sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Flávia Oliveira - Adiante, Brasil

O Globo

Indumentária auriverde se tornou imprópria pelo sequestro pelos extremistas de direita

Conhecer o passado é essencial para conduzir o presente e resguardar o futuro. Sou do tempo em que o querido e saudoso Jô Soares (1938-2022) encarnava no Zé da Galera o afã ofensivo da torcida canarinho. Semanalmente, em ligação telefônica de um orelhão, o personagem apelava ao técnico da seleção brasileira:

— Bota ponta, Telê [Santana da Silva, 1931-2006].

Foi ele o homem que comandou o “dream time” de 1982, aquele da Tragédia do Sarriá, estádio espanhol. Eu tinha 12 anos e, por semanas, me culpei por, na tarde daquele 5 de julho, ter vestido a minissaia de brim tingido com o azul do manto de Nossa Senhora Aparecida, cor que inspirou a camisa da final de 1958, até hoje o segundo uniforme. A camiseta amarela já não me cabe.

Viajo quatro décadas no tempo para, talvez, buscar naquela menina o torcer intransitivo, sem condicionalidade, que habitou até um punhado de anos a mulher que dela se fez. Por ora a indumentária auriverde está engavetada, imprópria que se tornou — para mim — pelo sequestro pelos extremistas de direita, inimigos públicos da democracia, dos povos indígenas e quilombolas, das mulheres e dos negros, dos LGBTQIA+ e da Amazônia preservada.

É por isso que surpreende e entristece ler por aí referências ao esquema ofensivo do time de Tite — quatro letras, como Telê, começando com T, terminando com E — ancoradas na expressão “Pra frente, Brasil”. Em 1970, fase mais sangrenta da ditadura militar que acossou o país de 1964 a 1985, o governo do general Emílio Garrastazu Médici usou em peças ufanistas a frase de incentivo à seleção que conquistaria o tricampeonato na Copa do México. A marchinha de mesmo título, composição de Miguel Gustavo, virou hino da trajetória vitoriosa do elenco encabeçado por Pelé, Rivellino, Tostão, Gerson e Jairzinho. A mensagem era de união em torno de um governo que, nos porões, sequestrava e prendia e matava e desaparecia com os corpos insurgentes.

O cineasta Roberto Farias (1932-2018) tratou do período em “Pra frente, Brasil”, de 1983. Reginaldo Farias protagonizava a história do trabalhador de classe média que, confundido com um ativista político, desaparece sob a ditadura, num país hipnotizado pela campanha do tri. Neste 2022, a democracia brasileira está toureando com um presidente da República e aliados, que se alimentam de ataques ao sistema e às autoridades eleitorais e resistem a aceitar o resultado das urnas, anunciado em 30 de outubro. Jair Bolsonaro sempre festejou a ditadura e tem como ídolo um torturador. Uma fração de seus eleitores aglomera-se em manifestações golpistas diante de quartéis e instalações militares desde o início do mês. Em diferentes estados, bloqueiam estradas ao limite da desumanidade para (tentar) impor arroubos políticos autoritários.

A língua portuguesa enfileira sinônimos adequados a não ressuscitar o lema nefasto. No Chile, as manifestações que deram na eleição do jovem presidente Gabriel Boric eram embaladas por uma canção (“El pueblo unido jamás será vencido”) do grupo Quilapayún (três barbas, em língua nativa mapuche): Y ahora el pueblo/ que se alza em la lucha/ con voz de gigante/ gritando adelante. “Avante, Brasil”; “Adiante, Brasil”; “Ao ataque, Brasil”; “Força máxima, Brasil” são substitutas possíveis, tais como as camisas oficiais azuis e pretas, que andaram demandadas nos sites da fabricante de uniformes da seleção como alternativas à amarela.

A voz de Gal Costa (1945-2022) eternizou “Divino, maravilhoso”, composição de Caetano Veloso e Gilberto Gil que ensina: É preciso estar atento e forte/ não temos tempo de temer a morte. Futebol é, muitas vezes, mais que um jogo; Copa do Mundo, mais que uma competição esportiva. São também possibilidades de repudiar mazelas de nossos tempos e reivindicar futuro auspicioso.

Em 2010, no Mundial da África do Sul, já havia questionamentos sobre o legado do megaevento. Em 2013, eclodiram no Brasil, sede da Copa de 2014, manifestações por gastos públicos orientados às necessidades da população. Na Rússia 2018, houve críticas contra homofobia e racismo. Neste ano, a discriminação contra mulheres, a criminalização da homossexualidade, a exploração da mão de obra estrangeira estão no centro das críticas à escolha da Fifa pelo Catar.

Na primeira semana do Mundial, a seleção do Irã deixou de cantar o hino nacional em protesto contra a repressão violenta do regime às manifestações contra o apartheid feminino. Desde setembro, quando a jovem Mahsa Amini morreu, após receber um golpe na cabeça por uso considerado indevido do hijab pela polícia moral, centenas de pessoas morreram em manifestações, e milhares foram presas. O time inglês se ajoelhou em campo antes da estreia contra o Irã na Copa, tal como os jogadores costumam fazer nos jogos da Premier League, em ação antirracista consagrada pelo futebol americano.

A seleção alemã posou para a foto oficial da primeira partida com as mãos tapando a boca, em ato contra a censura. A Fifa ameaçou punir com cartões amarelo e vermelho os competidores que entrassem em campo com as braçadeiras estampadas com um arco-íris, símbolo do movimento LGBTQIA+. Para não deixar dúvida, a delegação do País de Gales aplicou o próprio brasão na bandeira multicolorida e a fincou no centro de treinamento. Questão de coragem. E de coerência.

 

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