sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Entrevista | Maria Hermínia - Despolitização foi a marca da eleição

Professora critica falta de debate sobre proposta social, política econômica e papel do Estado

Por Daniela Chiaretti /Valor Econômico

SÃO PAULO - A campanha para presidente de 2022 teve como marca a despolitização extrema, na análise de Maria Hermínia Tavares de Almeida, professora titular aposentada de ciência política da Universidade de São Paulo. “Sem dúvida é a campanha mais despolitizada que já vi. Uma campanha onde não se discute proposta social, onde não se discute política econômica, onde não se discute o papel do Estado, onde não se discute nada. É um jogo pesado o tempo inteiro, dos dois lados”, critica. De pontos positivos ela enxerga o amadurecimento da sociedade na discussão do racismo e em permitir que o tema ambiental entre definitivamente na agenda.

Maria Hermínia, membro e uma das fundadoras da Comissão Arns, indicou uma grande mudança no espectro político da direita, que encontrou em Jair Bolsonaro um líder populista, e, portanto, forte eleitoralmente. A esquerda, por sua vez, protagonizou um grande avanço político com o apoio de muitos e diversos grupos em uma frente democrática em torno de Luiz Inácio Lula da Silva. “A grande revolução ocorreu no hemisfério da direita, não da esquerda”, constata. “O Brasil encontrou sua liderança de direita que não é de elite, é popularesca. Daí sua força”, diz. No polo oposto, ela enxerga na multiplicidade de apoios e na convergência de forças em volta de Lula, a conquista de um valioso patrimônio político: “As pessoas perceberam que era a hora da generosidade e de deixar para trás as mágoas porque o país está sob uma ameaça muito grande.”

A seguir os principais trechos da entrevista ao Valor:

Valor: A radicalização do discurso nestas eleições é algo que nunca se viu antes. A senhora concorda?

Maria Hermínia Tavares de Almeida: É verdade. Foi muito pesado em 2014 também, a propaganda eleitoral, a maneira como Marina Silva foi destratada pelo PT. Mas dessa vez há na Presidência da República um político com as características de um presidente de extrema-direita, que quer se reeleger, que joga pesado. Sem dúvida é a campanha mais despolitizada que eu já vi como adulta. Uma campanha onde não se discute proposta, onde não se discute política econômica, onde não se discute o papel do Estado, onde não se discute proposta social, nada. É um jogo pesado, o tempo inteiro, dos dois lados. A propaganda eleitoral no rádio ou na televisão é só denúncia. O que está em jogo é a extrema direita versus uma coisa muito ampla que eu chamaria de uma coalizão de defesa da democracia. Não tem uma discussão substantiva importante no debate, na campanha eleitoral, nada. É uma campanha muito suja, dura, com “fake news” dos dois lados, embora eu ache que as “fake news” do PT sejam mais reativas.

Valor: Uma campanha feita com as redes sociais.

Maria Hermínia: É a segunda campanha que se faz num contexto em que as redes sociais são importantes. Até a campanha de 2014 era basicamente televisão. Não tenho claro qual é o peso dessas coisas. Agora todos fazem campanha em todos os lugares, mas a disseminação de “fake news”, acredito é algo que veio para ficar.

O Brasil encontrou sua liderança de direita que não é de elite, é popularesca. Daí sua força”

Valor: Como vê o papel da sociedade civil no pós-eleição?

Maria Hermínia: A sociedade civil organizada foi um dos grandes esteios da política de contenção do governo do presidente Bolsonaro, o Judiciário foi outro, mesmo o Congresso foi outro. Se olhar bem, as pautas mais complicadas de Bolsonaro não passaram no Congresso. Essas forças trabalharão em uma situação mais difícil se Bolsonaro ganhar, mas continuarão aí. Creio que em torno da candidatura Lula hoje existe um agrupamento de forças importante que vai muito além da esquerda. Tem lideranças políticas, empresariais, há um establishment que engoliu as restrições da candidatura de Lula e está em torno dele. Isso não é desprezível. A tal frente democrática que todo mundo dizia que tinha que fazer, foi feita, e com uma parte da elite brasileira. Tem gente de peso apoiando a candidatura que não são pessoas de esquerda. Começou no primeiro turno, com o movimento que Lula fez na direção de Geraldo Alckmin e o que ele trouxe, mas hoje é muito mais do que isso. Os apoios são muito impressionantes.

Valor: Lula é um político muito resiliente. Participou de seis eleições, ganhou duas. Isso é comum em outros lugares?

