quinta-feira, 20 de abril de 2023

Merval Pereira - Questão democrática

O Globo

Ao revisitar antigos erros, como o apoio a ditaduras da América Latina, Lula demonstra que seu apreço à democracia não é prioritário, se é que existe realmente

O presidente Lula foi eleito com apoio decisivo de um tipo de cidadão, aquele preocupado em proteger a democracia de uma possível vitória de Bolsonaro na eleição presidencial. A campanha de Lula baseou-se na necessidade de formar uma frente ampla democrática para impedir a continuação de um governo que já deixara clara sua intenção de dar um golpe, que quase se concretizou no dia 8 de janeiro e até hoje impacta nossa sociedade.

Ontem mesmo, o general Gonçalves Dias, que já trabalhara com Lula nos governos anteriores e desfrutava sua confiança a ponto de ser o chefe da segurança pessoal, teve de pedir demissão da chefia do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) diante dos vídeos que demonstravam que ele estivera presente nos atos de vandalismo no Palácio do Planalto — não para impedi-los, ou prender seus autores, mas dando cobertura tácita a eles.

Quando precisou de apoio internacional a favor do que representava sua candidatura, Lula recorreu aos Estados Unidos, cujo governo, liderado por Biden, não se recusou a apoiá-lo, defendendo as urnas eletrônicas e a democracia brasileira. Muita gente acreditou nisso, mas, ao revisitar antigos erros, como o apoio a ditaduras da América Latina, Lula está demonstrando que seu apreço à democracia não é prioritário, se é que existe realmente.

Depois de defender a posição da Rússia na invasão da Ucrânia e de criticar o G7 — grupo integrado pelas maiores democracias do mundo: Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido —, o presidente brasileiro, embora tenha sido convidado para participar da próxima reunião, desdenhou sua eficácia, afirmando que o G20 é um instrumento mais representativo, porque inclui “talvez já a maior economia do mundo”, a China, e também a Rússia, expulsa do G7 em 2014 depois de ter anexado a Crimeia.

Lula, ainda na China, defendeu que a pauta da reunião desses grupos tinha de ser mais específica:

— A ordem do dia é fortalecer a democracia no mundo. A ordem do dia é respeitar as instituições democráticas.

Ora, se Lula está tão preocupado assim com a democracia no mundo, por que se entende tão bem com ditadores como os de Cuba, Venezuela, Nicarágua? Volta e meia, quando confrontados com essas incoerências explícitas, petistas alegam que Lula trabalha nos bastidores para convencer seus amigos a democratizar seus países. Mas que não faria nenhuma crítica pública a eles, para não dar munição aos inimigos.

Talvez por isso, quando esteve em Cuba como presidente em fevereiro de 2010, se recusou a falar sobre a morte, na véspera, do dissidente Orlando Zapata Tamayo, em decorrência de uma greve de fome. Ao contrário, Lula criticou o instrumento da greve de fome como ação política de protesto e comparou os presos políticos cubanos a presos comuns brasileiros. Muitos anos depois, durante a campanha presidencial que o levou ao poder pela terceira vez, o próprio Lula contou que intermediou junto ao então presidente Fernando Henrique Cardoso o fim de uma greve de fome dos sequestradores do empresário Abilio Diniz, que já durava 46 dias, em troca da liberdade:

— Eu fui na cadeia no dia 31 de dezembro conversar com os meninos. (…) Eles pararam a greve de fome e foram soltos.

A coleção de incoerências envolvendo questões como essas parece indicar que a democracia como sistema de governo, capaz de gerar desenvolvimento e bem-estar social, não é relevante para Lula e petistas. Lula já disse que a Venezuela tem “democracia demais” e acha que a China tem “muito a ensinar ao mundo”:

— A China tem um partido político forte e um governo forte porque o governo tem controle e poder de comando. O Brasil não tem isso, nem outros países.

O desconforto que Lula sente entre seus pares democráticos do Ocidente e a sem-cerimônia com que se comporta entre seus ditadores preferidos talvez mostrem o verdadeiro dilema político que vive. Foi recebido na China com coreografias de sonhos, em que meninas usavam rosa e meninos azul. Tudo organizado, sem dissidências.

 

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