Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
As nações indígenas emergiram como
personagens da história do presente. Houve aqui uma revolução social e quase
ninguém percebeu
O regime resultante do golpe militar de
1964, em nome da democracia supostamente ameaçada pelo comunismo, não favoreceu
a emergência das populações excluídas dos direitos sociais e políticos próprios
das sociedades democráticas, igualitárias e pluralistas. Os “diferentes” foram
mantidos na prisão imaginária e excludente, a de sua diferença, como seres
menores, aquém do propriamente humano. Ou, em desdobramento atual do regime
ditatorial, considerados e tratados como iguais para que se virem com sua
igualdade, que os fragiliza em face dos poderes descomunais do Estado e da economia.
Na reunião do governo de 22 de abril de 2020, isso ficou claro.
A política repressiva da ditadura de 1964 atingiu a classe trabalhadora, diferente no entendimento anormal dos normais, os que têm poder. Mas atingiu também os grupos sociais residuais que haviam ficado à margem da história. E atingiria também os novos sujeitos que ganhariam corpo e visibilidade em decorrência da política econômica e da intolerância própria da ditadura.
O regime calava uma boca e, em
consequências, novas e diferentes bocas se abriam. O regime reprimia
necessidades sociais e políticas, mas novas e alternativas, compensatórias,
ganhavam voz e visibilidade. A política econômica multiplicava lucros
extraordinários e suas consequências antissociais. Em suas contradições, dava
vida a novos sujeitos de demandas sociais, de horizontes e de possibilidades de
transformação social na direção de uma modernidade não só econômica, mas também
social e política.
O regime militar repressivo não foi vencido
por uma revolução política, mas pelas suas muitas brechas e fraturas que deram
voz e vida a sujeitos sociais que historicamente haviam sido mantidos na
fragilidade do silêncio e da falta de conexões políticas próprias para
expressar suas carências.
Foi o caso das populações rurais historicamente
mantidas à margem da sociedade que sucedera à sociedade escravista com a
abolição da escravatura. O medo político dos militares pôs a reforma agrária na
agenda do Estado.
Foi e ainda é o caso das populações
indígenas, aqui tratadas como populações aquém da condição humana, tratamento
que também se dera ao escravo.
O regime militar foi marcado por
verdadeiros episódios de guerra civil no confronto entre grileiros de terra,
armados e tolerados, contra nações indígenas desarmadas. Alguns casos notáveis
não entraram em nossa narrativa histórica, patrioteira.
Um caso significativo foi o da revolta das
tribos Kaingang, em 1976, que nos três estados do Sul se ergueram contra a
invasão de suas terras pelos brancos, expulsando-os. Apossaram-se do conhecimento
agrícola dos brancos e revitalizaram suas tradições.
Outro caso foi o da coalizão dos povos
Waimiri e Atruahi, reduzidos a 20% do que eram. Resistiram à genocida invasão
dos brancos com a abertura da rodovia Manaus-Caracaraí. Ou a coalizão dos
Txukahamãe com seus inimigos, os Kreenakarore. Quando os primeiros tomaram
consciência do genocídio em andamento, contra os segundos, uniram-se a estes
para protegê-los e ampará-los.
Os anos 1970 foram os da guerra do Brasil
atrasado e predatório contra os índios, que redundou no seu contrário: a guerra
cultural e política dos índios contra a barbárie de uma concepção destrutiva de
crescimento econômico sem desenvolvimento social, de um modelo de capitalismo
sem seres humanos.
Os diferentes povos indígenas inverteram o
modelo dos brancos. Desenvolveram uma estratégia de incorporação, em suas
táticas de sobrevivência, do conhecimento dos brancos, especialmente o
conhecimento científico. Valeram-se dos antropólogos que iam estudá-los e
decifraram os brancos como objeto raro, como cobaias. Desenvolveram estratégias
autodefensivas. Receberam o apoio de missionários católicos e luteranos, da
nova pastoral dos povos indígenas, redefinida como reação à ordem política
repressiva e genocida. Antropólogos de diferentes universidades definiram uma
nova concepção de etnologia, em que o observador é observado e a sociedade que
por meio dele pesquisa tem sua maldade decifrada e suas virtudes aprendidas.
As nações indígenas emergiram como
personagens da história do presente. Já na ditadura, a praça dos Três Poderes
foi delas. Nas negociações atuais para definição dos rumos e do projeto de
nação do novo governo pós-autoritário, os indígenas estão lá. Vários fizeram
cursos nas universidades. Já estão presentes no Parlamento. Há algum tempo,
Joênia Wapixana, advogada, apresentou ao STF a causa territorial de seu povo
com um discurso em sua própria língua. Uma das cerca de 200 línguas indígenas
do Brasil. Houve aqui uma revolução social e quase ninguém percebeu.
*José de Souza Martins é sociólogo.
Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón
Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94).
Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre
outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de
Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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