Lula,
vimos um programa de base social, com propostas de recuperar a administração
pública e vários aspectos que estão em frangalhos. A frente ampla no segundo
turno, já que os partidos de centro não estavam lá para Lula aglutinar, se deu
por pessoas: políticos, economistas, artistas. PT foi chegando ao centro, mas
não por partidos. Diminuiu a fragmentação partidária no país, mas aumentou a divisão
dentro de cada partido. Sobre Bolsonaro, acredito que tem um eleitorado “raiz”
que não passa de 20%. Os demais votam por outras razões, como o antipetismo.
Benefícios que ele distribuiu não deram muito resultado no primeiro turno, mas
depois influenciaram.
Valor: O que o bolsonarismo trouxe de novo para o
nosso processo eleitoral?
Argelina: Até 2014,
eleições eram focadas na questão econômica e social. Em 2018, entrou uma pauta
de dimensão diferente, que são os valores e o combate à corrupção como prioridades.
Minha impressão inicial era de que a gente retornaria à discussão anterior este
ano. Até um período, a campanha ficou mais concentrada nisso, mas depois voltou
novamente à corrupção e aos valores até chegar nas “fake news”.
Valor: Como avalia o pagamento de tantos auxílios em
ano eleitoral?
Argelina: É
completamente sem precedentes. Nem o Supremo, que tem sido um muro forte de
contenção, conseguiu impedir. São medidas ilegais. Nunca houve uso desse tipo,
e as instituições assistiram deitadas.
Valor: Outro aspecto marcante tem sido os ataques às
urnas. Como avalia o trabalho do TSE e o risco de termos um ‘terceiro turno’?
Argelina: TSE atuou de
forma eficiente com relação às urnas, mas não achei válido incluir militares no
primeiro comitê que foi criado. A ideia que me passa é de que, enquanto eles
[Exército e Bolsonaro] tiveram a possibilidade de ganhar, não viram nenhuma
razão para apresentar o relatório. No segundo turno, a coisa vai ser diferente
e vamos ter problemas.
Valor: O que esperar pós-eleição, com previsão de
resultado apertada? Diferença pequena fará o Congresso ser mais duro?
Argelina: Se Lula
vencer, temos que ultrapassar o período pós-eleitoral. Acredito que Bolsonaro
não vai ficar quieto. Haverá alguma forma de baderna, bagunça, manifestação por
parte dos chamados bolsonaristas “raiz”. Acredito que não haverá transição de
governo, com dados, ministérios colaborando. E não acho que Bolsonaro passará a
faixa. Se conseguirmos atravessar esse período com algum sucesso, estamos bem
encaminhados. Vamos ter um Congresso um pouco mais polarizado do que sempre
foi, mas acredito que, como a posição do governo vai ter que continuar sendo de
ir para o centro, participar do governo ainda será um ganho para os partidos.
Valor: O bolsonarismo veio para ficar?
Argelina: Veio para
ficar com essa onda conservadora, autoritária, que vai continuar funcionando
dentro do sistema político. Mas, no caso do governo Lula, não vai estar dentro
do governo, e sim na oposição. Essa pauta de valores corta um pouco os
partidos, eles ficaram fragmentados internamente. Vão ter que se recompor.
Valor: A menor fragmentação partidária ajuda ou
atrapalha a governabilidade?
Argelina: Um fator vai
dificultar a participação dos partidos no governo, que é um maior conflito
interno nas siglas.
Valor: O que Bolsonaro representou para o
presidencialismo de coalizão brasileiro?
Argelina: Do ponto de
vista da formação de coalizão, foi totalmente diferente no início, quando achou
que poderia governar com bancadas temáticas. Isso é impossível em governo de
coalizão porque bancadas temáticas são coesas apenas em relação aos temas nos
quais têm interesse. Os partidos têm capacidade de fazer valer interesses em
detrimento de causas pessoais.
Valor: Essa percepção o levou a abraçar o Centrão?
Argelina: Bolsonaro
mudou a partir de 2021. Como diria o [cientista político] Cláudio Couto, ele
entrou no Centrão, não foi o Centrão que entrou no governo. Deu cargos e passou
a defender interesses. Isso fica claro hoje, quando tem uma assessoria no processo
eleitoral que não concorda com boa parte das atitudes dele, essa pauta dispersa
de valores - inclusive de valores autoritários. Foi uma negociação que teve a
ver com a defesa do mandato por parte de Bolsonaro e a defesa de interesses
individuais pelo Centrão.
Valor: E o orçamento secreto?
Argelina: O orçamento
secreto é parte da concessão aos interesses dos partidos do Centrão, com o
controle que passaram a ter do processo orçamentário.
Valor: Se eleito, Lula tende a manter o arco de apoios
ou isso tudo é só para derrotar Bolsonaro?
Argelina: Se Lula fizer isso, passar a desconsiderar os grupos que o apoiaram, é suicídio político. E ele não tem tendência a se matar.
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