Maria Hermínia: Lula construiu sua liderança política participando do processo eleitoral sempre com um bom desempenho. Ganhou duas vezes, mas foi para o segundo turno já na primeira eleição, coisa que não era muito previsível. Tem uma imagem pública nacional consolidada, e isso é raro na história do presidencialismo. Depois, quando foi preso, tinha-se a impressão de que ele era algo do passado. Mas com as revelações sobre os problemas da Lava-Jato e com a anulação dos seus processos, deu certa volta por cima em sua história e na crise política que o pegou de uma maneira muito dura. É uma pessoa de origem pobre, que veio como migrante do Nordeste para São Paulo e terminou na fábrica no ABC. Isso em um país de muitos pobres. Tem muita identificação e ele acaba sendo uma referência positiva para milhões de brasileiros que tem história parecida com a dele e que é uma história vencedora. Acho que isso tudo constrói uma imagem forte dele como uma liderança.

Valor: Esses aspectos são complicadores para o fato de não ter feito sucessor?

Maria Hermínia: Lula é muito maior do que o PT. Em 1989, quando se tornou um candidato presidencial com potencial de se eleger, quando passou pelo segundo turno, começou a adquirir uma dimensão que é muito maior do que a do Partido dos Trabalhadores. O PT é um partido de esquerda que nunca teve mais do que 20% dos votos do Congresso. O PT teve governadores e prefeitos, governou cidades importantes. É o único partido nacional que temos, é um partido muito enraizado na sociedade brasileira, mas com um eleitorado muito menor do que o do Lula. Isso é uma realidade. É sempre o candidato natural do PT e com isso há uma dificuldade de se construir lideranças alternativas.

Valor: Mas isso não é um risco para a sobrevivência do PT?

Maria Hermínia: Lideranças surgem quando existem oportunidades. É difícil a gente dizer ‘ah, o Lula acabou, vai ser um problema para o PT’. O PT tem muitas lideranças importantes, mas nenhuma delas de projeção nacional. A única é a Dilma [ex-presidente Dilma Rousseff], que não é uma liderança forte e nem tem uma imagem muito positiva. O outro foi o Haddad [Fernando Haddad, atual candidato ao governo de São Paulo] que, afinal, não se saiu mal em 2018, se a gente levar em consideração a campanha que o PT fez. Foi a pior campanha da história do PT, muito ambígua. O tempo inteiro não se sabia se era uma campanha para liberar o Lula da prisão ou para eleger Haddad. Era uma campanha para perder, foi desastrosa. Mesmo assim Haddad teve uma votação significativa.

Todo governo de coalizão como o nosso tende à moderação exatamente porque não tem maioria para se impor”

Valor: Alguns dizem que se não fosse Lula, Bolsonaro teria ganho no primeiro turno.

Maria Hermínia: Não sei, porque se não fosse Lula, a situação seria diferente. A primeira eleição de Lula foi em 2002. A partir de 2006, quando se olha os mapas eleitorais, é muito claro: quase não se alteram. O de 2006 é igual ao de 2014 e é igual ao de agora nos Estados onde o PT ganhou e nos Estados onde, no passado, o PSDB ganhou. Em 2018 foi um pouco diferente, mas não muito. Tem crise, tem um monte de coisa, quando se vai ver a o resultado eleitoral e a distribuição dos votos, é uma divisão muito estável. Onde o PT ganhou e onde o PSDB ganhava, o mapa é igual. Existe uma estabilidade do eleitorado e a clivagem é PT e anti-PT. O que mudou foi o anti-petismo. O que mudou foi a liderança do anti-petismo. A mudança ocorreu no hemisfério da centro-direita.

Valor: O que quer dizer?

Maria Hermínia: O PSDB, no plano nacional, encabeçou essa frente anti-petista de 2002 até 2014. E debaixo dele tinha de tudo - tinha centro, esquerda moderada e essa gente que depois se identificou com Bolsonaro. O que aconteceu em 2018 é que o antipetismo mudou de liderança. Hoje a sua expressão política é Bolsonaro. E é forte isso. Sabe por quê? Porque Bolsonaro é um líder popular.

Pela primeira vez este universo que vai do centro-direita até a extrema direita tem uma liderança que não é elite e portanto, é forte. E mesmo se perder a eleição, não vai desaparecer. A direita encontrou uma liderança que consegue ganhar eleição, o que não conseguia desde 2002.

