quinta-feira, 20 de abril de 2023

Maria Hermínia Tavares* - Mais clareza é essencial

Folha de S. Paulo

Pronunciamento sobre Guerra da Ucrânia ofuscou êxitos obtidos na viagem à China

Na sua viagem à China, o presidente Lula fez lembrar a história do cidadão que atravessa a rua para escorregar numa casca de banana na outra calçada.

De fato, os êxitos por ele obtidos com a assinatura de 15 acordos bilaterais acabaram ofuscados por suas declarações desastradas sobre as causas da Guerra da Ucrânia, o papel das potências ocidentais no conflito e ainda por alfinetadas gratuitas nos EUA. Sem falar na pretensão, entre ingênua e desmedida, de contribuir para o término do conflito provocado pela invasão russa do território ucraniano.

Tudo somado, o presidente deixou a impressão de que, longe da equidistância na disputa entre chineses e americanos pelo predomínio mundial, o governo brasileiro parece inclinar-se para o lado dos países chefiados por autocracias —avaliação confirmada pela inoportuna visita do chanceler russo, Sergei Lavrov, primeira escala de um giro pela região que, além de Brasília, inclui Havana, Manágua e Caracas.

Entretanto, o Brasil tem um trunfo robusto para exercer efetivo protagonismo internacional, por ser parte indispensável dos esforços destinados a conter a crise climática no planeta. É nesse tabuleiro que o país dispõe de peças que permitam construir uma posição de autonomia diante das disputas entre potências, estabelecendo com elas formas de cooperação proveitosa para nós e para os outros.

O tema ambiental, além do mais, constitui terreno fértil à distensão da política interna. Em torno dele é possível formar consensos tanto sobre a ação externa brasileira —nas grandes negociações multilaterais e na América do Sul— como em âmbito doméstico, no qual é muito amplo o apoio, seja na defesa de nosso patrimônio florestal e da biodiversidade, seja em relação a políticas urbanas de contenção dos desastres naturais intensificados pela mudança do clima.

Por outro lado, instrumento de promoção de interesses nacionais, a política exterior desempenhou aqui, em muitos momentos, papel político agregador, contribuindo para legitimar aos olhos da sociedade governos nos quais reconheceu empenho em obter prestígio para o país.

O outro tema internacional de relevo, com óbvias repercussões domésticas, é a defesa da democracia. Nesse caso, a derrota da extrema direita nas urnas outorgou ao país luzidia credencial. Mas ela perderá valor e credibilidade se o Brasil não se dissociar das autocracias com as quais, pragmaticamente, deve continuar a fazer negócios.

Dito de outro modo, mais clareza quanto ao que convém, ao que é possível fazer e ao que não se deve falar só pode beneficiar o governo e o país.

*Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

 

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