Folha de S. Paulo
Pronunciamento sobre Guerra da Ucrânia
ofuscou êxitos obtidos na viagem à China
Na sua viagem à China, o presidente Lula
fez lembrar a história do cidadão que atravessa a rua para escorregar numa
casca de banana na outra calçada.
De fato, os êxitos por ele obtidos com a assinatura de 15 acordos bilaterais acabaram ofuscados por suas declarações desastradas sobre as causas da Guerra da Ucrânia, o papel das potências ocidentais no conflito e ainda por alfinetadas gratuitas nos EUA. Sem falar na pretensão, entre ingênua e desmedida, de contribuir para o término do conflito provocado pela invasão russa do território ucraniano.
Tudo somado, o presidente deixou a
impressão de que, longe da equidistância na disputa entre chineses e americanos
pelo predomínio mundial, o governo brasileiro parece inclinar-se para o lado
dos países chefiados por autocracias —avaliação confirmada pela inoportuna
visita do chanceler russo, Sergei Lavrov, primeira escala de um giro pela
região que, além de Brasília, inclui Havana, Manágua e Caracas.
Entretanto, o Brasil tem um trunfo robusto
para exercer efetivo protagonismo internacional, por ser parte indispensável
dos esforços destinados a conter a crise climática no planeta. É nesse
tabuleiro que o país dispõe de peças que permitam construir uma posição de
autonomia diante das disputas entre potências, estabelecendo com elas formas de
cooperação proveitosa para nós e para os outros.
O tema ambiental, além do mais, constitui
terreno fértil à distensão da política interna. Em torno dele é possível formar
consensos tanto sobre a ação externa brasileira —nas grandes negociações
multilaterais e na América do Sul— como em âmbito doméstico, no qual é muito
amplo o apoio, seja na defesa de nosso patrimônio florestal e da biodiversidade,
seja em relação a políticas urbanas de contenção dos desastres naturais
intensificados pela mudança do clima.
Por outro lado, instrumento de promoção de
interesses nacionais, a política exterior desempenhou aqui, em muitos momentos,
papel político agregador, contribuindo para legitimar aos olhos da sociedade
governos nos quais reconheceu empenho em obter prestígio para o país.
O outro tema internacional de relevo, com
óbvias repercussões domésticas, é a defesa
da democracia. Nesse caso, a derrota da extrema direita nas urnas
outorgou ao país luzidia credencial. Mas ela perderá valor e credibilidade se o
Brasil não se dissociar das autocracias com as quais, pragmaticamente, deve
continuar a fazer negócios.
Dito de outro modo, mais clareza quanto ao
que convém, ao que é possível fazer e ao que não se deve falar só pode
beneficiar o governo e o país.
*Professora titular aposentada de ciência
política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Nenhum comentário:
Postar um comentário