Ainda que muitas de suas aldeias estejam em contato com agentes brasileiros e venezuelanos, missionários, antropólogos, militares e renitentes garimpeiros, os Yanomami mantêm o sentimento de que são um povo singular, excepcional, autônomo, autossuficiente em sua cultura, donos de seu destino. Seu vasto território – sendo 96.000 km2 do lado brasileiro e 83.000 km2 do lado venezuelano1 – se situa nos contrafortes da Serra Parima, que divide águas dos afluentes do Rio Orinoco das águas dos afluentes dos rios Branco e Negro, localizado entre o Brasil e a Venezuela.
1 Para comparar, Portugal tem 98.000 km2 Os Yanomami (Yanomam, Sanuma, Ninam) passaram a ser conhecidos por esse(s) nome(s) por via de missionários e antropólogos que com eles estiveram, tendo sido antes conhecidos na historiografia sobre a região por Guaharibo, Waiká, Xirianá e outros etnônimos. Vivendo numa região remota e de difícil acesso, tanto da parte da Venezuela quanto do Brasil, os Yanomami mantiveram uma população sólida e uma cultura resiliente a toda penetração externa. Por volta de meados dos anos 1960, eles somavam, nos dois países, cerca de 15.000 pessoas vivendo em 120 aldeias; apesar de terem sofrido muitas epidemias de doenças como varíola, sarampo, malária e tuberculose, com muitas mortes, e de terem eles próprios, em guerras contumazes, infligido muitíssimas mortes internamente, eles perseveraram, sempre se recuperando de suas quedas, cresceram e hoje somam quiçá 35.000 indivíduos em talvez 650 aldeias ou grupos locais ou xabono. No lado brasileiro, seriam por volta de 21.000 em 260 aldeias; na Venezuela, de 12.000 a 15.000, em 20152.
2 Os números dos anos 1960 foram obtidos dos
cálculos feitos por Chagnon (2014); os mais recentes pela Funasa (2022) e por
Albert e Kopenawa (2015). É possível que dados mais recentes e precisos sejam
obtidos pelo Censo 2022.
Os Yanomami foram estudados e divulgados em livros, artigos científicos, memórias e depoimentos, vídeos e filmes por ao menos três dezenas de antropólogos e missionários de diversos países do mundo, sendo os mais produtivos entre eles o francês Jacques Lizot, o americano Napoleon Chagnon e a dupla de autores, o antropólogo francês Bruce Albert e o pajé Yanomami Davi Kopenawa, cujo livro, baseado nas narrativas e depoimentos pessoais de Kopenawa retrata a visão pessoalíssima e intrigante desse excepcional líder sobre sua vida e seu povo.
Napoleon Chagnon foi o principal responsável
pelo conhecimento e interesse que o mundo ocidental adquiriu sobre o povo
Yanomami devido ao impacto de seu primeiro livro, publicado em 1968, sob o
título de alto poder de controvérsia, Yanomamo: The Fierce People, ou, Yanomami:
O Povo Feroz. Ferozes como os lobos, conjecturaram muitos colegas antropólogos,
inferindo Hobbes como modelo. O livro vendeu mais de três milhões de
exemplares, constituindo-se no mais lido da ciência antropológica mundial.
Pelos longos anos de pesquisa que Chagnon realizou entre os Yanomami, desde
1964 e intermitentemente até 1998, algo raro entre antropólogos de qualquer
procedência, por sua veemência em caracterizar os Yanomami como um povo obcecado
por suas guerras fratricidas e por teorizar o papel do guerreiro e da guerra como
a principal característica do ser humano na luta pela sobrevivência, Chagnon
foi, por sua vez, o antropólogo mais vilipendiado e atacado de todos, tendo
sido objeto e vítima de livros, artigos e filmes de denúncia, bem como de uma
famigerada campanha de queima de reputação realizada pela Associação Americana
de Antropologia, algo inédito nos anais desta ciência social3. Chagnon esteve
maiormente com os Yanomami da Venezuela e visitou por três ou quatro vezes
algumas aldeias Yanomami no Brasil, entre 1967 e 1998. Na sua conta, ele esteve
entre os Yanomami por cerca de 60 meses, sendo o tempo mais longo de uma só vez
entre dezembro de 1964 e março de 1966.
