Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
A sociedade já não dispõe de normas e
valores sociais de referência para nortear a conduta individual e a conduta
coletiva
A cultura popular brasileira tem um
conjunto extenso de desculpas para explicar o aparentemente indesculpável. Há
um esboço de linguagem para eximir de responsabilidade os prováveis
responsáveis pelo inexplicável.
Em 2017, o ministro das Minas e Energia, em
entrevista em Nova York, explicou como fatalidade o pavoroso desastre que
atingiu a pequena localidade de Bento Rodrigues, no município de Mariana, em
Minas Gerais, em 2015.
Foi quando a lama de uma barragem de
dejetos de mineração, que se rompera, a recobriu em poucos minutos. Morreram 19
pessoas, uma área extensa no Vale do Rio Doce foi afetada, com água
contaminada, abastecimento de cidades comprometido, solo afetado, grande número
de pessoas desabrigadas, o meio ambiente danificado, a vida colocada entre
parênteses. A maior tragédia ambiental da história do país.
A palavra fatalidade para explicar o que aconteceu pode ser utilizada no deciframento do acontecido como palavra analisadora-reveladora, que na sociologia de Henri Lefebvre é o atributo de palavras com força metodológica para desvendar acontecimentos da realidade social. Por que “fatalidade”? A barragem foi obra de engenharia, tudo calculável e previsível: a carga de rejeitos, seu peso, sua força, a capacidade da barragem para aguentá-la e, portanto, o limite de seu enchimento. O próprio risco para as 600 e tantas famílias do povoado abaixo da barragem.
Sendo tudo calculável e tendo ocorrido o
desastre é ele indício de uma hierarquia de riscos por ele revelado. Sem o
desastre, os riscos passariam para a história como riscos possíveis mas não
prováveis, equitativamente distribuídos.
O desastre, como em outros casos, indicou
que os riscos estavam desigualmente distribuídos. As pessoas, o ambiente
natural, a vida, o outro e o que é do outro, desvalorizados em relação ao que
interessava, que não eram eles. Essa hierarquia está presente na consciência
social profunda da sociedade brasileira. Evidencia-se cada vez que ocorre um
fato anômalo, previsível mas não esperado.
Muito mais grave do que o que aconteceu em
Mariana foi o do número de mortos em decorrência da pandemia de covid-19, mais
de 700 mil. Pesquisadores dos Departamentos de Física das Universidades
Federais do Rio Grande do Norte e da Universidade Federal de Pernambuco
desenvolveram um método para calcular a distribuição não homogênea dos efeitos
da politização na fatalidade da covid-19.
Os pesquisadores levaram em conta 350 mil
óbitos até o final de 2021 e calcularam a correlação entre óbitos e a votação
nas eleições de 2018, tendo em conta que o candidato vencedor e seu governo
perfilharam um discurso peculiar em relação à pandemia em oposição às
recomendações da ciência e dos cientistas.
Roraima, Rondônia e Mato Grosso foram
estados com níveis altos de votação em favor do que veio a ser eleito para a
Presidência da República. Foram também os estados em que foi alta a fatalidade.
Piauí, Bahia, Maranhão, Paraíba e Ceará, estados do Nordeste, onde o eleito não
foi majoritário, foi menor a taxa de fatalidade.
Onde a retórica oficial sobre a pandemia
foi hostil à ciência, os indícios são de que a população foi menos sensível aos
esclarecimentos e aos apelos da ciência, o que provavelmente foi influente nas
causas de maior letalidade decorrente. E vice-versa. Onde a prévia opção
ideológica e eleitoral não se alinhou com a proposta vencedora, a população,
sendo menos vulnerável à retórica anticientífica da direita, ficou mais
protegida contra os riscos da doença. De certo modo, o problema já havia
aparecido nas reuniões, denúncias e conclusões da eficiente CPI da Covid.
Em momento mais recente, o secretário da
Educação do Estado de São Paulo definiu como fatalidade o assassinato de quatro
crianças numa escola da zona oeste da capital por um adulto que a invadiu.
Todas essas fatalidades e muitas outras
mais, como o brutal linchamento de uma mãe de família, no Guarujá, em São
Paulo, há poucos anos, em princípio, tem uma explicação. A sociedade brasileira
está cada vez mais mergulhada num profundo estado de anomia, na definição da
sociologia. A sociedade já não dispõe, na extensão necessária, de normas e
valores sociais de referência para nortear a conduta individual e a conduta
coletiva.
Em graus variáveis, a anomia existe em todas as sociedades, em níveis compensáveis pela vontade coletiva em favor de elementos de identidade e de concepções relativas ao primado do bem comum. O que vem sendo chamado de política do ódio tem o deliberado propósito de dividir a sociedade, criar insegurança e medo, tornar a fatalidade mais do que um pretexto, um instrumento de controle social e político. A fatalidade se tornou um poder.
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