O Globo
Indumentária auriverde se tornou imprópria
pelo sequestro pelos extremistas de direita
Conhecer o passado é essencial para
conduzir o presente e resguardar o futuro. Sou do tempo em que o querido e
saudoso Jô Soares (1938-2022)
encarnava no Zé da Galera o afã ofensivo da torcida canarinho. Semanalmente, em
ligação telefônica de um orelhão, o personagem apelava ao técnico da seleção
brasileira:
— Bota ponta, Telê [Santana da Silva,
1931-2006].
Foi ele o homem que comandou o “dream time” de 1982, aquele da Tragédia do Sarriá, estádio espanhol. Eu tinha 12 anos e, por semanas, me culpei por, na tarde daquele 5 de julho, ter vestido a minissaia de brim tingido com o azul do manto de Nossa Senhora Aparecida, cor que inspirou a camisa da final de 1958, até hoje o segundo uniforme. A camiseta amarela já não me cabe.
Viajo quatro décadas no tempo para, talvez,
buscar naquela menina o torcer intransitivo, sem condicionalidade, que habitou
até um punhado de anos a mulher que dela se fez. Por ora a indumentária
auriverde está engavetada, imprópria que se tornou — para mim — pelo sequestro
pelos extremistas de direita, inimigos públicos da democracia, dos povos
indígenas e quilombolas, das mulheres e dos negros, dos LGBTQIA+ e da Amazônia
preservada.
É por isso que surpreende e entristece ler
por aí referências ao esquema ofensivo do time de Tite — quatro letras, como
Telê, começando com T, terminando com E — ancoradas na expressão “Pra frente,
Brasil”. Em 1970, fase mais sangrenta da ditadura militar que acossou o país de
1964 a 1985, o governo do general Emílio
Garrastazu Médici usou em peças ufanistas a frase de incentivo
à seleção que conquistaria o tricampeonato na Copa do México. A marchinha de
mesmo título, composição de Miguel Gustavo, virou hino da trajetória vitoriosa
do elenco encabeçado por Pelé, Rivellino, Tostão, Gerson e Jairzinho. A
mensagem era de união em torno de um governo que, nos porões, sequestrava e
prendia e matava e desaparecia com os corpos insurgentes.
O cineasta Roberto Farias (1932-2018)
tratou do período em “Pra frente, Brasil”, de 1983. Reginaldo Farias
protagonizava a história do trabalhador de classe média que, confundido com um
ativista político, desaparece sob a ditadura, num país hipnotizado pela
campanha do tri. Neste 2022, a democracia brasileira está toureando com um
presidente da República e aliados, que se alimentam de ataques ao sistema e às
autoridades eleitorais e resistem a aceitar o resultado das urnas, anunciado em
30 de outubro. Jair Bolsonaro sempre festejou a ditadura e tem como ídolo um
torturador. Uma fração de seus eleitores aglomera-se em manifestações golpistas
diante de quartéis e instalações militares desde o início do mês. Em diferentes
estados, bloqueiam estradas ao limite da desumanidade para (tentar) impor
arroubos políticos autoritários.
A língua portuguesa enfileira sinônimos
adequados a não ressuscitar o lema nefasto. No Chile, as manifestações que
deram na eleição do jovem presidente Gabriel Boric eram embaladas por uma
canção (“El pueblo unido jamás será vencido”) do grupo Quilapayún (três barbas,
em língua nativa mapuche): Y ahora el pueblo/ que se alza em la lucha/ con voz
de gigante/ gritando adelante. “Avante, Brasil”; “Adiante, Brasil”; “Ao ataque,
Brasil”; “Força máxima, Brasil” são substitutas possíveis, tais como as camisas
oficiais azuis e pretas, que andaram demandadas nos sites da fabricante de
uniformes da seleção como alternativas à amarela.
A voz de Gal Costa (1945-2022) eternizou
“Divino, maravilhoso”, composição de Caetano Veloso e Gilberto Gil que ensina:
É preciso estar atento e forte/ não temos tempo de temer a morte. Futebol é,
muitas vezes, mais que um jogo; Copa do Mundo, mais que uma competição
esportiva. São também possibilidades de repudiar mazelas de nossos tempos e
reivindicar futuro auspicioso.
Em 2010, no Mundial da África do Sul, já
havia questionamentos sobre o legado do megaevento. Em 2013, eclodiram no
Brasil, sede da Copa de 2014, manifestações por gastos públicos orientados às
necessidades da população. Na Rússia 2018, houve críticas contra homofobia e
racismo. Neste ano, a discriminação contra mulheres, a criminalização da
homossexualidade, a exploração da mão de obra estrangeira estão no centro das
críticas à escolha da Fifa pelo Catar.
Na primeira semana do Mundial, a seleção do
Irã deixou de cantar o hino nacional em protesto contra a repressão violenta do
regime às manifestações contra o apartheid feminino. Desde setembro, quando a
jovem Mahsa Amini morreu, após receber um golpe na cabeça por uso considerado
indevido do hijab pela polícia moral, centenas de pessoas morreram em
manifestações, e milhares foram presas. O time inglês se ajoelhou em campo
antes da estreia contra o Irã na Copa, tal como os jogadores costumam fazer nos
jogos da Premier League, em ação antirracista consagrada pelo futebol
americano.
A seleção alemã posou para a foto oficial
da primeira partida com as mãos tapando a boca, em ato contra a censura. A Fifa
ameaçou punir com cartões amarelo e vermelho os competidores que entrassem em
campo com as braçadeiras estampadas com um arco-íris, símbolo do movimento
LGBTQIA+. Para não deixar dúvida, a delegação do País de Gales aplicou o
próprio brasão na bandeira multicolorida e a fincou no centro de treinamento.
Questão de coragem. E de coerência.
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