3 Uma análise desse deplorável caso está publicada num livro editado por Rob Barovsky, 2005, e comentada pelo próprio Chagnon no seu livro Nobres Selvagens, 2014. No livro mencionado e em outros que lhe dão sequência, além de umas duas dezenas de filmes etnográficos, Chagnon mostra os Yanomami como um povo extremamente aguerrido, travado em constantes guerras internas que levam à morte homens, mulheres e crianças. Suas rixas individuais seriam dirimidas por meio de lutas corporais de dois tipos. O primeiro constitui em socar o adversário nos peitos e nas costelas e, por sua vez, deixar-se socar do mesmo jeito. O segundo tipo parece ainda mais dolorido: o contendor expõe sua cabeça para ser fortemente traulitada pelo adversário com uma dura e forte vara de quatro metros de cumprido; por sua vez, cambaleante ou com sangue escorrendo pela testa, o contendor aplica igual e poderosa varada na cabeça do seu adversário. Com isso, entre feridos seriamente e estonteados, sangrando pela boca ou pela cabeça, vence, e ganha mais prestígio social e político, o que mais higidamente aguentou as pancadas nele infligidas. Efetivamente, poucos povos mundo afora praticaram esportes ou soluções de disputas tão violentas.
Os Kayapó também tinham uma luta de aplicar
bordunadas nos lados dos adversários, que saíam, com frequência, bastante
maltratados, até com quebras de braços. Em comparação, as lutas conhecidas como
huka huka e tawari, própria dos povos Xinguanos, ou as lutas greco-romanas das
Olimpíadas helênicas, parecem no mínimo amadorísticas. Ao contrário, se
considerarmos como esportes, as lutas dos gladiadores romanos batem os socos e
traulitadas Yanomami, assim como o sagrado e ominoso jogo de bola de quadril
dos Astecas que, eventualmente, era realizado para providenciar a honra da
morte aos perdedores.
Jacques Lizot, por sua vez, viveu longos anos em algumas aldeias Yanomami, da Venezuela, aprendeu sua língua e escreveu um dos mais gentis livros de etnografia sobre esse povo. Sobressai seu interesse pela vida cotidiana dos Yanomami, o trato entre pessoas da mesma aldeia, baseado na reciprocidade e troca de bens, e entre potenciais adversários de aldeias mais distantes, sempre com formalidade e desconfiança, a vida de solteiros e de casados, as formas matrimoniais, incluindo poliginia e poliandria, os jogos sexuais entre adolescentes, as histórias contadas pelos mais velhos, entrelaces de mitos, lendas, fatos e imaginação, a capacidade de trabalho, o interesse pela natureza e a habilidade em fazer ferramentas, instrumentos, objetos de uso com uma destreza extraordinária.
Lizot e Chagnon veem o mundo Yanomami com
olhares diferentes; entretanto, em muitos aspectos descrevem a vida Yanomami
semelhantemente e complementarmente, ainda que não queiram admitir e saber um
do outro. Seus santos não se cruzavam bem nem no trabalho de campo nem na vida
profissional, e frequentemente praticavam aquela insuspeitável arte da fofocagem.
Não obstante os deslizes e exageros e as mútuas acusações de práticas reprováveis no trabalho de campo (reconhecidamente frequentes no meio antropológico), juntos, esses dois antropólogos desenharam um perfil etnográfico bastante consistente e profundo sobre os Yanomami. Dos melhores do ramo antropológico. Sob alguns aspectos, os Yanomami parecem muito semelhantes a outros povos indígenas da América Tropical no que concerne à sociabilidade cotidiana, aos arranjos matrimoniais, à criação dos filhos, ao humor, à ironia, à alegria de viver, às práticas de trabalho, às frequentes mudanças de aldeia, por querer ou por desavenças, ao sentido de solidariedade criado pelo dever da reciprocidade, à ordem política um tanto anárquica, às visões de mundo e visões sobre o mundo dos “brancos”, às narrativas do passado, aos rituais de passagem e de morte, e, por fim, ao sentimento em relação ao sagrado, ao incognoscível e suas múltiplas formas de aparição e de ação entre os vivos.
Sua singularidade aparece na arquitetura
inusitada de suas habitações, as quais eram abandonadas após alguns anos devido
ao empesteamento de insetos e roedores, para serem construídas em outro lugar
mais saudável; na plantação e consumo de bananas como alimento básico, junto
com a mandioca; no uso de um forte alucinógeno que os transporta para mundos
outros onde veem seres estranhos e poderosos, acontecimentos violentos e
premonitórios; numa determinação sem igual em permanecerem autônomos, com
altivez; no açulamento das guerras e disputas internas, das matanças por
vingança, dos preparatórios ritualísticos para os ataques e as defesas; e,
enfim, no sentido de que muito da vida está correlacionado com o potencial da
guerra e suas desgraçadas consequências.
