quinta-feira, 20 de abril de 2023

Malu Gaspar - Um Nobel da Paz Shopee

O Globo

O que a crise provocada pelo plano do governo de taxar as compras das plataformas internacionais de comércio on-line tem a ver com a polêmica diplomática provocada pelas declarações do presidente Lula sobre a guerra na Ucrânia? Aparentemente, nada. Mas, para quem está no dia a dia do Palácio do Planalto, muita coisa.

Primeiro, o caso dos sites de produtos chineses, que estão faturando tanto ou mais no Brasil do que as grandes varejistas locais. O foco em bugigangas e roupas bem baratas já fez surgir a expressão “da Shopee” para designar aquilo que é popular, mas de qualidade duvidosa.

A maior parte das vendas desses sites não atinge o valor-limite de US$ 50 para transações de importação sem impostos. A isenção só se aplica a pessoas físicas, mas as empresas burlam a regra e não pagam os tributos.

Ao propor a extinção do benefício, Fernando Haddad pretendia resolver o problema da sonegação, o dos varejistas e ainda descolar alguns bilhões em arrecadação extra para ajudar a cumprir as metas do arcabouço fiscal. Não funcionou.

O governo até chegou a defender a medida, mas a reação foi tão forte que Lula mandou parar tudo e cancelar a taxação, preocupado com a perda de popularidade entre consumidores de baixa renda.

Depois, nos bastidores, começou o jogo de apontar culpados. Aliados de Lula passaram a dizer que a iniciativa não havia sido discutida previamente com a Casa Civil e que houve atropelo na comunicação, uma vez que o fim da isenção foi anunciado pelo secretário da Receita Federal no mesmo dia em que Lula voava justamente para a China, em missão oficial.

Sob o mais estrito anonimato, porém, alguns auxiliares arriscam outra explicação. Dizem que “o presidente não ouve” — nem o que dizem para ele fazer nem o que falam para não fazer. Parece ter a certeza de que não precisa de ajuda, de que chegou ao terceiro mandato sabendo tudo.

A mesma reação surge entre diplomatas preocupados com as declarações sobre a guerra da Rússia na Ucrânia.

“A decisão da guerra foi tomada pelos dois países”, disse Lula, como se o território invadido tivesse culpa pela invasão.

Na campanha eleitoral, Lula soube usar a ojeriza internacional a Bolsonaro a seu favor, empunhando as bandeiras da reconstrução da nossa democracia e do combate às mudanças do clima e pela preservação da Amazônia.

De tão bem-sucedida, a estratégia o fez voltar a acalentar o sonho de ganhar o Prêmio Nobel da Paz. Porém, em vez de trabalhar pelo que poderia render algum destaque — quem sabe até o próprio Nobel em reconhecimento pela luta contra a tragédia climática —, Lula encasquetou de se enfronhar na discussão sobre a Ucrânia, com claro viés pró-Rússia.

Parecendo mesmo acreditar que suas broncas surtirão efeito sobre as decisões de Volodymyr Zelensky e a disposição dos americanos e europeus de apoiar a Ucrânia, Lula não viu problema em receber em Brasília o chanceler russo, Sergei Lavrov, que ainda saiu dizendo que Brasil e Rússia estão alinhados quanto à guerra.

Só quando a Casa Branca chiou é que a diplomacia brasileira saiu a campo para tentar conter o estrago. O chanceler Mauro Vieira asseverou que a já professada neutralidade do Brasil em relação à guerra não muda, e o assessor especial Celso Amorim disse que “o Brasil não tem que concordar em tudo com os Estados Unidos”.

Assim como no recuo em relação aos sites chineses, não adiantou grande coisa.

Num artigo sobre o imbróglio, o colunista Jakob Hanke Vela, da edição europeia do prestigiado site Politico, disse que a guinada de Lula o fez passar de “herói a esquisitão” diante da comunidade internacional. Além disso, teria feito os europeus reconsiderarem o plano de fechar um acordo de livre-comércio com o Mercosul ainda neste ano.

Citando um documento confidencial da UE, Vela escreveu também que o bloco está “preocupado com a posição brasileira sobre a guerra da Rússia na Ucrânia e com a falta de entregas na questão do clima e do meio ambiente”. E relatou que a atitude brasileira foi compreendida como reflexo da extrema dependência econômica do país em relação à China.

É apenas uma interpretação, mas dá uma pista do tipo de passivo com que Lula já chega à Espanha na semana que vem para um encontro com o primeiro-ministro Pedro Sánchez. Impossível prever no que vai dar.

A única certeza é que, nessa postura de não ouvir os alertas do próprio time, o presidente vai desperdiçando o capital que construiu na campanha e perdendo oportunidades que poderiam fazer de seu terceiro mandato um período realmente transformador.

Do jeito que vai, Lula ainda periga engolir muito desaforo na seara internacional e começar a dar adeus à ideia do Nobel.

A menos que seja um Nobel da Shopee.

 

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