Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
O bolsonarismo foi planejado como permanência
do ausente, visibilidade do invisível, morto que fala e acha que vai
ressuscitar
Muito provavelmente, o restabelecimento da
ordem após a catástrofe econômica e política de quatro anos de incitação à
baderna não é a única na importância e na urgência. É preciso mais para superar
o governo que desgovernou para criar um vazio proposital, redesenhar o Estado e
fragilizar a sociedade. A articulação golpista de 2018 não foi feita apenas
para ganhar uma eleição, mas para subjugar um país.
Falas presidenciais valorizaram a desordem. A bandeira do bolsonarismo não tinha disfarce: era a de substituir valores, normas, direitos, concepções políticas e conquistas sociais exatamente pelo seu contrário. O objetivo era evidente: implantar o caos, transformar o país num caso de polícia, criar a necessidade de repressão para enquadrar um inimigo fantasioso e fora de moda.
Analistas e comentaristas políticos
experientes começam a chamar a atenção para o fato de que Bolsonaro não tem
competência para as tarefas intelectuais de arquitetar as minúcias do que foi o
desastre de seu governo e das pretensões do bolsonarismo. Poderiam dizer que
tudo se encaixa desde antes de sua posse e durante todo o seu governo. Nenhuma
bobagem, nenhuma tolice fora do lugar. Ao mesmo tempo é o todo que está fora de
lugar. Uma articulação de longa duração, algo montado para transformar qualquer
presidente que fosse o eleito em 2018 em mandatário de curto mandato, mesmo o
próprio Bolsonaro. Ele deu indicações de consciência do descarte.
O bolsonarismo foi planejado como
permanência do ausente, visibilidade do invisível, morto que fala e acha que
vai ressuscitar.
Em todo canto que se vá, seu fantasma está
lá, com muitas caras, muitas vozes. Ele mesmo, no entanto, é cada vez mais um
ninguém. O que propõe a indagação: quem é o verdadeiro Bolsonaro? Onde está
ele? Quem o sustenta? Pode-se ver-lhe a sombra nos mais estranhos e diferentes
lugares.
A grande surpresa nesse processo foi a
disponibilidade do enorme número de cúmplices, civis e militares, de gente
ansiosa por se armar e se tornar caçadora, prontos para se tornar “patriotas”,
sem levar em conta que patriota de verdade pega no batente duro. Surgiu o
patriota de fantasia, bandeira nacional transformada em trapo para substituir
blusa e cueca. Em Brasília, uma multidão sebastianista na agonia da espera,
fora e dentro do quartel.
A estratégia do bolsonarismo foi ampla,
atacou em todas as frentes e todas articuladas: Forças Armadas, igrejas e
religiões, profissões, partidos, grupos humanos residuais com traços claros e
limítrofes de identidade marginal. Tudo que, de diferentes modos, se situa no
terreno complicado do que o sociólogo Everett Stonequist definiu como “homem
marginal”. Os casos mais extremos dessa marginalidade são os dos seres humanos
que não se encontram, julgando-se permanentemente do lado oposto daquele em que
gostariam de estar. São pessoas que não são, seu lado mais perigoso. Todo o
tempo passando para o lado de lá sem sair do lá de cá. Querendo voltar sem ter
atravessado a barreira da ida.
Essa situação sugere a necessidade urgente
de dar à restauração da ordem a dimensão severa de um projeto de reconstrução
nacional e de despoluição ideológica do país.
Os vencedores da guerra de 1939-1945
tiveram a lucidez de não repetir o erro de 1918. O programa de desnazificação
decorrente da derrota da Alemanha abriu espaço para uma redemocratização
socialmente enraizada. Não deixou restos de sementes no cisco da história.
Tudo que se sabe sobre Hitler é que ele não
tinha competência para fazer o que fez ou o que em seu nome fizeram. Já no
governo, passava boa parte do tempo fechado em seu quarto, levantava tarde e
passava a maior parte do tempo conversando a mesma conversa todos os dias.
Hitler foi sendo inventado pelos cúmplices, pelos bajuladores, pelos covardes,
pelos oportunistas. Foi um ser imaginário, rodeado de gente que nele via alguém
que não existia de fato, mas que achava ser real.
A trajetória e o declínio de Bolsonaro já
nos dias anteriores ao término do mandato indica algo parecido. A situação
esquisita de que se tornou personagem, de certo modo, sugere que é ele uma
invenção, uma construção. Ele é o todo de cada um que com ele se identifica,
que nele vê o que julga ser. O rápido esvaziamento do ex-presidente o
transformou num ser murcho, com perfil de ator à espera de um papel enquanto o
enredo flui.
Poderá ser grave engano considerá-lo de
plantão à espera da próxima eleição presidencial para eventual retorno ao
poder. A personagem oculta maquinada nas sombras, que ele personificou de 2019
a 2022, provavelmente encarnará em outra figura que, com mais talento para o
mal, dê continuidade ao desmonte da nação.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
Um comentário:
É uma visão interessante, mas que claramente SUBESTIMA a importância individual do canalha que corajosamente se apresentou como alternativa presidencial e que conseguiu convencer milhares de cúmplices a apoiá-lo e depois obedecerem-no, bem como conquistou o voto de dezenas de milhões de eleitores, que quase o reelegeram.
Alguns generais, alguns políticos, seus filhos zeros e mais algumas pessoas (provavelmente pastores e empresários) certamente o ajudaram em todos os momentos e talvez principalmente no início, mas é difícil imaginar que o GENOCIDA não tenha sido o principal agente do seu DESgoverno e mesmo na definição inicial de sua candidatura presidencial e dos rumos que tomou sua campanha eleitoral antes e depois da "facada".
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