Esse quadro etnográfico se destaca mais ainda pelo fato do tamanho populacional do povo Yanomami, raro entre povos indígenas tropicais, pelo majestoso pedação da Terra que controlam, cultivam e conhecem, e pelo modo como encaram as circunstâncias históricas em que foram ou se fizeram ser conhecidos e assediados pelo mundo envolvente e seus contínuos malefícios. Ademais, os estudos genéticos e linguísticos indicam, com perplexidade, um certo isolamento dos Yanomami em relação aos demais povos indígenas que vivem ou viveram ao seu redor, como se verdadeiramente fossem únicos no mundo.
Para quem só recentemente se deu conta da
existência dos Yanomami espanta saber que estejam em tantas dificuldades de
nutrição e saúde diante do vasto território que possuem e da imemorável
tradição de produzir produtos agrícolas, obter produtos florestais e captar
alimentos de toda sorte. Espanta também que não haja uma representação
institucional dos Yanomami para tratar com o mundo envolvente, de modo que, a
cada momento, por cada aldeia, haja a necessidade de se apontar uma liderança
que possa servir de representação e intermediação com o mundo envolvente.
E, mesmo assim, tal liderança continua a ser
contestada intempestivamente por qualquer um.
Por fim, o quadro cultural mais profundo dos
Yanomami se completa com a visão que nos é dada no livro A Queda do Céu:
Palavras de um xamã yanomami, assinado numa parceria singular por Bruce Albert
e Davi Kopenawa. Aqui nos é dado conhecer uma grande parte da mitologia
Yanomami no que mais importa para um pajé, um xamã (como é designado no livro)
que capta e ressignifica a simbologia dos mitos e as aplica na sua visão
própria do mundo Yanomami atual em sua relação com o mundo dos não Yanomami, em
particular dos chamados brancos, i.e., da civilização ocidental em geral.
Kopenawa se faz, com licença da expressão que
ele pode não acatar como concernente, um verdadeiro profeta do seu tempo.
Exalta o deus Omama pela sabedoria de ter criado o povo Yanomami, de tê-lo
feito conhecedor das coisas da natureza e das coisas sagradas, e depois as
escondido debaixo da terra, onde deveria permanecer para sempre. Clama para que
seu povo não seja abandonado e que saiba se livrar verdadeiramente das
suspeitosas seduções dos inimigos civilizados, que, ao seu ver, só trarão
desgraças para todos – Yanomami e os demais.
Kopenawa/Albert fazem uso de símiles e tropos
culturais que correm pelo discurso do civilizado, seja o mais malévolo, seja o
mais bonzinho, e os ajusta aos símbolos e imagens dos mitos que dão sentido à
alma Yanomami. O Céu que há de cair sobre a Terra se compara com o aquecimento
global que parece ser o imensurável leviatã criado pelo discurso científico do
nosso tempo. E das entranhas da Terra, revolvidas pelas máquinas
monstruosamente gigantescas, não será a bonança que surgirá em forma de ouro,
mas os eflúvios dos gases venenosos e de todo o mal guardados desde a criação
da Terra por Omama.
O fim do mundo está próximo, avisa-nos
Kopenawa, se o homem civilizado continuar nessa batida de ambição desenfreada e
arrasadora. Cuidai-vos!
Enquanto isso, cuidemos dos Yanomami.
*Antropólogo, professor da UFRJ, ex-presidente
da Fundação Nacional do Indio (Funai – 2003-2007), autor de vários livros, em
que se destacam Democracia em Convulsão (2020), O Brasil Inevitável: Ética,
mestiçagem e borogodó (2019), Para Conhecer e Amar os Indios (2014), Os Indios
e o Brasil (1988 e 2012) e Darcy Ribeiro (2000).
3 comentários:
A grande utilização da banana como produto alimentício básico e cultivo tradicional é curiosa, pois esta planta só foi trazida para a América após a descoberta deste continente por Colombo.
As bananas se originaram na Ásia e algumas variedades foram levadas para a África 2 a 3 mil anos atrás, e só chegaram na América depois de 1492.
Portanto, é um produto que foi apropriado e se tornou tradicional para os ianomâmis nos últimos 5 séculos. Eles devem ter obtido suas primeiras plantas de cultivos feitos por europeus nas regiões próximas.
Texto muito informativo! Parabéns ao autor e ao blog que publicou esta nova parte do seu trabalho!
Será que Obama vem de Omama? Com certeza o inimigo civilizado é o capitalismo. Que quer transformar os índios em exército de reserva do capital. E se fosse só isso seria ótimo porque o que fizeram com os Yanomami se assemelha à "solução final" que o nazismo preparou para os judeus. Interessante a informação sobre a banana do primeiro anônimo. Foi uma das poucas coisas boas que os civilizados trouxeram para os índios. Porque o resto foram doenças, cachaça e açúcar. Tudo que significa morte.
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