Valor: Como a senhora enxerga essa direita?

Maria Hermínia: Ela é múltipla, tem muita gente estudando isso.

Valor: O candidato ao governo de São Paulo Tarcísio de Freitas e o governador de Minas Gerais Romeu Zema são os expoentes de uma nova direita no Brasil?

Maria Hermínia: Não sei, é cedo para dizer. Foi gente que surgiu no rastro do bolsonarismo e não está claro se terá luz própria por muito tempo. O que está claro é que essa expressão mais civilizada, vamos dizer assim, da direita no plano nacional, que era o PSDB, isso acabou. Temos quase 10 anos de crise e o grande perdedor nessa crise é o PSDB. A grande revolução ocorreu no hemisfério da direita, não da esquerda. A esquerda é estável, não só do ponto de vista de seus votos, como de sua liderança que continua sendo o Lula e o PT. A grande mudança foi no hemisfério do centro para a direita, onde a direita mais civilizada, mais liberal ou o centro direita mais liberal, perdeu espaço para os bolsonaristas e uma liderança de tipo populista e, portanto, forte eleitoralmente. Agora o Brasil encontrou sua liderança de direita que não é de elite, é popularesca. Daí sua força.

Valor: E essa nova configuração do Congresso, que parece ser cada vez mais conservador?

Maria Hermínia: Não sei se é cada vez mais, tem que olhar. Há um estudo feito pelos cientistas políticos Timothy Power e Rodrigo Rodrigues onde analisam a votação por município no Congresso desde a primeira eleição. Eles mostram que o Congresso sempre foi conservador, mesmo sob Lula. No governo Lula, há uma aproximação maior ao centro do que nos outros, mas o Congresso sempre foi majoritariamente conservador, tinha uma fragmentação partidária muito grande e se governou assim. O que talvez tenha aumentado agora é um grupo pequeno de uma direita mais ideológica, mas o grosso da direita é o Centrão pragmático. Qualquer governo considera governar dessa forma.

Valor: Mas o perfil do Congresso é diferente.

Maria Hermínia: A composição do Congresso é parecida com o país. Não o espelha completamente, mas é um pouco a expressão do país. O que houve foi uma queda muito significativa no número de partidos no Congresso nessa eleição, e os partidos que hoje são núcleo do governo Bolsonaro ganharam força. Mas isso não quer dizer que um governo de centro-esquerda não possa lidar com esse Congresso. Parte dessa gente é muito pragmática e muito disposta a negociar com o governo de turno. No Brasil não se tem governo partidário, de um único partido. O que significa que quando você faz coalizão tem que incluir no governo, nos postos e na definição das políticas, os seus aliados. Todo governo de coalizão como o nosso tende à moderação exatamente porque não tem maioria para impor seu programa.

Valor: Como a senhora vê o Brasil saindo desse período eleitoral? Que sociedade é essa?

Maria Hermínia: Primeiro precisamos ver se saímos. Por mais que as pesquisas possam se enganar, é difícil que todas digam que Lula está na frente e ele perder a eleição. Pode acontecer, mas é provável que ganhe, e com uma margem estreita. Embora não seja especialista em futuro, estou convencida que Bolsonaro e seus adeptos mais fervorosos terão algum tipo de reação para tentar tirar a legitimidade do resultado das urnas. Acho que durante um certo período teremos dias muito tumultuados. E aí sim as lideranças em um sentido amplo -- os governadores eleitos, lideranças importantes do Congresso, o STF e o Superior Tribunal Eleitoral, a imprensa - terão um papel importante estabilizador para dizer: “Não, aqui nesse país, quem ganha, leva”. A palavra de ordem será ‘respeito às urnas’.

Acho que além dessas lideranças públicas e privadas que podem ter um papel importante, também as Forças Armadas terão um papel importante. Não temos claro o que acontece lá e qual a disposição da hierarquia das Forças Armadas para dizer “não, resultado de urnas em uma democracia é sagrado”.

Valor: A senhor acredita em um fim de ano tenso, então.

Maria Hermínia: Quem define as eleições são os eleitores e, portanto, a grande massa dos pobres desse país. Terminada a eleição, empresários, intelectuais, a hierarquia das igrejas, tudo isso terá importância no desfecho do terceiro turno. Acho que vai haver terceiro turno, e não será nas urnas, mas em uma disputa que pode envolver provocação e uma porção de coisas. Quando você junta em torno de si pessoas violentas, você não consegue controlar. Uma das bombas estourou antes da eleição, no caso Roberto Jefferson. Quantos jovens e senhores destrambelhados tem um arsenal como aquele em casa? A gente não sabe o que pode acontecer.

O Brasil é um país complexo, de muitos interesses, tem os governadores eleitos, tem os deputados eleitos. A democracia vai criando interesses na sua continuidade.

Valor: O mundo está olhando para essa eleição.

Maria Hermínia: Olhe o tamanho do Brasil. Felizmente as eleições nos Estados Unidos não confirmaram Donald Trump, porque se ele estivesse no governo dos Estados Unidos a situação seria diferente, mais favorável para Bolsonaro. O mundo ocidental olha com preocupação para o Brasil em relação ao que pode acontecer.

Valor: E no caso de Jair Bolsonaro se reeleger?

Maria Hermínia: Daí se consolida, tem uma parte do Brasil que escolheu isso. Acho que vai ficar mais difícil internacionalmente para o país e quem esteve na defesa das instituições nesse período, vai continuar tendo que estar defendendo. Será uma grande derrota, mas não será a última porque em política não tem isso. O jogo sempre continua de alguma maneira. Vai ter que continuar, com mais vantagem para ele.

Valor: Há algum amadurecimento ou algo positivo no meio de todo esse momento conturbado?

Maria Hermínia: Do ponto de vista da percepção dos problemas, o tema ambiental entrou na agenda. Não entrou só pelo pelos atores nacionais, que são muitos, são importantes e estão produzindo coisas muito interessantes, mas entrou também porque isso está na agenda internacional. Isso é uma mudança. O tema ambiental entrou e por mais que seja uma agenda difícil de implementar, foi trazida pela sociedade e pelo o que acontece no mundo. Outra coisa que acho que avançou na sociedade brasileira foi a consciência do racismo. Porque as barbaridades que a gente vê denunciadas sempre ocorreram, mas hoje existe uma sensibilidade maior e uma reação maior a isso. Mas o grande avanço político foi a aproximação das forças de centro-esquerda na campanha eleitoral. Acho que se formou uma frente. Tenho orgulho de participar de uma pequena organização, que é a Comissão Arns, que fez isso desde o primeiro dia, ser plural e ter progressões no convívio. No campo macro isso aconteceu agora na campanha eleitoral com a adesão, por exemplo, de Marina Silva, uma pessoa notável. As pessoas perceberam que era a hora da generosidade, de deixar para trás as mágoas porque o país está sob uma ameaça muito grande. Bolsonaro não caiu do céu. O Brasil tem um potencial para o atraso e para a violência muito grande, que anos de governos mais ou menos civilizados não foram capazes de reduzir. Conseguiu se reduzir a pobreza, um pouco as desigualdades. Mas o potencial de atraso e de violência do Rio de Janeiro ou da Amazônia, que são exemplos extremos, está em toda parte. Isso dá a base para um líder de extrema direita que é capaz de falar com esse segmento. Mas o que se construiu de convergência nesses últimos meses é algo notável.

Valor: Passada a eleição, o diálogo de convergência se mantém?

Maria Hermínia: Lula é uma pessoa que constrói isso. É um líder pragmático e negociador. Acho que ele consegue e, se eleito, vai precisar para governar. Mas é preciso ver uma coisa: tem uma parte das pessoas que votam no Bolsonaro porque não quer o PT, mas havia 30% das pessoas achando que Bolsonaro era bom. 30% é bastante gente, é uma direita extrema de tamanho grande e que na próxima eleição vai estar ali. Por outro lado, a liderança que fez a transição da ditadura para a democracia termina aqui, com Lula e Alckmin. Os próximos candidatos vão ser gente com uma outra experiência.

5 comentários:

Anônimo disse...

https://www.jb.com.br/pais/informe-jb/2022/10/1040411-de-eduardo-paes-para-bolsonaro-em-video-impactante-assista.html

Anônimo disse...

Relembro que o papa Francisco rezou “a Nossa Senhora Aparecida para proteger e curar o povo brasileiro, para libertá-lo do ódio, da intolerância e da violência”. Ou seja, para nos salvar de um segundo mandato de Bolsonaro!

Anônimo disse...

Falta de propostas? Não leu a carta do Lula????

Anônimo disse...

Não viu o amplo arco de alianças que Lula fez para defender a democracia nos últimos 2 anos?

Anônimo disse...

Pois é, esse pessoal faz uma simetria inexistente entre LULA e o palerma da República.
Triste.